sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Guiné 63/74 - P11002: História da CCAÇ 2679 (61): A vingança serve-se fria (José Manuel Matos Dinis)

1. Mensagem do nosso camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 23 de Janeiro de 2013:

Ora viva Carlos,
Depois da pompa e circunstância de apresentação do Cândido Morais, quiçá a personagem mais importante de Perre desde que integrou o blogue, hoje apresento-te uma página negra da estória daquele furriel miliciano.
Está ali tudo, tim-tim-por-tim-tim. Que o traste seja julgado na praça pública, e se não houver galés, que seja condenado a presentear-me com outro salsichão de que ele herdou a mestria da composição.
E ainda tem que dar o vinho.
Que comigo não há imunidade, nem prescrição.

Se repararem, na fotografia da tela sobre o Morais, não faltam os acepipes, nem o vinho, entre outras coisas. Espero que se divirtam com uma estória verdadeira.

Para ti e para a Tabanca vai aquele abraço
JD


A VINGANÇA SERVE-SE FRIA

Tinha saído com os primeiros alvores para uma patrulha pela fronteira, com emboscada num imaginado trilho de penetração. O dia fora igual a tantos outros: palmilhámos uns quilómetros pela mata, abancámos junto a um trilho à espera de ninguém, prolongámos o passeio ao longo da fronteira por mais algum tempo, comemos meia ração, e bebemos a água do cantil, que naqueles azimutes parecia uma bebida fina. A meio da tarde, quando andava próximo da ZA de Pirada, decidi regressar à base. Tínhamos ainda tempo diurno para o que fosse necessário.

Despedimo-nos à entrada do arame, e cada um tomou o rumo do alojamento. Encostei a arma no lugar do costume, junto à cama onde dormia. Abri o armário do bacalhau, e remexi à procura de uma camisa ou camisola (na época ainda não se usava o termo t'shirt) sem pó, despi-me, enfiei os chinelos, peguei na saboneteira, e dirigi-me para a "sala das orgias". Ali, convenientemente nuzinho, abri a torneira da espécie de duche, e recebi a água morna numa torrente de muito agrado. Lembrei-me do que um gajo qualquer me contou à chegada: que naquele dia o Morais tinha recebido uma encomenda com vários salpicões que o pai lhe mandara. E rematou com uma superlativa apreciação à qualidade dos enchidos. Enquanto passava a toalha pelo corpo, afiava o dente para atacar um bocado da maravilha.

A "sala das orgias" deve a designação a uma inspiração pictórica da minha parte. 
O segundo painel representa uma pintura abstracta, como abstractos seriam a maior parte dos pensamentos dos utilizadores da cagadeira. 
O painel que segue, representa um penico estilizado, indicador da função atribuída ao local. 
O último dos painéis homenageia os aflitos, ali representados pelo cãozinho que só tinha 3 patas, e um dia, muito aflito para chichizar, levantou uma pata e caiu

Saí daquela sala, e ouvi vozes na messe, logo ali à frente. Para lá me dirigi pois tinha distinguido o Morais entre os palrantes.

- Então Morais, hoje houve salpicãozinho de Perre? - Perguntei, mas com uma sonoridade afirmativa.
- Eh pá, o meu pai mandou-me uns salpicões de categoria, - afirmou visivelmente agradado o nosso tropa.
- Porreiro pá, arranja aí um bocadinho, que eu venho com uma fome do diabo.
- Oh pá, já não há nada, estes gajos são uns brutos a comer. Estava a ver que nem chegava para mim, - retorquiu tranquilo.
- O quê? Então não tiveste a lembrança de guardar um bocadinho para mim? - Interroguei-o acusadora e ofendidamente.
- Eh pá, que é que queres? Para já não eram muitos, e depois estes gajos atacaram neles que nem selvagens.

E para acentuar a sua inocência, virou-se para os outros e perguntou-lhes:
- Oh rapazes, eram bons ou não?

Os rapazes, apalermados, responderam quase ensaiadamente que sim, que o pai dele devia mandar mais e mais vezes.

- Foda-se pá!!! - Reagi com indignação. - Quando recebo uma encomenda tenho sempre a preocupação de me lembrar de ti, e agora pregas-me a partida,-  respondi com desagrado.

Virei costas e fui para o quarto, por uma camisa e calções, que a hora do jantar aproximava-se. Dirigi-me ao armário para qualquer coisa, para colocar umas gotas de Old Spice para me preservar do cheiro a catinga, ou por outra razão, e deparei com alguns aerogramas ali amontoados na desorganização arrumativa que me caracteriza. Tan-Tan!!! fez-se-me uma luz.

Tirei um dos aerogramas, peguei na esferográfica, sentei-me na cama, e com um livro a fazer de base escrevinhadora, endossei o correio para o Exmo. Senhor Manuel Luís Morais, Perre, Viana do Castelo, Metrópole.

Depois escrevi-lhe a dar boas notícias do filho, da amizade que todos nutríamos por ele, e expus a razão da minha comunicação. Estava-se mesmo a ver, claro, que os salpicões não tinham chegado para mim, e que o filho cometera a enorme falha de não me guardar um bocadinho para prova. Como sabia que o senhor era inexcedível nas relações familiares, e sendo eu um amigo indefectível do Cândido, imaginava quanta alegria lhe iria proporcionar, por poder enviar-me uma pequenina encomenda com um salpicão.

Não veio um. Vieram quatro ou cinco, numa embalagem destinada ao Fur Mil José Dinis.

Ao jantar ainda gozaram comigo, uns sacanas ordinários, que não só realçavam a qualidade dos aromatizados enchidos, como me tratavam por lorpa, como se tivesse ido voluntariamente para o mato, para mais, calculem, com meia ração de combate. Alinhei naquilo, e a rapaziada divertia-se à minha custa.

Poucos dias depois, antes do almoço, tirei um salpicão, abarbatei-me a uma cervejola e a um naco de pão, e sentei-me à mesa quando o pessoal se dispunha para almoçar.

- Que é isso pá? - Alguém questionou.
- Não tens óculos? Vai buscá-los que logo vês, já que pelo cheirinho não distingues uma salsicha de uma bota da tropa. - E ferrei a naifa na carne apetitosa.
- Eh pá, dá-me um bocadinho, - pediu outro.
- Não posso! - Respondi seco, enquanto mastigava uma fatia do gostoso salpicão.

Não demorou nada para que se iniciasse o burburinho. Eles pediam, tratavam-me de merdoso egoísta, ameaçavam roubar-me o salpicão, e eu respondia que não podia dar, que da última vez também não me deram nada, e que fodia com tiros o primeiro que ousasse roubar-me.

Afastei-me da mesa e apercebi-me de como aceitaram o argumento. Daquela multidão indignada, acerco-se o Morais, muito cuidadosamente, a referir-me que o salpicão era mesmo parecido com os salpicões do pai dele. Respondi-lhe que os salpicões são todos parecidos. Pediu-me para provar, mas lembrei-lhe que não senhor, ele ainda há poucos dias não tivera o misericordioso acto de me guardar uma fatia quando o pai lhe enviara éne salpicões.

De repente o Morais transforma-se em provocador perigoso, e dizia que o salpicão, de certeza, era de casa do pai, e questionava-me onde é fui arranjar aquilo. Desfeiteei-o mais uma vez, e insinuei que fosse ao Vítor pedir um vallium para acalmar. Mas o Morais estava a perder a cabeça, e insistia que sabia muito bem que o salpicão era da sua casa. Onde é que eu arranjara aquilo?

O pessoal, entre o divertido e o indignado, se não fazia apostas, já se mostrava tenso com o desenvolvimento da contenda. O Morais estava mais que desconsolado, estava irritado e ameaçador.

Arrumei o salpicão na folha de papel, e, provocadoramente, prometi oferecer a alguns depois do jantar. Mas só a alguns, sublinhei. Com o serviço da bianda (ou seria esparguete?) o pessoal amainou.
No fim da refeição disse a um para ir ao meu armário buscar a encomenda, que eu estava mais generoso. Quando veio a encomenda o Morais foi logo identificar a letra do pai, e quase perdia a cabeça.

- Eu sabia! Eu sabia que o salpicão era da casa do meu pai.
- Pois sabias, - confirmei eu, - o que tu não sabias, e parece que não queres saber, é que os salpicões são meus, e foram oferecidos pelo teu pai, um gajo porreiro, aliás, que não tem comparação com o merdoso do filho que está na Guiné.

Desatámos a rir, a trinchar e a comer os milagrosos salpicões que, de facto, revelavam grande saber na composição e manifestavam uma tão grande satisfação ao palato
Acabou em festa, e os outros sacanas nunca mais pensaram em ressarcir-me daquele inopinado extra.

JMMD


2. Comentário de CV:

Ainda sobre esta saborosa (literalmente) estória, que só podia ter sido urdida por "um José Manuel Matos Dinis", cabe aqui e agora um aditamento por parte do visado, o nosso recente camarada Morais:

Meus caros
Eu tinha medo que esta história viesse a lume... na verdade, eu lembro-me desse episódio, mas infelizmente só na parte da minha zanga com o Dinis.
Eu recebia realmente várias encomendas de Perre e lembro-me que gozava de boa saúde porque pegava no presunto e no chouriço que sobrava para mim, dirigia-me à padaria e pedia lá um casqueiro dos grandes, que enchia com alho e cebola, que depois cobria com presunto ou chouriço, conforme a circunstância. Eu creio que isso ajudou a preservar, e muito, a minha saúde física e mental.


O motivo da minha zanga, não estava relacionado com o facto dos amigos se alambazarem com o conteúdo das minhas encomendas, pois eu acabava por distribuir por eles quase tudo, mesmo até aqueles frascos de uvas engarrafadas com aguardente, que tantas angústias me suavizaram, ou as latas de conserva que o meu pai esvaziava em casa, para encher com rojões de porco da última matança caseira, envoltos na sua própria banha (uma delícia!).
Eu zanguei-me porque estava persuadido que o Dinis violara uma coisa que para mim era sagrada, que era a encomenda do meu pai, vinda da minha terra, que todos os dias lembrava com saudade. Eu creio que ele até é benevolente comigo quando agora fala na minha zanga, porque eu penso que passei para além do que ele relata (se não sabeis, sou do signo Touro, afeiçoado à terra, parece que meigo e paciente, mas violento...).


Mas, se o Dinis diz que escreveu para o meu pai, também sei que o meu pai não teria hesitado em corresponder a esse apelo, e por isso acredito no que ele diz. Aliás, foi o meu pai que quis ter o prazer e a honra de ser o primeiro dos progenitores a receber os meus amigos (aquela cambada...) na nossa casa depois do regresso da Guiné.

Só desejo que o Dinis me perdoe o ar irado dessa altura, embora eu pense ter, logo a partir do dia seguinte, abrandado a pressão e continuado a cimentar a grande amizade que preservamos.

Um abraço.
Cândido Morais

__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 21 DE JANEIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P10979: História da CCAÇ 2679 (60): Ir ou não ir para a vala... eis a questão (Cândido Morais)

7 comentários:

Anónimo disse...


O facto do Morais se ter esquecido uma vez de partilhar contigo, acabou por te ser favorável.
Abraços
Filomena

Manuel Reis disse...


Camarigos Zé Dinis e Morais

Linda estória, em tempo de guerra, envolvendo dois amigos, com nuances não imagináveis nos tempo de hoje, e que é recordadada sem ressentimentos pelos dois intervenientes.

Um abraço para os dois.

Manuel Reis

Tony Borie disse...

Olá José Manuel.
Ora aqui está uma história, não sei se é assim que se escreve, típica, interessante, passada entre amigos, em algumas partes erótica, pois também fala a linguagem que era corrente entre amigos em cenário de guerra, que eram aquelas palavras, que se diziam com a maior naturalidade, como por exemplo, "nú e foda-se", também não sei se é assim que se escreve, de dois amigos, e que tem interesse do princípio até ao fim, e que pelo menos eu, estava à espera, que acabasse com o pai do amigo, a puxar as orelhas ao filho, que era o amigo, por não ser amigo do amigo, que tinha chegado de uma patrulha com outros amigos, que quando chegaram ao arame farpado, se despediram como amigos, cujo amigo, começou a zangar-se por o pai do amigo ter tido consideração pelo amigo, sem o amigo saber, ou se o amigo ia comer tudo sem os outros amigos saberem, e no final acabei por saber que ficaram amigos, pois já eram todos amigos que comeram em perfeita harmonia a encomenda que o pai do amigo tinha mandado para o amigo do amigo que deu os salpições, para todos os amigos comerem em amizade, e camaradagem, pois estavam em cenário de guerra e deviam ser todos AMIGOS!.
Não sei se me fiz entender, espero que sim!.
Um abraço, Tony Borie.

MANUELMAIA disse...

VIVA ZÉ,

SÓ TU PARA ME FAZERES RIR.
O MORAIS, E NO FUNDO VOCÊS TODOS,TINHAM SORTE POR OS GAJOS DO SPM NÃO SE ABARBATAREM AOS CHOURIÇOS E PRESUNTOS.
A MIM GAMARAM-ME VÁRIAS ENCOMENDAS EXPEDIDAS PELA FAMÍLIA.
VOLTANDO À TUA "PARDALADA",DEVO DIZER-TE QUE FOI BEM ESGALHADA, E O DITO MERECEU O GOZO QUE LHE DESTE DEPOIS. O CERTO É QUE ACEITOU A COISA...
ABRAÇO AOS DOIS.

JD disse...

Cândido,
Cá o Diniz não é "benevolente" nem tem que "perdoar" o que seja. Eu devo-te a amizade que ali cimentámos, e hoje dás mais uma grande prova de verticalidade com o comentário publicado.
Tu sabes que sempre fui atrevido, e daquela vez também manifestei atrevimento pelo arrojo de escrever ao teu pai. Claro que gostei da festa que fizémos com os salpicões, mas a motivação era, a pretexto de "vingança" causar-te uma grande surpresa. A tua explicação é esclarecedora sobre a "zanga" que, afinal, esteve sempre controlada.
Tu sabes que é verdade, se calhar a partir de então as nossas cumplicidades tornaram-se mais afectivas. Já lá vão muitos anos, mas muitas vezes gostaria de voltar atrás para vivermos os melhores momentos de camaradagem.
No entanto, como se sabe, o tempo não volta para trás.
Aí vai um grande abraço
JD

Luis Faria disse...

Amigo José Dinis

Tempos que não voltam,dizes e bem,mas quase se revivem,só faltando os salpicões e toda a envolvencia na preparação e execução da "bem esgalhada",com diz o Manuel Maia,"vingança fria",que ao que percebo acabou por reforçar uma amizade e cumplicidade que resistiu através do tempo.É bom.
Um grande abraço

Luis Faria

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