sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Guiné 63/74 - P11000: Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (21): A morte de Amílcar Cabral e a mudança do CAOP1 para Mansoa

1. No seu Diário da Guiné, o António Graça de Abreu (AGA) mostra que eram um homem atento ao que se  passava à sua volta. Dois dias depois  relatava a notícia da morte do Amílcar Cabral. Poucos militares, e nomeadamente os operacionais, tinham acesso às emissões diárias de rádio ... .. Aqui se reproduz três excertos do Diário do AGA, com a devida vénia, referentes aos dias 22, 23 e 25 de janeiro de 1973...

O AGA [, foto à direita, em baixo, Cufar, 1973,] escrevendo a quente, em cima dos acontecimentos, não acertou no nome do homem que veio substituir o líder assassinado; e, por outro lado, safou-se a tempo, por escassos dias, de apanhar com o 25 de abril na Guiné ... ("Têm um novo secretário-geral, Vítor Monteiro de seu nome, formado em Economia por Lisboa. Os caminhos de tudo isto dependem da evolução da própria África, do auxílio que outros países darão ao PAIGC, a resolução final do conflito já não será para os meus dias de Guiné, é um processo longo que passa também por Portugal"). (LG):
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Canchungo, 22 de Janeiro de 1973

Mataram o Amílcar Cabral.

Ontem, às sete da noite, andava a sintonizar diferentes postos na rádio e ouvi, em mau francês, algumas palavras contra o colonialismo português. Vinham do Senegal. Logo de seguida era Leopold Senghor, o presidente do Senegal que fazia o elogio do Amílcar Cabral, morto.

Ouvi depois mais postos, Conacry e os comunicados do PAIGC em português, francês e inglês, ouvi a BBC. Mas ainda não cheguei à conclusão sobre quem matou Amílcar Cabral e como se deu o assassínio. Os homens de Conacry falam de traidores ao serviço do imperialismo português e mundial. Dizem que têm os assassinos já presos e entregues ao PAIGC que fará justiça. A versão do governo português será diferente, com certeza, falar-se-á de lutas intestinas no partido do chefe morto, da imaginação delirante do Sékou Touré, tal como aconteceu quando da operação “Mar Verde”, a invasão portuguesa de Conacry, em Novembro de 1970.[1]

Verdade é que o Amílcar Cabral está morto e se interessa saber quem o matou e porquê, importa mais ainda saber, ou pelo menos prever, o que será o PAIGC sem ele, aqui na guerra em que estou comprometido.

O pessoal vai dizendo que a Guiné aquecerá em grande, tentarão tirar vingança nos portugueses. Muito sinceramente, duvido. Os guerrilheiros têm pouca força militar de conjunto, em dez anos de guerra não conseguiram tomar sequer um aquartelamento português.
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[1] Sobre os meandros sinuosos que levaram à morte de Amílcar Cabral, com interessantes descrições do quotidiano dos guerrilheiros no interior da Guiné-Bissau, ver Oleg Ygnatiev, Três Tiros da PIDE, quem, porquê e como mataram Amílcar Cabral, Lisboa, Prelo Ed., 1975. Mais rigoroso, o notável trabalho de investigação levado a cabo por José Pedro Castanheira, intitulado “Quem mandou matar Amílcar Cabral” no jornal Expresso, Revista, 16.01.1993, depois editado em livro, sob o mesmo título, Lisboa, Ed. Relógio de Água, 1995.
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Canchungo, 23 de Janeiro de 1973

Sete meses de Guiné, cumprido um terço do martírio comprido.

Agora os dias têm de galopar. Dizem-me que até aos catorze meses de comissão é um pulo. Depois, para o fim, é outra vez a angústia, o sofrimento, pensar que a ordália militar está a terminar e nunca mais acaba.


Canchungo, 25 de Janeiro de 1973

A morte do Amílcar Cabral  [, foto à direita,] do Arquivo Amílcar  Cabral / Fundação Mário Soares,] talvez não vá alterar o rumo da guerra, não se têm registado mais ataques e flagelações, existirá uma certa confusão dentro do PAIGC, parece que têm um novo secretário-geral, Vítor Monteiro de seu nome, formado em Economia por Lisboa. Os caminhos de tudo isto dependem da evolução da própria África, do auxílio que outros países darão ao PAIGC, a resolução final do conflito já não será para os meus dias de Guiné, é um processo longo que passa também por Portugal.

Entretanto, já estava prevista antes da morte do Cabral a mudança de lugar do nosso CAOP 1. O coronel chegou ontem de Bissau e trouxe a bomba. Dentro de dez dias vamos mudar de poiso, juntamos os trapinhos com a 38ª. Companhia de Comandos e o nosso destino será Bula ou Bissorã ou Mansoa. Para melhor, para pior? Só Deus sabe.

Estávamos preparados para a possibilidade de mudança. Se o quartel onde nos instalarmos estiver sujeito a frequentes flagelações e ataques, haveremos de arranjar uns buraquinhos onde nos meter.

Terminam as aulas do Ciclo, a experiência rica de conhecer estes rapazes guinéus, acaba-se o dinheiro do meu labor como professor. A única solução é conformar-me com as reviravoltas do acaso. Os alunos hoje ficaram tristes quando souberam que íamos embora, disseram que nunca mais terão tão bons professores. Fiz pouco por eles, só agora os começava a conhecer, necessitava aí de mais um ano, e noutras condições, para verdadeiramente fazer o que tanto gosto, ensinar e ver o resultado do meu labor.

Foi bom ter dado aulas, esforcei-me por falar com clareza, objectividade e simplicidade. Acho que consegui.

Vou ter imenso trabalho com a mudança do CAOP. Conferir o material, cadeiras, secretárias, dossiers, lâmpadas, ventoinhas, frigoríficos, camas, lençóis, as armas, e embalar tudo. Devo fazer uma relação dos materiais que levamos, das vassouras ao copiador. O Peres, o furriel que trabalhava comigo foi-se embora, acabou a comissão. O meu novo subordinado é o furriel H., “periquito”, não conhece os cantos à casa mas já me disse que se estava cagando de alto e de repuxo para a guerra. Tem todo o direito, a questão é que deve trabalhar, as coisas têm de ser feitas, eu sou o responsável por todo o pessoal menor, não quero chatices com os bigs, os majores e o coronel. O furriel não ajuda, para defender a minha pele vou ter de usar o pequeno galão de alferes. Com o tempo tudo se resolverá. (...)

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Nota do editor:

1 comentário:

Cherno Baldé disse...

Caros amigos,

Como já tive oportunidade de dizer durante a primeira publicação dos excertos do Diário do nosso amigo AGA, dá imenso prazer ler estes registos do seu diário da Guiné. Claro, simples e objectivo, como ele gostava e se esforçava em ser.

Ele escreve e cito: "Os caminhos de tudo isto dependem da evolução da própria África, do auxilio que os outros países darão ao PAIGC...é um processo longo que passa também por Portugal". E foi o que veio a acontecer.

Sinceramente, pese embora a minha ignorancia no dominio, não creio que tenha existido, durante a guerra na Guiné, outro registo igual, pela qualidade da informação, distanciamento com a posição oficial e nivel de análise sobre o contexto (local, nacional e internacional).

O Vitor (Freire) Monteiro em referencia será mais tarde e durante muito tempo, o Governador do Banco Central da GBissau.

Um abraço amigo

Cherno Baldé