sábado, 3 de novembro de 2012

Guiné 63/74 - P10615: A minha CCAÇ 12 - Anexos (I): Sansacuta, tabanca fula em autodefesa no sul do regulado de Badora, onde estive em março de 1970 e onde um dia recebi, do vagomestre, um lata 5 kg de fiambre dinamarquês... que tive de consumir e repartir pelos putos em escassas horas (Luís Graça)






Guiné > Zona leste > Seto  L1 (Bambadinca) > BARt 2917 (1970/72) > Tabancas fulas em autodefesa do Regulado de Badora: crianças... e cães.

Fotos: © Arlindo T. Roda (2010). Todos os direitos reservados



1. Enquanto não aparece o poste relativo ao mês de novembro de 1970. quando a CCAÇ 12 perfazia 18 meses de Guiné (, mês que me traz amargas memórias) (*), vou iniciar um séria paralela, para lá pôr uns textos anexos... O primeiro tem a ver com a temporada (duas semanas e meio) que passei em Sansacuta, no sul do regulado de Badora, do lado esquerdo da estrada Bambadinca-Mansambo, comandando uma secção do 4º Gr Comb da CCAÇ 12, entre 24 de fevereiro e 12 de março de 1970.

Adicionar legenda
Uma aldeia fula em autodefesa:  Sansacuta, regulado de Badora

por Luís Graça



1. Como esses bandos sinistros de jagudis (abutres) que pousam sobre a morança dos que estão a morrer, também o espectro negro da fome paira sobre as tabancas da Guiné. Porque a desnutrição, essa, é já endémica: facilmente se constata, sobretudo nas crianças, toda uma série de sintomas patológicos provocados pelas carências proteicas e vitamínicas de uma alimentação quase só à base de cereais (arroz, milho, fundo) e túbérculos (mandioca, inhame), acompanhos de molhos de origem  vegetal (óleo de palma). 

A alimentação é, pois,  deficiente, sobretudo em qualidade. O peixe (sobretudo seco) e a carne são raros. Além disso, os fulas, que são islamizados, não comem carne de porco. Em contrapartida, não têm os problemas de alcoolismo dos povos ribeirinhos, animistas (como os balantas de Nhabijões).

E, no entanto, trata-se dum território aparentemente fértil, mas com umas das mais elevadas densidades demográficas do continente africano, concentrando-se as populações em especial nas bacias hidrográficas, junto às bolanhas e lalas (regiões alagadiças ricas em húmus) onde cultivam o arroz.


Mas a guerra e a sua escalada vêm modificar profundamente a geografia humana e económica da Guiné: por um lado, provocam o êxodo maciço de populações inteira (balantas, beafadas, mandingas, manjacos, etc.) para as zonas controladas pelos guerrilheiros e para os países límitrofes (Senegal e Guiné-Conacri). E por outro, assiste-se ao fenómeno da militarização dos fulas (uma tribo islamizada cujos régulos detêm ainda algum do seu antigo poder feudal), através não só do reagrupamento e organização em autodefesa das suas aldeias como também da formação de milícias.

2. Eis a razão por que, a partir de 1963, se tem vindo a acentuar o decréscimo da produção agrícola (que aliás é cada vez para autoconsumo). Mas vejamos as duas culturas ainda comercialmente importantes: o amendoim e o arroz.

O amendoim (ou mancarra) só por si deve representar hoje  cerca de metade do valor total das exportações (da Guiné para a Metrópole).

Muito antes ainda de passar à clandestinidade, o engenheiro agrónomo Amílcar Cabral (que terá dirigido uma brigada técnica dos Serviços Agrícolas Coloniais, não  em Fá, aqui perto de Bambadinca, mas em Pessubé, tendo feito estudos sobre a produtividade de diversos tipos de amendoim), já tinha denunciado o perigo que representava a monocultura desta oleaginosa para o desenvolvimento económico e social da Guiné, e criticando implicitamente a sua importância estratégica como matéria-prima para os monopólios metropolitanos (a CUF, aqui representada pela Casa Gouveia).

Tendo sido imposta ao indígena pela administração colonial, a cultura da mancarra está hoje em declínio irreversível: os fulas ainda são os únicos que lavram mancarra (cultivam amendoim) na periferia das suas tristes tabancas, cercadas de arame farpado e de minas. É com o produto da sua venda que o camponês fula paga, no posto administrativo, a sua taxa domiciliária (imposto de palhota), colectada na base do número de mulheres (e moranças) que possui! 


Curiosa é a origem da mancarra, a semente do diabo, segundo a lenda fula, que aqui ouvi em Sansacuta (em 8 de março de 1970):

Na mitologia fula a mancarra (amendoím) está associada ao Diabo em pessoa (Iblissa). O cherno Umaru que dirige uma pequena escola islâmica nesta tabanca e que se prepara , como bom muçulmano devoto (tijanianké), para fazer no próximo ano a sua peregrinação a Meca (Iado Hadjo, em fula) e assim juntar ao seu nome o título venerando de al-hadj,contou-me a seguinte história,  traduzida  pelo Suleimane, o José Carlos Suleimane Baldé (o meu braço direito, guarda-costa, intérprete, cozinheiro, secretário):

- Um dia Iblissa (o Diabo) quis desafiar a autoridade divina de Mohamadu (o Profeta Maomé). Tinha chovido muito e o Profeta dissera que então nasceriam todas as sementes que fossem lançadas à terra. O Diabo, em vez de uma semente de milho ou de arroz, deitou leite numa cova que ele próprio tinha feito no chão. Mohamadu, intrigado e inquieto com a provocação de Iblissa, foi falar com Alá, que lhe mandou guardar uma semente. E ao fim desse tempo, não é que do leite nasceu mesmo a mancarra ? (**)

O segundo produto é o arroz (***). Antes da guerra, dois terços eram exclusivamente produzidos pelos balantas, a maior etnia do território (que são 150 mil, segundo o censo de 1962). Inclusive o arroz chegou a ser exportado. Hoje mal chega para o autoconsumo, tornando-se dramática a sua carência nos anos de menor pluviosidade.



Guiné > Zona leste > Setor L1 (Bambadinca) > Subsetor de Bambadinca > Detalhe > Tabancas fulas em autodefesa, Samba Juli, Sinchã Mamadjai e Sansacuta, situadas entre os rio Querol e Timinco, a leste da estrada Bambadinca-Mansambo > Carta do Xime (1955) (Escala 1/50 mil)... Lugares que continuam no nosso imaginário...



Entretanto, no circuito da economia monetorizada, devido à inflação provocada pela guerra, a população que está sob o nosso controlo vê-se muitas vezes na contingência de vender, ao pequeno comerciante português ou libanês, o arroz que produz para comer (preço por quilo: 3 pesos!) para comprar umas chinelas de plástico:

- O senhor administrador dá porrada se pessoal africano anda descalço em Bambadinca!-, diz um dos meus soldados fulas.

Noutras ocasiões, trata-se de fazer dinheiro para pagar a taxa domiciliária I"o famigerado "imposto de palhota"), imposta ao guinéu e devida pelos escassos metros quadrados de superfície que ocupa a sua morança. 
Entretanto, quando as reservas se acabam no tempo seco, o guinéu volta a adquirir o mesmo arroz pelo dobro do preço (6 pesos).

O drama destes pobres camponeses que foram obrigados a abandonar as suas áreas de cultura, arrancadas à floresta tropical ou à savana arbustiva, de geração em geração, pude senti-lo aqui em Sansancuta onde estive em autodefesa. (****).

3. Sansancuta faz parte dum eixo de aldeias estratégicas, como se diz no Vietname, no limite sul do regulado de Badora, no Sector L1, e que funciona como uma espécie de pequena muralha da China, cortando as linhas de infiltração das forças da guerrilha que eventualmente se dirijam para o interior daquele regulado a partir do Rio Corubal.

Estão aqui reagrupados os habitantes de três tabancas, uma das quais Sare Ade cuja população, sobretudo os mais jovens, não se conformou com a ordem de deportação dada pelo comando militar de Bambadinca, tendo fugido para o nordeste (Gabu) e inclusivamente para o Senegal, que também é chão fula.

Hoje, de resto, só há duas alternativas para um homem fula: (i) oferece-se como voluntário para o exército colonial, passando primeiro pela milícia; ou (ii) emigra todo os anos, na época das chuvas, para o chão de francês (Senegal ou Guiné-Conacri) a fim de trabalhar nos campos de mancarra.

É a única maneira de fugir ao universo concentracionário da sua tabanca, e sobretudo à fome. Essa fome visceral que leva as crianças a aproveitar tudo aquilo que nós, tugas, nos damos ao luxo de deitar fora (vi-as aqui a assaram na brasa as vísceras de um frango que o bom do José Carlos Suleimane Baldé me arranjou e reparti-las equitativamente entre si).


Tínhamos uma secção destacada em Sinchã Mamadjai  [ou Mamajã] que foi transferida em 24 de Fevereiro de 1970 para Sansacuta, com o objetivo de controlar os trabalhos de autodefesa [, e que haveria de  regressar definitivamente a Bambadinca a 12 de Março de 1970].

Fome, subnutrição, carências de toda a ordem (roupas, medicamentos...), doenças como paludismo, mortalidade infantil,  etc., contrastam, de modo chocante, com a relativa opulência com que um tuga , como eu, aqui vive: ainda ontem me vieram trazer o reabastecimento semanal e, entre outros produtos enlatados, deixaram-me cinco quilos (!) de fiambre dinamarquês, para dois mecos, para mim e para o operador de transmissões, os dois únicos brancos, já que as praças são desarranchadas. 


Tivemos de comero fiambre em menos de vinte e quatro horas, sob pena de se estragar com o calor (, frigorífico a petróleo ka tem!), e, uma vez aberta a lata, repartir o resto do fiambre pelos putos da aldeia e soldados africanos da secção. É claro que lhe chamaram um figo, não tendo desconfiado sequer que tal iguaria pudesse ser feita de carne.. de porco!

Deportado e reagrupado em aldeias estratégicas (ou tabancas em a/d, chamem-lhe o que quiserem), o camponês da Guiné que ama os grandes espaços livres (a floresta onde vai caçar a gazela, a bolanha onde cultiva o arroz, o rio onde vai buscar o mafé) vê-se confinado a uma área de reserva onde pratica uma miserável agricultura de subsistência.

Ironicamemnte as fiadas de arame farpado que cercam as palhotas cónicas,as trincheiras e os abrigos de combate, os espaldões para as armas pesadas, as valas de comunicação e os abrigos passivos das tabancas em a/d, ficarão proventura como os únicos vestígios arqueológicos da presença duma civilização tecnologicamente superior nesta parte ocidental de África...

Luís Graça




Guiné > Zona Leste > Croquis do Sector L1 (Bambadinca) > 1969/71 (vd. Sinais e legendas).  Dentro retângulo a vermelho, ficavam localizadas as duas tabancas aqui referidas neste poste, Sansacuta e Sinchã Mamadjai, no limite sul do regulado de Badora,  entre Bambadinca e Mansambo. A sudeste ficavam três importantes (e das últimas) tabancas fulas do regulado do Corubal,  Afiá, Candamã e Camará,  eestas já pertencentes ao subsetor de Mansambo.

Infografias: © Luís Graça (2005). Todos os direitos reservados

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Excertos de: História da CCAÇ 12: Guiné 69/71. Bambadinca: Companhia de Caçadores nº 12. 1969/71. 
Cap. II.26: A secção destacada em Sinchã Mamadjai foi transferida em 24 de Fevereiro de 1970 para Sansancuta a fim de controlar os trabalhos de autodefesa da tabanca, regressando definitivamente a Bambadinca a 12 do mês seguinte [Março de 1970].~


Notas do editor:


(*) vd. último poste da série > 30 de julho de 2012 > Guiné 62/74 - P10209: A minha CCAÇ 12 (26): Outubro de 1970: o jogo do rato e do gato... (Luís Graça)

(**) Números sobre a mancarra:  Principal produto de exportação da Guiné nos anos 60: 76% do total (em 1964), percentagem que decresce para 61% em 1965, em consequência do agravamento da guerra. A área cultivada atingia os 100 mil hectares (um 1/4 do total da área cultivada da província). A produção rondava as 65 mil toneladas. A produtividade era baixa: 600 kg / ha (2 mil kg /ha em casos excecionais).

A cultura era feita em regime de rotação, sem seleção de sementes, sem recurso a adubos ou estrume, proporcionando fracos rendimentos e exigindo grande esforço nas várias fases do ciclo de produção (sementeira, monda, colheita, protecção contra os babuínos...). Principais regiões de produção: o leste da Guiné, Farim, Bafatá, Gabu, onde os solos são mais leves e a precipitação menor. 

No entanto, esta cultura era já considerada na época como muito lesiva do ambiente, pelo uso intensivo dos solos, a redução do pousio, as queimadas... Tradicionalmente os camponeses da região praticavam um sistema de rotação mancarra - cereal - pousio, considerado pouco eficaz. Acrescente ainda o sistema de comercialização, penalizando fortemente os produtores. (Fonte: adapt. de Dragomir Knapic - Geografia económica de Portugal: Guiné. Lisboa: Instituto Comercial de Lisboa,  1996,  44 pp., policopiado).

(***) Arroz: a área de cultivo devia representar 150 mil hectares no início da década de 60, antes da guerra, o que equivalente a 38% do total, concentrando-se em especial nas regiõe do Cacheu, Bissorã e Mansoa, a norte do Rio Geba, e Fulacunda e Catió, a sul. Havia dois tipos de cultura de arroz: o alagado, ou de bolanha (nas regiões mais ribeirinhas, no litoral); e o arroz de sequeiro, no interior, praticado sobretudo pelos manjacos e fulas. 

A produtividade é também baixa, oscilando entre os 30 kg e os 2 mil kg por hectare, com um a média de 800 kg/ha. A produtividade é sempre maior no arroz alagado. A Guiné passou a ser autossuficiente em matéria de arroz, sobretudo a partir dos anos 30 até ao início da guerra colonial. Exportava arroz para a metrópole, para a África francesa (Senegal e Guiné-Conacri) e para Cabo Verde. Com a guerra, a situação inverteu-se: passou a importar. (Fonte: Dragomir Knapic, 1966, op. cit.).

(****) A terceira cultura de maior peso na Guiné era a do milho (cavalo, preto e basil), mas que tinha um baixíssimo valor alimentar. A área ocupada era sensivelmente a mesma do arroz, mas a produção era 3 vezes inferior: apenas cerca de 50 mil toneladas. Era também uma cultura devastadora para o ambiente, sendo precedida de derrube da floresta e de queimadas...

Outras culturas, mas de menor  impacto na economia e na dieta do guineense do nosso tempo: fundo (30 mil hectares / 10 mil toneladas /  300 quilos por hectare), o feijão, a mandioca, a batata doce, o inhame... Dos frutos mais comuns,  e com relevância para a alimentação, destaque-se a manga, a papaia, a banana, a laranja,  a tangerina, o limão,  a cola, o cajú, o coco... A cana de acúcar também era cultivada, no litoral, destinando-se praticamente apenas para a produção de aguardente de cana.

Outras culturas, com valor económico e alimentar: o óleo de palma (extraído da palmeira de dendê, "Elaeis guineensis"), o coconote, gergelim...

Quanto á riqueza pecuária era estimada, em 1961,  em mais de 230 mil cabeças de gado bovino. Havia umas escassas dezenas de cavalos e mais de 3800 burros. Outros animais domésticos: cabras (c. 144 mil), porcos (c. 98 mil) e ovelhas (c. 54 mil). (Fonte: Dragomir Knapic, 1966, op. cit.).


Guiné 63/74 - P10614: Blogpoesia (302): O teu lenço (Juvenal Amado)



Lisboa, 18 de Dezembro de 1971 > Embarque do BART 3872


1. Em mensagem do dia 31 de Outubro de 2012, o nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872,Galomaro, 1971/74), enviou-nos este poema intitulado "O teu lenço":


O TEU LENÇO

O teu lenço acenando 
Tão só numa multidão 
As sirenes esmagam o teu grito 
A dor que permanecerá 
Será renovada em cada embarque 

Choram os teus e meus olhos 
Lágrimas que engrossam o Tejo 
De tanto nos verem passar 
Ficarão para sempre verdes as águas 
Turvas e repositório de saudade 

Os nossos olhos cobrem de nevoeiro a cidade 
As lágrimas perdidas na exaustão dos dias 
A cidade parece-me uma estranha 
Cinzenta sem um grito de revolta 
Cidade que se cansou de nos ver partir 
Permanece bela e fria como fêmea que rejeitou as crias 

Vais perdendo os contornos 
Vais-te diluindo na bruma da madrugada 
O teu rosto em breve confundir-se-á numa amálgama de prantos 
Só agora reparo que há uma parede de rostos e lenços 
O lenço branco acenando qual gaivota tentando voar 
Se essa gaivota me trouxesse o teu último beijo 
Saberia a Mar e à espuma dos anos

Juvenal Amado
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 2 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10606: Blogpoesia (301): Na ka misti tchora mas, Guiné (Luís Graça)

Guiné 63/74 - P10613: Histórias em tempos de guerra (Hélder Sousa) (14): Um poema-despedida da Naty, dedicado ao seu companheiro a caminho da Guerra Colonial

1. Mensagem do nosso camarada Hélder Sousa (ex-Fur Mil de TRMS TSF, Piche e Bissau, 1970/72), com data de 3 de Novembro de 2012:

Caros camaradas Editor e co-Editores
Por motivos profissionais não tenho estado muito 'colaborante', embora acompanhe na mesma o nosso Blogue por via das mensagens que sempre vão chegando.
Estou sempre esperançado que melhores dias virão (não estou a falar de política, nem de economia, nem da vida das pessoas em geral, estou a referir-me à minha disponibilidade de tempo...) e que nessa ocasião colaborarei mais.

Desta vez envio apenas um poema. Não um poema escrito por mim, não senhor, não tenho jeito, mas um poema escrito para mim. É um poema-despedida-incentivo que me foi presenteado na abalada para a Guiné pela então minha namorada, com quem casei e que encontrei quando arrumava alguns papéis.
Tem a data de 27 de Outubro pois seria por esses dias que teria partido mas, tal como relatei no primeiro artigo que enviei, nesse dia o "Ambrizete" fez-se ao largo da Baía de Cascais mas voltou para reparações e só segui viagem definitivamente cerca das 22:30 do dia 3 de Novembro, faz hoje exactamente 42 anos.

Se acharem por bem, podem publicar e podem incluir na série a que dei o nome de "Histórias em tempo de guerra".

Saudações a todos os camaradas
Hélder Sousa




Querido Companheiro

Vais partir, para um destino incerto,
Mas onde é certa a ameaça da vida.
Nos olhos levas o pranto e o espanto
Da tua cobardia à "doce" realidade.
Viveste no meio da tortura, hesitando e destruindo
Como se não fosse fácil escolher na tua idade!...
Vais de rosto lindo, cheio de amargura.
Tuas veias se contrairão para não espirrarem...
Sentes desmoronar tuas ideias, teus ideais,
Não, não digas nada, companheiro querido,
Eu sei que é por mim que vais!


Monte Real 2011 > VI Encontro da Tabanca Grande > A Natividade, esposa do nosso camarada Hélder Sousa e autora do poema publicado. A Natividade é tratada pela família e amigos por Naty, permitam-nos os dois que no Blogue fique também conhecida por este diminutivo.
Foto ©: Miguel Pessoa (2011)
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Notas de CV:

- Título do poste da responsabilidade do editor

Vd. último poste da série de 6 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10341: Histórias em tempos de guerra (Hélder Sousa) (13): Abuso de poder

Guiné 63/74 - P10612: Manuel Serôdio, ex-fur mil CCAÇ 1787 (Empada, Buba, Bissau, Quinhamel, 1967/68) (Parte IV): As Nossas Tropas


1.  Texto do Manuel Serôdio, que vive em Rennes, Framça, enviado a 23 de outubro último:

Cher Luis, voici encore une page en continuation de la dernière. Je te demande, (si ça ne te gêne pas) de m'avertir chaque fois que tu reçois une nouvelle page, afin que je puisse envoyer une autre, sachant que c'est bien la continuation de la dernière. Merci. Cordialement  [  Caro Luis, aqui vai mais  uma página, em  continuação da última. . Peço-te (se nºao for muita maçada) para me avisares ssempre que receberes  o meu material, para que te possa envirar o seguinbte. Obrigado. saudações cordiais]


2. Manuel Serôdio, ex-fur mil CCAÇ 1787 (Empada, Buba, Bissau, Quinhamel, 1967/68) (Parte IV): As Nossas Tropas (*)


Enquanto o inimigo evoluiu na sua organização e potencial de fogo, as nossas tropas continuaram na mesma, e o que é mais grave, as substituições de material, não se fazem ao ritmo que se impõe, apresentando-se o que agora existe, quando existe, em precárias condições de funcionamento. A mesma orgânica, cada vez mais fraca, não corresponde às necessidades existentes, e o armamento também não evoluiu como se impunha, não tendo hoje as nossas tropas com que contrabalançar o poder de fogo do inimigo. Basta ver o armamento de um bi-grupo inimigo, e compará-lo com o nosso, para imediatamente ressaltar a diferença.

Ao fim de 6 anos de luta, ainda não fomos capazes de dotar as nossas tropas com um lança-granadas tipo explosivo, como os que o inimigo dispõe, e em quantidade. Como é que as guarnições tipo Companhia ou Pelotão, resistem ao fogo dos canhões sem recuo, se estes ultrapassam o alcance do nosso morteiro médio?

Porque é que não se dota a Milícia com armamento eficaz? Só quem esteve em contacto com o inimigo, e lhes sentiu o potencial de fogo, pode apreciar as razões porque a maioria das Milícias se sentem complexadas.

Que dizer do material rádio, gasto e cansado, e que não é substituído?
Que dizer da falta de viaturas?
Que dizer da falta de explosivos?
Que dizer da falta de sobresselentes para tudo?
Que dizer da falta de equipamentos?
Que dizer da falta de artigos simples, como pás e picaretas?

Enfim, não nos alarguemos neste verdadeiro número de lamentações.

Da análise feita ao inimigo e às nossa tropas, resulta que os efetivos inimigos são superiores, que está melhor armado e ocupa áreas agricolamente ricas, onde pode subsistir perfeitamente, e ainda ajudar outras regiões. Que as operações levadas a efeito com várias Companhias,são frutuosas, na medida em que enfraquecem o inimigo, lhes causam perdas, e lhes destroem as instalações, mas que só a ocupação efetiva do terreno, e reordenamento das populações, são susceptíveis de terminar com a subversão.

Assim, para terminar com a subversão no sub-setor de Empada, torna-se necessário como mínimo o seguinte:

(i) Colocação de 1 Companhia de Caçadores em Gubia, com um destacamento em Paiunco, Ganafá ou Darsalame;

(ii) Construção de um novo aquartelamento na área de Cachobar em Ianguê, com elementos retirados de Gubia;

(iii) Uma Companhia de Intervenção para auxiliar a primeira fase de reordenamento da população;

(iv) Forçar as populações a reorganizarem-se em torno dos aquartelamentos, retirar 2 grupos de combate das áreas pacificadas, e construir um novo aquartelamento no cruzamento das estradas de Butumbali Beafada,dominando as bolanhas importantes da área, e forçando as populações a organizarem-se nas proximidades do aquartelamento;

(v) Estabelecimento em simultâneo de uma cobertura escolar e sanitária, conjuntamente com o dispositivo militar.

Este plano é concebido em linhas gerais, podendo se necessário, ser detalhado. Duas Companhias, uma das quais será recuperada no final da pacificação, é o mínimo que se julga necessário.

Caso não se queira resolver o problema, torna-se necessário reforçar a Companhia pelo menos com 2 grupos de combate, afim de poder atuar em profundidade, pois a atual dispersão não lhe permite grandes movimentos, e dotá-la de armamento suficientemente potente para inflingir ao inimigo em caso de ataque, perdas consideráveis.

Consideram-se,  neste caso, canhões sem recuo 10,6, e metrahadoras Breda, Brownig 12,7. Nas atuais circunstâncias, porque a própria formação da Companhia, que já é pequena, e se encontra dispersa por 3 aquartelamentos, quando a Companhia sai, muitos elementos têm que fazer serviço na véspera da operação, fazer esta, e no dia seguinte tornar a entrar de serviço, o que se torna extraordinariamente violento e contrapoducente.

É tudo quanto se afigura informar este Comando, esperando encontrar a compreenção e apoio, igual à vontade de bem cumprir, de que a Unidade se acha compenetrada.

(Continua)
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Nota do editor:

Último poste da série > 25 de outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10570: Manuel Serôdio, ex-fur mil CCAÇ 1787 (Empada, Buba, Bissau, Quinhamel, 1967/68) (Parte III): De Porto Gole a Cutia: Op Escudo Negro: conseguimos entrar no 'santuário' de Sará / Sarauol

Guiné 63/74 - P10611: Do Ninho D'Águia até África (23): O maldito dente (Tony Borié)

1. Vigésimo terceiro episódio da narrativa "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177, desta feita recorrendo a tercetos para o contar.


Do Ninho D'Águia até África (23)

O Maldito Dente!

Resumo da história de um dente que o Cifra, teve que mandar extrair, pois estava de cor preta e já bastante afectado, por falta de limpeza, do tabaco, algum álcool, e da água “medicinal” da bolanha.
Acordou pela manhã, cheio de dores, cá vai a história, feita desta maneira, não é em quadras, nem sendo um poema, talvez sejam uns versos, frases completas, frases soltas, ou então é qualquer coisa original, os companheiros, antigos combatentes, passaram por lá, vão por certo rir um pouco, e compreender.
As personagens são sempre as mesmas, os seus companheiros e amigos, que com ele viveram dois anos em Mansoa, o Trinta e Seis, o Setúbal, o Curvas, alto e refilão, o Marafado, o Mister Hóstia, o Pastilhas e outros mais, que o Cifra, lembrará para sempre, pelo resto da sua vida, e dos quais, continuará a contar histórias, algumas já quando eram emigrados tal como ele, e viviam na diáspora, mas que o destino o fez encontrar de novo, do lado de cá do atlântico.

Na noite anterior, tinha bebido, 
Com outros colegas, também tinha comido, 
Já fora de horas, não tinha dormido.

Por volta das cinco, ainda acordado, 
Não dormi ainda, viro-me de lado, 
Este lado da cara, está muito inchado. 

Vejo o Trinta e Seis, não sei o que faço, 
Olha para mim, com cara de palhaço, 
Com a mão na cara, mostro o inchaço. 

Tenho aqui um dente, que me está a doer, 
Ele me responde, vendo-me sofrer, 
Vai ver o Pastilhas, e já a correr. 

O Curvas estúpido, alto e refilão, 
Diz lá de cima, como eu sendo um anão, 
Não sejas guloso, não roubes mais pão. 

Responder p'ra quê, calar simplesmente, 
Ele olha-me de novo, e diz de repente, 
A merda do “chiclet”, fod..-te o teu dente. 

O Setúbal correndo, a ver o que passa, 
Chega-se a mim, quase que me abraça, 
Podes ficar bom, com papas de linhaça. 

O Arroz com Pão, camisa suja, 
Olha para mim, diz-me que fuja, 
Tens uma cara, tal uma coruja.

O Mister Hóstia, com terço na mão, 
Olha p'ra mim, com grande aflição, 
Vou rezar por ti, uma boa oração.

Vem lá do fundo, o Marafado, 
Toca na cara, mas com cuidado, 
Deve doer, como está inchado. 

O furriel grita, que se passa afinal, 
Para mim olha, a cara está mal, 
A mão vai ao bolso, fuma um “especial”. 

O sargento da messe, comendo um biscoito 
Vem ver o que passa, mas não muito afoito, 
Pois a minha cara, está feita num oito. 

Volto-lhe as costas, vou à enfermaria, 
O raio do Pastilhas, está de mania, 
Pergunta logo, o que é que eu queria.

Abri a boca, num grande repente, 
Mostrando-lhe a dor, no maldito dente, 
Será que ele não vê, o que um homem sente.

O grande sacana, vai logo a correr, 
O frasco do álcool, tentar esconder, 
Não pensando sequer, no que estou a sofrer.

Ele estava certo, em o frasco esconder, 
Pois de outras vezes, tinha mesmo que ser, 
O frasco roubavam, para logo beber.

Com cara manhosa, e com uns gestinhos, 
Abre-me a boca, e com uns sorrizinhos, 
Tira essa merda, se não vais prós anjinhos.

Os dentes são negros, dá-me um sermão, 
És um javardo, não tens mais perdão, 
Lava esses dentes, com água e sabão. 

Consulta marcada, espera sentado, 
Não vais agora, espera um bocado, 
Sofre dois dias, p'ra seres embarcado. 

No carro dos doentes, vim prá capital, 
Depois de andar, vejo o Hospital, 
Não desejo a ninguém, todo este meu mal. 

Entro no Hospital, vejo o Honório, 
Traz braço ao peito, vou ao consultório, 
Está muita gente, parece um velório.

Ponho o meu nome, com a mão direita, 
Estão lá três listas, e quase outra feita, 
O cabo enfermeiro, verá o que ajeita. 

Estou com dores, não suporto mais, 
Começo a gritar, perturbando os demais, 
O cabo enfermeiro, vem ver os meus “ais”.

Diz que me cale, está lá mais gente, 
Tenho que esperar, e não ser exigente, 
Eu digo que sim, mas que tire o meu dente.

Vendo-me assim, diz com embaraço, 
Tem paciência, vou ver o que faço, 
Pois vou eu mesmo, tirar-te esse inchaço.

Leva-me para dentro, na frente da gente, 
Manda-me sentar, e diz sorridente, 
Pergunta qual é, e tira-me o dente.

Gritei com a dor, ficando aliviado, 
Lava com “borato”, com algum cuidado, 
Dentro de três dias, vais ficar curado.

Pedi-lhe o meu dente, que queria guardado, 
Era o primeiro, que me tinham tirado, 
Do cesto do lixo, toma lá um bocado. 

Tonto com dores, sem nenhum tino, 
Limpando a cara, sem qualquer destino, 
Nem vim à cidade, beber o meu “fino”. 

Com baba e ranho, então regressei, 
Talvez dormindo, nem eu próprio sei, 
Ao meu lado alguém grita, merda, cheguei.

Semanas depois, bastante contente, 
Decifrando mensagens, com cara dormente, 
Cuspia bocados, do que fora o meu dente. 

Meses depois, sem dores realmente, 
Ria-me sozinho, já menos deprimente, 
Colocando o cigarro, no lugar do meu dente.
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 Nota de CV:

Vd. último poste da série de 30 de Outubro de 2012 > > Guiné 63/74 - P10594: Do Ninho D'Águia até África (22): Uma história de amor em pleno conflito (Tony Borié)

Guiné 63/74 - P10610: Parabéns a você (489): Ten General António Martins de Matos, ex-Ten Pilav da BA 12 (Guiné, 1972/74)

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 1 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10601: Parabéns a você (488): José Carlos Gabriel, ex-1.º Cabo Op Cripto do BCAÇ 4513 (Guiné, 1973/74)

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Guiné 63/74 - P10609: Notas de leitura (425): A Guiné na História de Portugal, de Rui Ramos (António Graça de Abreu)


Capa da História de Portugal, publicada recentemente em fascículos pelo jornal “Expresso”,  com a coordenação do historiador Rui Ramos mais a colaboração de Nuno Monteiro e Bernardo Vasconcelos e Sousa: no seu 8º. volume fala na nossa Guiné.

O livro foi originalmente publicado pela Editora A Esfera dos Livros. Autores: Rui Ramos,  Bernardo Vasconcelos e Sousa e Nuno Monteiro; Título: História de Portugal; Colecção: História Divulgativa; Nr de páginas: +/- 1000 + 52 extratextos; PVP /c Iva: 39 €; ISBN: 978-989-626-139-9; Formato:
16 X 23,5; Encadernação: Cartonado;  An o: 2009.



1. Texto de António Graça de Abreu [, foto à esquerda]:

A nossa História vai sendo feita, com a distanciação e a ausência de paixões possíveis, respeitando-se a verdade dos factos, respeitando-se a verdade histórica.


É por esta causa que me tenho batido neste blogue, ao longo de mais de cinco anos. Não contra as diferentes e naturais opiniões divergentes de cada um, mas contra os falsificadores da História que, às vezes, brotam na terra do blogue como cogumelos no Outono, cogumelos envenenados, se bem me faço entender. Tenho por detrás de mim o meu humilde, limitado conhecimento e entendimento das coisas do mundo. E, já agora, um mestrado em História (1999) pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. 

A mais recente História de Portugal, publicada recentemente em fascículos pelo jornal “Expresso” com a coordenação do historiador Rui Ramos mais a colaboração de Nuno Monteiro e Bernardo Vasconcelos e Sousa; no seu 8º. volume fala na nossa Guiné. 

Não resisto a transcrever uns tantos parágrafos, enquadrados convenientemente no período que todos vivemos, o fim da ditadura, o ocaso do regime de Salazar e Marcelo Caetano.
A páginas 21 e 22-23 desta História de Portugal leio: 

Perante a recusa do Governo português em negociar com eles a independência, (os movimentos de libertação) optaram pela luta armada. Nunca, porém conseguiram sujeitar Portugal a uma guerra com a intensidade da que os franceses enfrentaram na Argélia (1954-1962) ou os norte-americanos no Vietname (1964-1972). A partir de países vizinhos actuaram em zonas fronteiriças, através de pequenos grupos cuja acção principal foi a minagem de estradas e pistas ou a realização de emboscadas. Na Guiné, onde devido à pequenez do território o raio de acção da guerrilha foi maior, os 6.000 militantes do PAIGC nunca terão tido sob seu controlo exclusivo mais de 25.000 dos cerca de 500.000 habitantes.[1] Sujeitos a uma vida dura – as suas baixas em relação ao exército português eram 20 vezes superiores[2] –  e avassalados por querelas tribais e ideológicas, foram muito susceptíveis a deserções e traições: na Guiné, a PIDE tinha informadores “no núcleo mais chegado à direcção do PAIGC e ao próprio secretário-geral.”[3] 

(…) O exército português seguiu os manuais de contra-guerrilha: actuou através de pequenas unidades de infantaria ligeira, procurou “africanizar” a guerra e tentou obter a simpatia da população, contribuindo para a melhoria do seu nível de “bem estar.”

(…) Em 1974, 50 por cento das forças portuguesas eram do recrutamento local. Na Guiné, mais de metade dos choques com o PAIGC já era da responsabilidade dos 9.000 homens das milícias nativas. Nesta colónia, entre 1969 e 1974, o exército furou 140 poços e construiu 196 escolas, 630 diques e 8.313 alojamentos e garantiu cuidados de saúde ao nível mínimo da Organização Mundial de Saúde (1 médico por 10.000 habitantes).[4]

(…) Em Portugal, a ditadura impediu debates públicos e a sociedade rural forneceu soldados obedientes e acolheu, com agrado, os seus prés. Como constataram militantes da oposição, na província a guerra foi aceite depois de se perceber que “não matava tanta gente como se julgava.”[5] Eis a verdadeira chave da guerra de África, obscura e pouco mortífera, demorou a impor a urgência de outras soluções.

Leio, a pags. 39:
Da Guiné, a 24 de Outubro de 1972, o comandante-chefe (Spínola) informava Caetano de que o PAIGC “atravessa uma grave crise”, encontrando-se “em situação de manifesta inferioridade”. 


(Mas)

Como confessou depois de 1974, Marcelo Caetano concluíra “realisticamente” que a “independência” (de Angola, Moçambique e Guiné) era “inevitável.”[6]

Leio a pags. 44:


Marcelo Caetano deu aos generais a oportunidade de protagonizarem grandes manobras e gerarem grandes expectativas. Kaúlza e Costa Gomes chegaram a anunciar o “fim da Guerra”. Spínola compôs uma personagem característica, com monóculo e pingalim, e começou a lembrar o presidente de uma república africana. Aos jornalistas pedia para lhe fazerem perguntas “de maneira a que os seus leitores percebam que onde digo Bissau deve ler-se Lisboa.”[7] 

O seu objectivo, tal como o de Kaúlza, era provavelmente a eleição presidencial de Julho de 1972. A reeleição de Américo Tomás terá derivado, tanto da vontade de Caetano em conservar equilíbrios como da apreensão que já lhe inspiravam os “senhores da Guerra.”

Em Setembro de 1972, o chefe do Governo cooptou Costa Gomes para chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, apesar da oposição do Presidente da República. Mas deixou Kaúlza e Spínola a remoer dissidências. Ambos exageraram as vantagens que tinham supostamente adquirido entre 1970 e 1972. Kaúlza prometia a vitória se lhe dessem mais 10.000 homens e Spínola se o autorizassem a negociar com a guerrilha – para melhor culparem Caetano pelo arrastar da guerra. Na Guiné, Spínola deixou correr o rumor de que o Governo, para concentrar recursos em Angola e Moçambique, admitia desguarnecer o território e até provocar uma “derrota calculada.”[8]

A partir daí, os oficiais da Guiné encararam todas as dificuldades – como o abate de cinco aviões entre Março e Agosto de 1973 por mísseis terra-ar – de um ponto de vista apocalíptico. O PAIGC não conquistou nenhuma posição e só em Janeiro de 1974 atingiu outro avião. Mas tudo mudara psicologicamente.



Agora o meu comentário, António Graça de Abreu. 

Previam-se, de facto, cenários apocalípticos para a Guiné. Que não aconteceram pela simples razão de que o PAIGC não tinha força, diante de 40.000 soldados portugueses, mais 9.000 tropas africanas, como NT. Os guerrilheiros eram 6.000, apenas 2 a 3 mil no interior da Guiné, Não se registou nenhum apocalipse até à manhã de 25 de Abril de 1974. Mas a guerra ia acabar, tinha de acabar. Não houve derrotas militares nem vitórias militares, mas sim o sinuoso fluir das vontades dos homens por dentro das lágrimas do tempo. 


António Graça de Abreu 
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[1] Otelo Saraiva de Carvalho, Alvorada em Abril, Lisboa, , 1977, pag91/92.
[2] Luz Cunha, A Vitória Traída, Lisboa, 1977, pag. 72. 
[3] José Pedro Castanheira, Quem mandou matar Amílcar Cabral, Lisboa, 1999, pag.117 e 219-221. 
[4] John P. Cann, Contra Insurreição em África, 1961-1974, o Modo Português de Fazer a Guerra, Lisboa, 1998, pag.pags. 30-31, 136-138. 
[5] J. A. Silva Marques, Relatos da Clandestinidade, o PCP visto por Dentro, Lisboa, 1976, pags.85-86. 
[6] Marcelo Caetano, Depoimento, Rio de Janeiro, 1974, pag. 34 e O 25 de Abril e o Ultramar, Lisboa, 1977, pags. 13,15 e 64. 
[7] Avelino Rodrigues, C. Borga e M. Cardoso, O Movimento dos Capitães e o 25 de Abril, Lisboa, 1974, pag. 246. 
[8] Otelo Saraiva de Carvalho, Alvorada em Abril, Lisboa, 1977, pag. 142.

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Nota do editor:

Último poste da série > 2 de novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10607: Notas de leitura (424): O meu serviço cívico na Guiné, em 1991 (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P10608: Convívios (480): Mais um Encontro da Magnífica Tabanca da Linha, a levar a efeito no próximo dia 15 de Novembro de 2012, em Alcabideche (José Manuel Matos Dinis)

1. Mensagem do nosso camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 31 de Outubro de 2012:

Viva Carlos,
Aqui há tempos interpelou-me o nosso amigo Pires sobre a eventualidade de um novo encontro para o pessoal destas bandas. Fiz o que me competia, e pus-me em contacto com Sua Excelência o Sr. Comandante Rosales. Porque andou em fainas agricolas que a sua propriedade não dispensa, só agora foi possível concentrarmos atenções com vista ao evento.

Hoje, na Adega Camponesa, no Cabreiro, em Alcabideche, nas traseiras do novo hospital de Cascais, ficou tudo estabelecido. E estabeleceu-se da seguinte maneira:

No próximo dia 15 de Novembro, uma 5.ª feira, com hora de encontro marcada para as 12h30, realizar-se-á um almoço convívio entre os ex-combatentes na Guiné, não só para matar a fome, mas também para fazerem prova de vida, condição necessária para continuarem a receber as competentes reformas, e continuarem a manifestar alegrias por cada manhã que acordam com os pézinhos a mexer. 

Solicita-se também que contactem com aqueles que já manifestaram interesse por estas campanhas. São todos bem vindos, claro, e não se promete nada mais de especial do que um almoço diferente dos do quotidiano. Negociada a ementa, vai poder proporcionar-se alguma coisa que faça lembrar-vos os lautos almoços que se comiam na Guiné, principalmente nos resorts mais isolados, onde os gajos mais abonados se deliciavam com bianda e estilhaços.

Assim, haverá:
- entradas como de costume (a ver se no final também dão com a saída);
- sopa;
- filetes com... com? .... Bianda de feijão, pois claro!
- carne de porco à portuguesa;
- buffet de sobremesas;
-vinho, água, sumos, cerveja;
- café.

O preço, depois de uma grande zaragata, ficou fixado em 15,20 aéreos, mas o pessoal da FAP não tem descontos.

Façam o favor de confirmar as presenças até ao dia 13, tanto para o Sr Comandante - 914 421 882, como para este vosso escravo - 913 673 067.

Cá vos esperamos.

 A rogo do Sr Comandante, assino eu, identificado pelo Sr Carlos Vinhal
 JD
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 26 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10577: Convívios (479): Paraquedistas do Cartaxo, do 'antigamente' e do 'agora' , reuniram-se no 5 de outubro




Guiné 63/74 - P10607: Notas de leitura (424): O meu serviço cívico na Guiné, em 1991 (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Agosto de 2012:

Queridos amigos,
Rasgam-se cartas cujo significado é nulo. Mas foi uma experiência excitante, este serviço cívico em Bissau, entregue aos cuidados da Avó Berta, lendo a “História do Cerco de Lisboa”, de José Saramago, no silêncio que as instalações da CICER proporcionava, fazendo planos para Conselho Interministerial de Defesa do Consumidor que nunca viu a luz do dia.
A despeito dos insucessos, houve um enorme entusiasmo pela obra. Era o tempo em que se criavam partidos, na esperança de reconduzir a Guiné ao nível dos países menos atrasados. Foi esse tempo que se cruzou na minha vida e só resta a sensação de que o dever se cumpriu, mesmo não tendo ficado nenhuma memória daquele projeto de cooperação.

Um abraço do
Mário


O meu serviço cívico na Guiné, em 1991 (2)

Beja Santos

No final de Outubro de 1991, registavam-se progressos nos preparativos de um serviço para os consumidores guineenses, e todos nós estávamos de acordo com o crisma proposto, Comissão Interministerial de Defesa do Consumidor. Antes de sair de Lisboa, os meus superiores tinham sido categóricos quanto ao nível da ajuda, para pôr de pé esta célula, pagar honrosamente ao coordenador e a um funcionário administrativo, senhas de presença para cerca de 6 reuniões anuais, pagamento de impressos e uma ou outra brochura, eu que não excedesse os 8 mil contos na proposta.

Obtivera por parte do ministro a cedência de um espaço, dentro do antigo Quartel-General, destinado a sala de reuniões e um gabinete para o coordenador e serviço de apoio, tudo numa decadência absoluta, levei lá um técnico da Soares da Costa que fez um orçamento realista para tornar aquele espaço acolhedor, funcional. É no meio destas atividades que recebi a visita de Quebá Soncó, o primogénito do régulo Malã, Cuor. Vinha convidar-me a assistir à tomada de posse do novo régulo, de nome Mamadi. Este estivera hesitante em aceitar, já tinha passado a fase de perseguição aos régulos, agora havia aceitação do poder tradicional, mas ficara por definir qual o poder efetivo que o PAIGC autorizava aos régulos. Também pelo Quebá soube que no Leste, um pouco à semelhança do que se passava por todo o país, se formavam novos partidos, o que estava a ganhar grande popularidade na região era o Movimento de Bafatá, inequivocamente tribalista, pois circunscrito a Fulas e Mandingas.

Fui a Missirá e houve grandes alegrias. E depois seguimos para a povoação de Geba, em franca ruína. O ponto mais tocante desta viagem foi a ida a Biana, no regulado de Badora, onde visitei o meu querido amigo Serifo Candé. Abraçou-me e disse-me: “Sabia que me vinhas buscar, sei que me vais dar trabalho em Portugal, estive nos Comandos, aqui tratam-me mal, embora esta seja a minha terra, tem paciência leva-me contigo”.

Felizmente que vivia absorvido pelo meu trabalho, este suavizava-me de todas aquelas dores antigas, persistentes. E apareceram dois juristas que iam dando apoio à elaboração dos documentos de competências e da regulamentação interna do Conselho. No início de Novembro, aparecia o primeiro programa televisivo “1 Milhão de Consumidores”, foi para o ar antes do episódio da telenovela “Sinhá Moça”, o grande êxito do momento, o conteúdo de 10 minutos prendia-se com as escolhas alimentares e a higiene dos alimentos, senti-me muito feliz por ver a minha proposta de texto do guião passada para crioulo.

Por esse tempo, comecei a questionar os quadros dos diferentes ministérios acerca de possíveis candidatos para o cargo de secretário coordenador do Conselho, indicaram-me uma jurista que era mulher do chefe de Estado-Maior da Armada e uma socióloga que vinha da Sorbonne (no entanto, fizeram-me o reparo que tinha sido companheira de um altíssimo dirigente que caíra em desgraça ao tempo do chamado golpe de Paulo Correia, de 1985, talvez o presidente Nino não apreciasse muito ver a dita senhora em tais funções…).

Prometera em 1990 trazer o Cherno Suane para Portugal, o seu processo seguia de vento em poupa na embaixada de Portugal, ele viria em Fevereiro de 1992, nacionalizou-se português e ficou como grande deficiente das Forças Armadas. Continuava os contactos com várias agências das Nações Unidas, organizações não-governamentais, todos me asseguravam que eu não alimentasse grandes esperanças nos apoios governamentais para o meu projeto, aliás essa tal defesa do consumidor iria colidir com interesses instalados. E as notícias que me chegavam de outros projetos eram francamente desanimadoras. Dizia-se à boca cheia que os soviéticos se tinham retirado do empreendimento da central elétrica porque as autoridades guineenses não honravam os seus compromissos, o Banco Mundial recusava-se a mandar mais um dólar pois não havia qualquer empenhamento na redução da dívida externa, que era escandalosa ao tempo.

O dia-a-dia era absorvente e os serões, com o trabalho trazido de Lisboa, atenuavam as saudades, a Joana estava com 20 anos e a encetar, com sucesso, o seu curso de Filosofia, a Locas, com 15 anos, com grandes problemas de entendimento e aproveitamento na área das Ciências.

Preparei os guiões para os próximos 6 programas televisivos, estava encantado por redescobrir o prazer em escrever para a televisão, dela vivia arredado há 11 anos, pois fora afastado da RTP em 1980. O adido para a cooperação da embaixada de Portugal, Domingos Machado, apoiava as minhas diligências para o reforço do projeto da defesa do consumidor. Com o Ministério da Educação pensou-se num curso destinado a professores sobre educação do consumidor, seriam módulos que eu iria organizar para sessões a realizar em Bissau, Bafatá e Bula. Nunca esqueci a reunião com a Diretora-Geral de Educação (que era esposa do ministro Mário Cabral), recebeu-me com os óculos presos com fita gomada, vendo-me o olhar pasmado explicou-me que não havia nenhum oculista em Bissau, estava à espera que uma pessoa amiga viesse até Lisboa.

À porta da Pensão Berta assisti a uma discussão acesa entre partidários do movimento de Bafatá e da Frente Democrática, novidade tão nova não podia haver na Guiné. Ao tempo, o grupo de críticos do PAIGC exprimia-se publicamente nos jornais. E por essa época, junto de um artista que trabalhava batik, de nome Dinis, encomendei para a Joana três peças em batik para aplicar num biombo de bambu.

Novembro caminha para o fim, já existe um plano para as obras das instalações onde funcionará o Conselho, o ministro aprovara uma minuta para o despacho presidencial, parecia ter encontrado um conjunto de quadros dos ministérios com vontade de ser atrelarem às atividades de defesa do consumidor, à cautela preparei um curso intensivo de 3 dias para haver compreensão dos diferentes direitos, dos aspetos legislativos básicos e do que poderiam ser ações eficazes de informação e a preparação de professores numa ótica de apreciação das necessidades básicas do povo guineense. Reencontrei Benício Costa, agora secretário-geral da Assembleia Nacional Popular, fora um aluno exemplar da Cristina até 1973, ano em que fugiu para se encontrar com o PAIGC em Conacri. Deu-me a grata notícia de que tinha estabelecido contato com amigos em Bolama para me dar a pernoita no fim de semana que eu pretendia lá passar.

Entretanto, inclinava-me para a candidatura da secretária coordenadora da socióloga, sentia-a verdadeiramente interessada, Cherno Suane andava entusiasmado com a vinda para Portugal, informava-me cheio de orgulho que iria trabalhar para a construção civil no Algarve, tinha informações que era uma terra com calor, até lembrava a Guiné.

No início de Dezembro, a convite do adido para a cooperação, visitei o complexo hortofrutícola do Quebo, o programa agrícola onde a cooperação portuguesa mais investia. Durante o almoço descobri que os professores de agronomia que ali trabalhavam pertenciam à Junta de Investigações Científicas do Ultramar, inevitavelmente falou-se de Ruy Cinatti e Teixeira da Mota. No regresso, felizmente perto de Bambadinca a viatura do adido para a cooperação pifou, quem veio salvar a situação foi um dos mecânicos que trabalhavam para o Fodé Dahaba. Mas o mais empolgante foi viajar por aquela estrada nova que passava perto de Mato de Cão, havia grandes mudanças, toda aquela região estava povoada, ainda saí da viatura para ver se chegava ao embarcadouro onde esperava as embarcações militares e civis, mas o tarrafo era enorme, limitei-me ao rumorejar do Geba, assim curti saudades.

Era um mercado cheio de vida, lá dentro e cá fora. Hoje é um escombro, nunca se redimiu dos incêndios que o assolaram no conflito político-militar de 1998-1999

É um dos locais mais charmosos de Bissau, em Novembro de 2010 ali voltei a cortar o cabelo. Tenho a certeza que não há barbearia mais portuguesa naquele ponto de África, ainda por cima dali se vê o Bissau Velho irreconhecível.
Fotos ©: Mário Beja Santos. Direitos reservados

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 29 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10589: Notas de leitura (423): O meu serviço cívico na Guiné, em 1991 (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P10606: Blogpoesia (301): Na ka misti tchora mas, Guiné (Luís Graça)


Lourinhã > Cemitério local > 1 de novembro de 2012 > O que é a morte ? "Sete palmas de terra e um caixão" !?... Lembremo-nos, hoje, dia 2 de novembro,  de todos os nossos  mortos na Guiné, em especial os que morreram durante a guerra colonial, entre 1961 e 1974, incluindo os insepultos, e ainda os nossos ex-camaradas guineenses que foram sumariamente executados a seguir à independência. Tenhamos também um pensamento de solidariedade para com todas as vítimas da violência na Guiné, as de hoje e as de ontem.

Foto: © Luís Graça (2012). Todos os direitos reservados





Videoclipe de Anastácio de Djens - N'cansa tchora guine - Produção: TVKlele. Um dos temas, o 4º, inseridos no álbum musical, não comercial, com videoclipes da TV Klele, distribuídos juntamente com a pasta do Simpósio Internacional de Guiledje (Bissau, Guiné-Bissau, 1 a 7 de Março de 2008).

O álbum tem por título Guiné-Bissau, Terra de História e Cultura. A televisão comunitária TV Klele, do Bairro Quelélé, de Bissau, tem o apoio da AD - Acção para o Desenvolvimento. O tema musical deste videoclipe é fortíssimo. Mesmo não entendendo a 100% toda a letra (em crioulo de Bissau), não consegui ouvi-lo e vê-lo, pela primeira vez, em 2007,  sem me emocionar. Anastácio de Djens, que eu conheci por ocasião do Simpósio, em Março de 2008, era então uma das vozes mais belas e promissoras da nova geração musical guineense. Na altura escrevi: "Oxalá haja oportunidades de trabalho para ele desenvolver e dar a conhecer o seu grande talento, a sua voz, a sua sensibilidade, dentro e fora da Guiné-Bissau, país de grandes músicos e de grandes tradições musicais". 

Daqui de Lisboa, em dia de  cristão e não.cristãos lembrarem os seus mortos,  vai um grande abraço, amigo e solidário, para ti, Anastácio (de quem perdi o rasto), e para todos os jovens da tua terra que cantam e dançam a tua música. Um abraço também para a talentosa rapaziada da TV Klele. E, claro, para o Pepito, a malta da AD e todos os nossos amigos guineenses, grã-tabanqueiros ou (ainda) não... Eles são, todos eles, os melhores filhos da Guiné, os únicos que nos interessa conhecer... Os esbirros, os torcionários, os carrascos não são são guineenses, são apátridas, são iguais em toda a parte do mundo, em todos os tempos da história...

Vídeo (5' 25''): You Tube > TVKlele (2007) (com a devida vénia...)


Na ka misti tchora mas, Guiné (*) (**)

por Luís Graça

[No dia dos mortos
dedicado a todos os mortos da guerra colonial na Guiné, 
entre 1961 e 1974, 
de um lado e do outro,
e a todas as demais vítimas da violência 
que se seguiu,
desde a independência da Guiné-Bissau até hoje]

Quem disse que tu, Guiné-Bissau,  não tens futuro ?
Não fui eu, que pouco valho.
Não foi o dari,
que não tem seguro
de acidentes de trabalho.
Nem de saúde-doença.
Quem disse que o futuro não passa por aqui,
por esta terra verde e vermelha,
amarela e preta ?
Quem é que assim pensa ?
Não, não foi o macaco fantango,
que trabalha sem rede,

não tem cheta,
nem protecção social no desemprego,

muito menos na velhice.
Nem o desgraçado do macaco-cão
que vai à mesa do rico e do pobre
como se fora leitão 

da Bairrada,
frio ou quente.
Nem o mandinga, 

bom negro e melhor crente,
tocador de Kora,

Braima Galissá,
que se foi embora, 

ou o virtuoso do balafon,
o Kimi Djabaté,
todos em busca de outro tchon
livre do som da Kalash,

longe do poilão de Brá.

Quem disse que Deus, Alá,

e os bons irãs
não montaram morança nesta terra ?
Não foi o muntu.
Não foi o tucurtacar pangolim.
Não foi a rapaziada
do Bairro do Quelélé.

Não foi o fula nem o nalu.
Não foram as aves do Cantanhez,

que nunca tocaram o tambor da guerra.
Não foi o verde, o vermelho, o amarelo
da tua bandeira.
Não foi a estrela negra.

Não foi a Titina Silá
a guerrilheira.
Não foram os homens grandes do Gabu.
Não foi o tuga, 

nem foste tu 
nem fui eu.

Ah!, 

como está ainda bem longe, Cabral,
o ideal
por que lutaste e morreste,
uma vez, e outra vez,
tu e tantos outros combatentes da liberdade da pátria.
Nada que tu não saibas, Amílcar,
lá no Olimpo dos deuses e dos heróis,

ou no inferno dos que morrem de morte matada,
ou não soubesses já,
cá na terra dos homens,
que a História é fértil em exemplos de efeitos perversos,
de Revoluções que devoram os seus filhos,

de filhos que matam os pais,
de netos que renegam os seus avós,
de bisnetos que cortam o cordão umbical com os avoengos...


Tudo isto, para te dizer, Cabral
que eu ouvi os jovens do teu país cantar o teu hino,
no antigo acampamento Osvaldo Vieira (!),
nas matas do Cantanhez profundo,

(esse mesmo, o Vieira, 
que há quem diga que foi o teu Judas!),
com o mesmo fervor do que quaisquer outros jovens
noutras partes do mundo.

Pelo menos os teus sabiam a letra,
a letra escrita por ti,
e até a música que foi composta, 

eu não sabia,
por um obscuro músico chinês,
o Sr. Xiao He,
no tempo do Livrinho Vermelho
que muitos de nós leram
uns com paixão,  
outros com um sorriso de desdém...

Quem disse, afinal, que tu, Guiné, 

não tens futuro ?
Se não o foi macaco fidalgo,

nem a cobra verde enroscada no cocuruto
da palmeira de dendê,
foram os teus inimigos,
os de fora e os de dentro,
os teus filhos bastardos,

os que te beijaram como Judas beijou Cristo,
para depois te trairem e assassinarem,
te matarem como a um cão,
em Conacri, 
no chão francês.
Os teus torcionários, 
os teus esbirros,
os teus carrascos,
esses e os filhos bastardos de outras nações.
Os que dizem mal de ti, Guiné,

os que te usam e abusam,
os que te violam,
os que te querem comprar
a preço de saldo,

os agiotas,
e que te arrastam pela lama do tarrafo.
E que dizem que és um narco-Estado.

E que já nem tem soldados, rasos,
briosos e patriotas,
que te defendam até à última gota do seu sangue.
E que vives da caridade internacional.
E que já não tens fé, 

nem esperança,
nem voz,
nem lágrimas para chorar

os teus filhos, e são tantos!, 
que já morreram por ti,
ou que morreram contigo.

Que já não tens alma
nem salvação
nem pudor, 

Guiné.
E que tu, Cabral,  

pai fundador,
morreste como o Ché,
como o Cristo,
como o Luther King,
e está enterrado,
na antiga fortaleza colonial da Amura,
ao lado de heróis e de traidores,
na promiscuidade da história.
Que amargura!

Os teus jovens,
os teus músicos,

os teus poetas,
os teus artistas,
os teus artesãos,

os teus quadros na diáspora,
as tuas televisões comunitárias,
as tuas rádios locais,
o teu novo Lamparam,
o teu Bombolom digital,
e até os centros de saúde no mato,
são a prova da tua grande vitalidade,
engenho,
imaginação,
talento,
alegria,
nobreza,
criatividade,
espontaneidade,
afabilidade,
hospitalidade,
vontade de vencer o círculo vicioso
da pobreza,

e o parto da guerra e da violência,
monstruoso.
Do teu povo, Guiné,

virtuoso,
afável,
pobre mas nobre,
de Norte a sul,
dos Bijagós ao Quitafine,
de Iemberém ao Quelélé,

de Quinhamel ao Gabu,
de Lisboa a Paris.

Eu acredito em ti,
país-irmão,

povo-irmão.
Eu quero acreditar em ti,
Guiné,
eu quero remar,

na minha frágil piroga de cidadão do mundo,
de europeu e de português,
de igual para igual, 
contra a maré do cinismo,
inimigo tão mortal
como o mosquito do paludismo

ou o vibrião da cólera.

Eu acredito nas tuas mulheres,

que te levam às costas,
que suportam o teu céu,
e alimentam as tuas raízes,
essas mulheres empreendedoras e corajosas,
que montam fabriquetas de descasque de arroz,
ou que, em casa, fazem o seu óleo de palma
e cozinham a tua galinha de chabéu.

E ainda têm tempo 

para ir à pesca e ao mercado,
e com os restos do dendê fazer o sabão.
Que têm tempo para cuidar dos teus meninos.
E para lavar os seus pobres panos.
Essas mulheres que no Cacheu travam o avanço do Sará,
com as suas mãos frágeis cheias de sonhos.
Eu acredito,
no talento dos teus jovens, criativos,
Eu acredito ainda na força telúrica
e na generosidade dos homens e mulheres
que lutaram, por ti,
em Cassacá,
no Como,em Cadique,
no Boé,
no Morés,
em Gandembel,
em Guileje,
em Sara Sarauol,
no Fiofioli,
na Ponta do Inglês,
no Choquemone,
em Sinchã Jobel.
Com as armas na mão,

com as ideias na cabeça
e com sonhos no coração.
Para que tu fosses livre
e independente,
e fosses justa
e fraterna.
Uma Tabanca Grande,
grande como a bolanha de Bambadinca,
outrora verde e prenhe de arroz,
e aonde iam apascentar os búfalos.
Uma Tabanca Grande
onde cabe o Muntu e o Nalu,

os netos e os avós,
os fulas e os balantas,
os papéis e os bijagós,
os quatro pontos cardeais,
os homens grandes
e as mulheres grandes,

as tuas bajudas,
lindas como as as rosas das roseiras,
as tuas meninas
que um dia não precisarão da faca da fanateca.
Onde cabem os teus frondosos poilões
e as tuas vaidosas cabaceiras.

Onde caibam todos os teus lugares de culto,
as tuas balobas, 
as tuas igrejas 
ou as tuas mesquitas apontadas para Meca.



Para que os teus filhos, Guiné,
tenham a merecida paz,
todos os dias do ano,

todas as horas do dia e da noite,
a liberdade,
a justiça,

a tolerância,
o milho, o arroz e a mandioca,
o mafé e o chabéu
com que se mata a fome

e se sonha, acordado, 
e se dança,
de Farim a Bandim.
Enfim, a dignidade
a que os teus filhos têm direito
no seio da Mãe África
e do resto do mundo globalizado.

Ah!, 

a paz, 
a tão frágil paz
que leva tanto tempo a consolidar,
e o tão suspirado progresso que não chega,

a água potável que não chega,
a escola que não há,
o medicamento por desalfandegar,
o petróleo por jorrar,
... ou que é tão lento, 
tão desesperadamente lento,
ou só chega para uma meia dúzia de privilegiados,
a nomenclatura do poder e do dinheiro,

sem pátria, 
sem cor, 
sem rosto...

Mas para isso, Guiné. 

terás que fazer a ponte
com o passado,

a fonte 
da tua identidade.
Mas para isso não poderás ignorar
nem escamotear os marcos
(de sinal mais e de sinal menos)
do passado,
bem como as raízes das lianas
e dos poilões da tua guineidade.

Como te imploram os teus filhos,
não queiras chorar mais, Guiné!
N ka misti tchora mas!
Faz das tuas lágrimas
a força do macaréu
da tua revolta
e do teu ânimo
que te ajudarão a abrir a Picada do Futuro,
a construir o Novo Carreiro do Povo,
a Nova Estrada da Liberdade,

de Buruntuma a Fulacunda.
Que eu só desejo que seja
tão grande, larga e fecunda
como os teus rios míticos,
do Cacheu ao Cumbijã,
do Geba ao Cacine.
Ou tão límpidos e belos e selvagens
como o Corubal.

E que o Nhinte-Camatchol,
o grande irã dos nalus, 

te proteja,
Guiné, Tabanca Grande.

E o Deus dos cristãos, 
dos grumetes do Geba e da Amura, 
E o Alá dos fulas, mandingas e beafadas.
E os irãs dos balantas, manjacos, papéis, bijagós
e demais povos ribeirinhos, animistas,
que todos eles te inspirem 
e te protejam!


(*) Não queiras chorar mais, Guiné: Título pedido emprestado ao cantor Anastácio de Djens

(**) Sucessivamente revisto, aumentado e melhorado:

Iemberém, 1/2 de março de 2008 (visita ao Cantanhez)
Bissau, 28 de fevereiro e 3/7 de março de 2008 (Seminário Internacional de Guiledje)
Lisboa, 12/13 de abril de 2012 (Golpe de estado na Guiné-Bissau)
Alfragide, 10 de outubro de 2012
[a seguir ao episódio nº 25 da série "A Guerra",
realizado por Joaquim Furtado,
e que passou na RTP1],
Alfragide, 2 de novembro de 2012, dia (cristão) dos Fiéis Defuntos

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quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Guiné 63/74 - P10605: In Memoriam (132): A Cindinha, a esposa do bendandense Tony Teixeira, deixou-nos hoje, o seu funeral é amanhã, 6ª feira, dia 2, às 10h30, em Espinho, seguindo depois para Vidago, sua terra natal


Lourinhã > Praia do Porto Dinheiro > 18 de agosto de 2011 > Almoço de aniversário da Alice > A Cindinha, esposa do nosso camarada António Teixeira (Tony).



Lourinhã > Praia do Porto Dinheiro > 18 de agosto de 2011 > Almoço de aniversário da Alice > Da esquerda para a direita, a Alice Carneiro  (de costas), a Cindinha e, por detrás, dela o Pinto Carvalho e o Tony Teixeira. Na ponta direita, a Dina, esposa do nosso camarada, Jaime Bonifácio Marques da Silva, ex-alf mil pára em Angola (c. 1970/72)de quem já temos falado aqui no nosso blogue.


Lourinhã > Praia do Porto Dinheiro > 18 de agosto de 2011 > Almoço de aniversário da Alice > Juntaram-se lá, na Tasca da Tia Augusta,  diversos casais para saborear uma boa caldeirada e uma saborosa sopa de navalheiras: eu e a Alice, a Joana e o Joana, o Pinto de Carvalho e a Zé, o Laurentino Marteleira e a Glória, o Jaime e a Dina, o Rogério e a esposa, o Tony Teixeira e a Cindinha (, um casal simpatiquíssimo de Espinho que tínha acabado de chegar, nessa semana, ao nosso convívío, pela mão do Pinto de Carvalho).



Lourinhã > Praia do Porto Dinheiro > 18 de agosto de 2011 > Almoço de aniversário da Alice > A Cindinha e o Tony Teixeira.


Lourinhã > Abelheira > 17 de agosto de 2011 > A Cindinha, na casa de um outro casal amigo, da nossa tertúlia da Louirnhã, os Marteleira (Laurentino e Glória).


Lourinhã > Abelheira > 17 de agosto de 2011 > A Cindinha, na casa de um outro casal amigo, os Marteleira, da nossa tertúlia da Lourinhã.

Fotos: © Luís Graça (2011). Todos os direitos reservados

1. Do nosso amigo e camarada Tony Teixeira recebemos esta dolorosa notícia: 

Enviado: quinta-feira, 1 de Novembro de 2012 1:25
Assunto: Notícia

Venho vos comunicar, que após um longo sofrimento, a Cindinha, minha mulher, partiu esta noite calmamente e com dignidade.

Quero aqui em meu nome e em nome dela, agradecer a todos os nossos amigos que acompanharam este longo caminho, que sempre estiveram ao nosso lado e que sempre nos acarinharam e deram força. Bem hajam.

O funeral será na sexta feira pelas 10,30 horas, na Igreja de Espinho, seguindo depois para Vidago, sua terra natal.

Tony


2. Às 9 da manhã de hoje, sexta-feira, transmiti à, pelo correio interno, à Tabanca Grande a triste notícia da morte da Cindinha, que foi comunicada pelo próprio António Teixeira:

Amigos e camaradas:

Mesmo "anunciada", a morte continua a ser um mistério e um momento de grande dor para quem fica do lado de cá: a família, os amigos... A Cindinha, que eu conheci há dois anos, nas férias de verão, na Lourinhã,  era uma senhora com uma enorme dignidade, que sabia a doença que tinha, e que era já uma réplica viva da "Pietá".

Eu e a Alice guardamos dela uma doce recordação. Conhecemos o casal através do Pinto Carvalho e da Zé, que também fazem parte da tertúlia de verão da Lourinhã. A caminho da Lourinhã, onde hoje vou fazer o "culto dos meus mortos", sou surpreendido com esta notícia do nosso amigo e camarada "bedandense" Tony Teixeira..  Quero transmitir-lhe a ele e à sua família a nossa solidariedade na dor e também a nossa admiração pela coragem e dignidade da sua companheira de uma vida. A Cindinha, que descanse em paz. Honraremos a sua memória.

Quanto à nossa Tabanca Grande, permitam-me que leve a notícia a todos e a todas, os/as amigos/as e camaradas da Guiné. Ao fim de 9 anos somos já uma "grande família" e a morte de um(a) de nós é também um poucochinho a morte de todos nós. 

Irei fazer quando regressar da Lourinhã um pequeno notícia para a série In Memoriam. A Cindinha merece, o Tony merece este gesto de ternura, solidariedade e compaixão da nossa parte.

 Luís Graça.



3. Mensagens de condolências que chegaram à nossa caixa de correio, vindas da nossa Tabanca Grande:

(i) José Vermelho (3h01)

Caro Luís Graça: Acabei de receber a seguinte mensagem enviada pelo António Teixeira. 
O Mário Bravo já me tinha dado, entretanto, a infausta notícia. (...).

(ii) António José Pereira da Costa (12h48)

Não conheci a Cindinha. Julgo que nunca foi ao blog.
De qualquer  modo leva-lhe o meu pesar.

Um Ab.


(iii) Rui Santos (13h06)

Meu amigo Luis Graça: Estas notícias não se agradecem, nem se esperam, mas sou obrigado a agradecer pois o infortúnio do Toni é para mim muito forte, e já lho comuniquei directamente.

Para ti um grande abraço, Rui Santos.


(iv) Fernando Sucio (15h06)

Os meus sentimentos, Tony, desejo-te muita coragem para enfrentares este doloroso momento.

(v) F. Gomes (15h34)

Embora não tenha conhecido a senhora, nem o marido, a dor de quem parte é sempre menor quando compartilhada. Infelizmente sei o que isso dói e quando não existem compartilhamentos, ainda dói mais.
Um abraço de solidariedade ao camarada Tony Teixeira e força daqui para a frente.


(vi) João José de Lima Alves Martins (18h31)

Luís Graça e Toni Teixeira:

Um grande abraço de solidariedade nestes momentos que são sempre dolorosos, mas pelos quais todos vamos passando ao longo das nossas vidas.

O bedandense 
João Martins.


(vii) Joaquim Pinheiro (22h14)

Cá do outro lado do Atlântico, os meus pesares!!!!
Joaquim Pinheiro da Silva e esposa

São Paulo / Brasil


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Nota do editor:

Último poste da série > 23 de outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10560: In memoriam (131): Nelson Fontes Ribeiro, ex-Alf Mil do COT 1 (Guiné, 1970/71)