segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10882: Notas de leitura (445): "Diário da Guerra Colonial - Guiné 1966-1968", por Luís de Matos (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Outubro de 2012:

Queridos amigos,
Aqui se põe termo a uma viagem à volta do diário de Luís de Matos, que pertenceu à CCAÇ 1590, uma unidade que andou pela intervenção sobretudo na região norte, Ingoré, Suzana, S. Domingos, Sedengal, daí as inúmeras referências aos patrulhamentos, batidas e operações junto da fronteira.
São apontamentos a olhar o humano, a registar as lágrimas de partidas, trata-se de um combatente que se sente com a obrigação de abraçar todos os cometimentos da sua companhia, e daí o cuidado pelo registo das operações, os usos e costumes e o peso da solidão.

Foi graças ao nosso confrade Carlos Pedreño Ferreira que tive acesso a esta peça tão estimável de alguém que não se sentiu predestinado para escrever para a história mas para juntar os feitos de todos os seus camaradas.

Um abraço do
Mário


Diário da guerra colonial, por Luís de Matos (2)

Beja Santos

Luís de Matos vai finalmente de férias, em Março de 1967. Quando regressar, incluirá nas suas notas o que se passou na sua ausência: emboscada do seu pelotão entre S. Domingos e Sonco, em 10 de Abril; houve levantamento de rancho em S. Domingos, as refeições iriam melhorar um pouco. Chega de férias em 3 de Maio e tira uma fotografia com o Furriel Ratinho, natural de Cunheira, concelho de Alter do Chão, Segundo Sargento Ramalho, natural de Montoito, ele, natural de Terena, conselho de Alandroal, e o Furriel Zorro, natural de Santo André, concelho de Estremoz. E escreve: “Trouxe comigo na bagagem uns paios caseiros alentejanos, para entregar ao Florimundo Garcia, que a tia Bernarda me pediu para levar ao seu futuro genro”. Em 7 de Maio, S. Domingos “embrulha”. Em 10 de Maio parte para uma batida, não houve contacto. Aqui e acolá há sinais do IN, assaltos a tabancas, minas anticarro, emboscadas. Em 10 de Junho escreve que há uma base guerrilheira que dá pelo nome de S. Domingos, localizada a cerca de 2 quilómetros da fronteira com o Senegal. Parte uma operação para tentar localizar e destruir tal base. Fala em mortes do IN, mas não ficaremos a saber se a base foi destruída. Em 20 de Junho, regista o insólito: “O Mário Silva é do 3º Pelotão que está em Susana. Disse-me que o seu pelotão com mais de 50 Felupes, foi fazer uma operação junto à fronteira do Senegal. O meu grupo de combate ficou instalado do lado de cá, mas os Felupes, armados com espingardas Mauser e catanas, não sei onde foram nem por onde andaram, o que sei é que passado pouco tempo apareceram carregados de frigoríficos, máquinas de costura e algumas cabeças espetadas em paus. Só podem ter ido a uma qualquer aldeia do Senegal, ali mesmo junto à fronteira”. Em 25 de Junho, participa na operação destinada a destruir a base de Campada, junto à fronteira do Senegal. Descreve minuciosamente a progressão. A um quilómetro de Barraca Poilão, o IN embosca mas a reação foi de tal ordem que se pôs em fuga. Encontraram casas de mato há muito tempo abandonadas. Continua a progressão até Cutene Pesse, aqui descobrem 17 casas, mas o IN desaparecera. O IN, sempre que pode, molesta as tabancas da região. Os sobressaltos na região de Susana são constantes. Quando chegam as nossas tropas, as tabancas dão sinais de abandono, é preciso ir buscar as populações ao mato.

Estamos em Julho, o pelotão de Luís de Matos parte para o “paraíso”, de Sedengal. Mais uma vez ele descreve o ambiente. Lançam-se ao trabalho, cortam palmeiras, refazem os abrigos. E escreve: “No Sedengal, praticamente assumi os trabalhos de remodelação do sistema defensivo como se fosse coisa minha. Nós temos de ter um bom sistema de abrigos. A par deste trabalho, também construímos pequenas pontes, pois basta colocar vários troncos de palmeira ao lado uns dos outros, são pequenas melhorias mais favoráveis no dia-a-dia das populações". Percorre a tabanca, vai atento, pretende saber a maneira como eles se sentam, os utensílios que utilizam para cozinhar, como comem e o quê, etc. Visitam as tabancas das redondezas, ele sente-se feliz pelo facto de a sua companhia ter assentado arraiais. Anda a ler obras de Leon Uris e de Jean Lartéguy. Começa-se a fazer uma horta junto à bolanha. Chegou entretanto uma máquina de calcular FACIT, a contabilidade foi revolucionada. Vê-se que há gosto registar as pequenas coisas: "o 1º cabo atirador António Sousa foi promovido a cozinheiro; ao alferes e aos furriéis servem-nos de vez em quando uns bifinhos de gazela como nunca tínhamos comido, acompanhados com puré de batata e salada; os soldados no norte continuam a meter vinho tinto na sopa". E descreve o Sedengal: "é um pequeno aquartelamento, feito à base de abrigos construídos com troncos de palmeira, reforçados com bidões cheios de terra, tudo está vedado com troncos de palmeira e valas. Pelo norte, existe a tabanca com cerca de uma centena de habitantes". Chove torrencialmente e escreve no diário a 29 de Julho: “As chuvadas têm a sua beleza. O cheiro da terra, chilrear da passarada, de que não sei o nome da maior parte deles, a verdura da mata e das ervas são muito diferentes daquelas da metrópole que estou habituado a ver no meu Alentejo”. No Ingoré, não param os patrulhamentos, o IN está cada vez mais destemido, intensifica-se, do lado das nossas forças armadas, a montagem de emboscadas. Continua bem informado do que se passa no Ingoré. Um sargento do quadro explicou ao vagomestre Zorro as vigarices que são possíveis para desviar géneros: "desvio de vinhos, de latas de salsichas, azeite, de volumes de tabaco, sacas de arroz". E filosofa: “Como em todas as guerras, há sempre gente pronta a tirar proveito para si, à custa da desgraça alheia".

Em Agosto realiza-se a operação “Desmamar”, vão duas companhias, um pelotão de milícias e um pelotão de caçadores nativos, progride-se de Ingoré a Canchungo, procurar uma base do IN, nada foi encontrado. Nesse mês, Luís de Matos não ganhou para o susto, houve um grande rebentamento, foi projetado, recompôs-se depressa. Nunca larga o filão das operações em que outros pelotões da sua companhia são envolvidos, fala na ação psicossocial a tabancas como Antotinha, Blanzar e Gunal, os comandantes dos grupos de combate levam folhas de tabaco para oferecer aos homens, o enfermeiro distribui medicamentos e trata os ferimentos. E não esquece datas: “Faz hoje precisamente um ano que na estrada entre Bissorã e Barro, durante uma emboscada de que fui alvo, morreu o condutor Matos, não há vez nenhuma que veja as fotografias das viaturas acidentadas, que não as imagine todas as fumegar, e veja ali o pobre do soldado Matos, cortado ao meio”.

No Sedengal, ele parece o cronista da companhia, para o melhor e para o pior. Viera para o Senegal o alferes Tavares de Almeida, e três furriéis, ele, o Ratinho e o Valeiras. Em Novembro, o Valeiras fazia serviço de sargento de dia e o alferes participou ao capitão que o Valeiras não agira oportunamente numa ameaça de levantamento de rancho. Sucederam-se as punições, o Valeiras foi transferido para o Pel Caç Nat 58, passou 25 meses na Guiné. E dá o seu ponto de vista sobre a situação do Valeiras: “Veio da Casa Pia, onde aprendeu vários ofícios. Não é propriamente um operacional, visto que a sua especialidade é de armas pesadas. É um moço calmo e descontraído, não faz mal a uma mosca. Logo havia de apanhar pela frente um alferes que não lhe perdoou aquela pequena falha. Que diabo, estamos todos no mesmo barco. E quem é que não comete erros?”.

Em finais de Novembro, o seu pelotão regressão ao Ingoré, o leitor volta a ter descrições detalhadas das flagelações a Ingoré e mesmo ao Ingorezinho. Sempre dado aos pormenores, desenha aspetos pitorescos, a começar pelos soldados do seu pelotão. Alguns exemplos: “O Gomes é um moço que mais parece um gigante. Com o seu metro e noventa e cento e vinte quilos de peso, tem força que nem um leão. Paciente e calmo, encara toda esta vida com um sorriso estampado no rosto. Gosta de beber o seu copo e quanto mais melhor. O Soeiro é bom rapaz, franzino, anda sempre com um sorriso miudinho como que a querer espantar o medo por onde quer que ande, ou a querer ser simpático para toda a gente. Parece-me que mal pode com a G3”. Em finais de Abril, partem do Ingoré para Bissau. E escreve a 10 de Maio: “É sexta-feira. Embarquei de regresso à metrópole, a bordo do paquete Niassa. Abraços e mais abraços”.

E assim termina um relato singelo e sincero, tudo adubado com fotografias, a lista da CCAÇ 1590, a lembrança dos que já partiram, o hino de “As Gazelas”, da autoria do 1º Cabo Escriturário José Manuel Pereira Ciblote, as ementas a bordo, tudo minudências de quem quer homenagear toda a CCAÇ 1590.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 28 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10872: Notas de leitura (443): "Diário da Guerra Colonial - Guiné 1966-1968", por Luís de Matos (Mário Beja Santos)

Vd. último poste da série de 30 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10877: Notas de leitura (444): Um reparo à descrição da Operação Nebulosa inserta no livro "Alpoim Calvão - Honra e Dever" (Jorge Félix)

3 comentários:

Tony Borie disse...

Olá Mário.
Gostei do resumo, são vivências que nós todos passámos e é bom, e devemos recordar.
Continuo a dizer que espero os textos, onde contas as tuas passagens, com detalhes miudinhos, pelas terras da Guiné, depois de sairmos de lá.
Será que estão nos teus livros?. Se estão, diz-me como posso comprá-los, daqui onde me encontro.
Um abraço, e que 2013, seja um ano bom para todos.
Tony Borie.

Arménio Estorninho disse...

Caros Amigos Luís de Matos/Beja Santos, Saudações.

Foi com muita curiosidade que li estes resumos do "Diário da Guerra Colonial-Guiné 1966/68," neles são mencionados locais e populações que me são "familiares."

Como lembranças e coincidências havidas entre a minha Ccaç. 2381 "Os Maiorais" e a Ccaç. 1590 "As Gazelas", que no entanto nunca se cruzaram, mas frequentaram os mesmos "trilhos:"

A Ccaç. 2381, no final de Abril/68, embarcou em comboio especial de Abrantes(RI 2) para Lisboa, tendo em 01 de Maio/68 embarcado no NTT Niassa e com destino a Bissau. Chegado deu-se o transbordo para a LDG 101, que seguio com destino a S. Vicente-Ingoré e tendo chegado a 08 de Maio/68.

De forma vice-versa, a Ccaç. 1590, em finais de Abril/68 embarcou em LDG no Porto de S. Vicente Ingoré e de regresso à Metrópole em 16 de Maio/68 tendo desembarcado no Porto de Lisboa.

Com Abraços
Arménio Estorninho

Rogerio Cardoso disse...

Amigo Luis Matos
Também não me posso esqueçer, que a viatura em que o teu condutor Matos faleceu, era a viatura Paulucha (espécie de auto-metralhadoura), construida por mim e meu pessoal, nome que batisei em homenagem à minha filha nascida em Nov.-64.
Um abraço amigo
Rogerio Cart643-AGUIAS NEGRAS