sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10835: Notas de leitura (441): "Prece de um Combatente Nos Trilhos e Trincheiras da Guerra Colonial", por Manuel Luís Rodrigues Sousa (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Setembro de 2012:

Queridos amigos,
Trata-se de uma gema de sinceridade, aquilo que chamamos partilha de afetos.
Manuel Sousa toca-nos pela sua observação de todo aquele tempo em Jumbembém, está ali o registo de muita camaradagem e do saber superar tanta inquietação e provação. Os lazeres, os pequenos negócios de bar e barbeiro, os desvios manhosos de um cabritinho para o forno, a história da tijela do fuzileiro de Ganturé que ele irá oferecer ao Paulito, ficamos com a impressão de que estamos a assistir ao crescimento de um ser humano que ganha consciência que nada ficará como dantes.
E assim foi.

Um abraço do
Mário


"Prece de um combatente": memórias de um soldado em Jumbembém (2)

Beja Santos

“Prece de um Combatente, Nos Trilho e Trincheiras da Guerra Colonial”, de Manuel Luís Rodrigues Sousa, 1ª Edição, 2012, pode ser adquirido através do Sítio do Livro, Lda. (www.sitiodolivro.pt).

São as memórias de um nosso confrade, que combateu em Jumbembém, no sector de Farim, ali viveu em 1973 até Julho de 1974. 
Trata-se de uma escrita cuidada, profundamente afectiva, é alguém que se compraz a falar do quotidiano, das armas, dos patrulhamentos, da missão árdua e responsável do picador, dos reforços, da correspondência para as madrinhas de guerra. 

Respeita a ordenação temporal, descreve com pormenor o que aconteceu em Guidage, naquele terrível mês de Maio de 1973, fala do que viu, também. Em Março ou Abril de 1973, Jumbembém foi reforçado com um pelotão de caçadores nativos. Em 17 de Junho, um dos elementos deste pelotão pediu ao seu comandante, alferes Nuno Gonçalves da Costa, para seguir na coluna de Jumbembém para Cuntima, mas o alferes não autorizou a sua deslocação, tratava-se de um militar indisciplinado, aquela negativa era uma forma de o castigar. O militar desfechou dois ou três tiros de G3 no seu superior, recorde-se que nessa época não havia possibilidade de se evacuar quem quer que seja por falta de meios aéreos, o oficial veio morrer dos ferimentos.

Estamos perante um autor que não quer omitir até os seus pequenos pecados, como desviar laranjas que estavam ao seu cuidado, alambazou-se, mas sempre com o cuidado de ir tirando todas as caixas para que o desfalque não fosse notado. 

Manuel Sousa é um homem atento e a natureza prende-o, vemo-lo observador do arvoredo, das tempestades e dos tornados, dos obeliscos onde, perto, se hasteava a bandeira nacional, enumera as músicas que se pediam ao PIFAS (Programa Informativo das Forças Armadas). Dá-nos conta do que escrevia às suas madrinhas de guerra, caso de um aerograma datado de 12 de Março de 1973: 

“Vejo em si a minha confidente, imagino-a até como a minha Nossa Senhora que me ampara e, como tal, veja nesta minha missiva uma oração, uma prece deste combatente, para que continue a conceder-me a graça da sua simpatia e do seu conforto”.

Dentro deste espírito de observação, não regateia elogios a camaradas pela sua vigilância evitaram desaires. É o caso do Zé ou Zeca e também conhecido por “Oh Égua”. O Zé tinha olhos de lince, em 5 de Novembro de 1973, ia o pelotão ativar a picada entre Jumbembém e Lamel, em direção a Bricama, depois do esforço de desobstruir um caminho há muito sem uso, estavam a descansar mas o Zeca permaneceu de pé e veio dizer aos camaradas que tinha visto uns gajos entre o mato ali à frente. Quando logo a seguir foram atacados ripostaram e puseram em fuga o grupo guerrilheiro, tudo graças ao olho vivo do Zé.

Grande parte do seu relato está centrado num chão cheio de minas e armadilhas, importa não esquecer que Jumbembém ficava perto de um corredor bastante frequentado pelos guerrilheiros que vinham do Senegal, todas as picadas apareciam minadas com bastante frequência e a propósito conta episódios onde prevaleceu a sorte e outros onde triunfou a morte. 

Em Janeiro de 1974 foi passar férias a Bissau, o seu sonho era tirar a carta de condução, juntara cuidadosamente 500 escudos por mês, quando acabou as férias fez exame e foi aprovado. Em Fevereiro regressa a Jumbembém por via do rio Cacheu. É informado que numa violenta emboscada entre Jumbembém e Lamel perdera a vida mais um camarada bem como três outros militares de um pelotão de madeirenses, ao que parece pelo mau manuseamento de um dilagrama. As minas são uma presença constante e ele escreve episódios felizes de minas desativadas nas diferentes picadas seja em direção a Cuntima ou a Canjabari ou a Farim. Em pleno carnaval Jumbembém foi flagelada, não houve feridos mas as paredes ficaram cravadas e esventradas pelo impacto das granadas do RPG7.

Constituem-se amizades e ele refere os nomes, tal como descreve quezílias e pancadarias, cenas de mau vinho, de um modo geral no dia seguinte a malta abraçava-se e desapareciam os ressentimentos. Havia empreendedorismo em Jumbembém, era o caso do Amadeu, que decidiu instalar um tipo de esplanada com serviço de cafetaria e também de barbeiro, bem como o serviço de fotografia, este então um verdadeiro sucesso.

Na véspera do 25 de Abril de 1974, Jumbembém experimenta uma flagelação com mísseis, era a primeira vez que viam o efeito desta arma, deu para perceber que os guerrilheiros iam progressivamente ajustando o fogo, mas não provocou grandes danos.

Com o 25 de Abril, inicialmente nada mudou, sucederam-se as minas entre Jumbembém e Lamel, a ponte de Lamel foi totalmente destruída, felizmente as minas anticarro foram detetadas a tempo e destruídas. Em 11 de Junho, os guerrilheiros do PAIGC visitam Jumbembém. Todos tiraram uma fotografia para a posteridade. E escreve: 

“Findo o encontro, foram disponibilizadas viaturas para transportar os guerrilheiros até Fabantã, através da velha picada em que o Zeca nos alertou. No dia seguinte, foi marcado encontro entre as suas partes junto a ponte de Lamel, para levantamento de minas que uns e outros tinham colocado ali nas proximidades. Reparei que um dos chefes do PAIGC se fazia transportar num pequeno jipe descapotável, de estrutura muito frágil. Era um veículo de origem sueca”

Segue-se a despedida de Jumbembém, há semblantes muito tristes de alguma população: 

“Deixávamos para trás aquela gente com quem tínhamos convivido desde Janeiro de 1973 a Junho de 1974 com a angústia estampada no rosto pela incerteza do seu futuro”

Passam por Canturé, aqui vão ficar a substituir os fuzileiros. O autor conta que trouxe uma tigela em inox que ofereceu a um menino, o Paulito, fora recolhido pelos seus pais, ele nunca esqueceu esta prenda, a tigela dos fuzileiros de Ganturé.

A comissão de Manuel Sousa está a acabar, em 29 de Agosto embarcam em Bissalanca para Lisboa, feito o espólio de fardamento segue para Santa Apolónia, está praticamente sem dinheiro mas a camaradagem tudo resolve. Do Porto parte em direção ao Tua, está sem cheta mas está por ali um táxi que pertence a Cândido “Russo”, de Castanheiro do Norte, aldeia que se situa entre o Tua e Carrazeda de Ansiães: 

“Sabia que ele era também proprietário de uma pequena indústria de alfaiataria, com sede naquela aldeia, onde um meu primo, o Orlando, tinha trabalhado. Solicitei então para me levar a casa, depois de lhe dar a conhecer a afinidade que eu tinha com o Orlando, com a condição dos seus serviços serem pagos pelos meus pais no destino”

É a alegria do regresso, segue-se a caminhada de 9 quilómetros até à aldeia de Folgares.

A vida recomeça sempre, Manuel Sousa vai para a GNR, chega a sargento-ajudante. As suas memórias chegam ao fim, há fotografias e lembranças de muita gente, depois os convívios polarizam a saudade destes homens de Jumbembém. Há fotografias do antes e do depois, há muitas fotografias, o blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné também cooperou.

O que é sincero e genuíno vem sempre ao de cima, acaba por tomar conta desta prosa, e tocar-nos pela autenticidade, do princípio ao fim. Vale mesmo a pena acompanhar o Manuel Rosa naqueles tempos de Jumbembém.
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Nota de CV:

(*) Vd. poste anterior de 17 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10811: Notas de leitura (440): "Prece de um Combatente Nos Trilhos e Trincheiras da Guerra Colonial", por Manuel Luís Rodrigues Sousa (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Antº Rosinha disse...

"feito o espólio de fardamento segue para Santa Apolónia, está praticamente sem dinheiro"

Nem há dinheiro que pague a este soldado!