quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10828: Conto de Natal (4): Era uma vez tantos soldados na guerra (Armando Pires)

1. Mensagem do nosso camarada Armando Pires (ex-Fur Mil Enf.º da CCS/BCAÇ 2861, Bula e Bissorã, 1969/70), com data de 16 de Dezembro de 2012:

Meu Caro Luís Graça.
Amigos e Camaradas Editores.
Quando enviei o meu ultimo relato, o 4º da série "Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista", despedi-me até depois do Natal.
Tanto bastou para que, pelo telefone, me chegassem dois remoques - Olha lá, então não falas da noite em que as barbas do Pai Natal arderam?

Reconhecendo a razão de quem assim protestou, escrevo, mas decidi fazê-lo em forma de conto.
Dedico-o a vós, meus editores, e a todos os camaradas que sentiram essa dolorosa experiência de um Natal em guerra e sem família.

Reitero aqui o meu desejo de que esta Festa seja o continuar da Glorificação da vossas Famílias.
Abraços.
Armando Pires


Breve Conto de Natal

Era uma vez tantos soldados na guerra

Por Armando Pires

E foram tantos sem saber bem porquê nem para quê.
Foram, simplesmente.

Alguns ainda meninos de coração inquieto e peito alvoraçado, outros homens feitos de vida dura e mãos calejadas, uns e outros quando tinham os sonhos iluminados por resplandecentes sóis de vida e amor, depois povoados de saudades e medos.

Uma manhã, o despertar foi ao som da algazarra nas casernas, anunciando a chegada do Natal. Mas aquele seria um Natal estranho e diferente dos que antes haviam tido.

Sem neve, sem frio, sem árvore de mil luzes a brilhar, sem lareira, sem chaminé, sem o calor da casa, sem o amor da família que ficara lá tão longe.

Eram pais, mães, irmãos, mulheres, filhos, que amargavam agora a tristeza daquele lugar vazio à mesa, disfarçando a dor em filhoses ensopadas de lágrimas, em fatias de peru que sabiam a fel, partilhando desesperadas orações ao menino que nessa noite havia de chegar, para que depois protegesse o outro menino, o seu, que estava na guerra, sabe Deus em que sofrimentos metido.

Lá onde eles estavam, bem que dispensavam as peúgas de lã, a camisa de linho puro, as luvas de pele forradas, tudo o que naquelas noites o Pai Natal lhes deixava no sapatinho.
Por isso, no correio militar, mandaram-lhes chouriços e queijos, nacos de presunto e broa, figos secos e nozes, e até um chocolate, Santo Deus, para adoçar a boca do menino.

Foi uma festa pegada, lá na guerra, quando chegou a hora de desfazer os embrulhos. Nem faltou um Pai Natal para dar mais verdade à noite.

O Meneses, beirão de Viseu, ali a fazer de furriel, irrompeu no quarto dos seus pares exibindo umas fartas barbas brancas, feitas do algodão que na enfermaria lhe deram. Por entre aplausos celebrando a chegada de tão significativa personagem, ele a todos foi distribuindo mangas e cajus frescos, que tirava da saca que trazia às costas, enquanto ia desejando um Bom Natal.

Foi então que um outro furriel, o Gesteiro, vindo do mar de Peniche, chamou o Meneses a dar a volta pela festa dos outros homens, a começar pelos seus, que eram os das transmissões, e a acabar nos do Meneses, que eram os mecânicos das viaturas. E saíram prometendo voltar.

Mas que diferentes vieram.

O Gesteiro gritou ao Pires que acudisse ao Meneses. Tinham ardido as barbas de Pai Natal.

Levados pelo Pires, que era o enfermeiro, de um lado o Meneses sofrido com a pele do rosto queimada, do outro o Gesteiro a contar que o Meneses lhe pedira lume, que o cigarro tinha a ponta mesmo à flor do algodão, e que foi um repente para que o lume tomasse conta das barbas.

Lá na enfermaria, pensando como havia de tirar o algodão da cara do Meneses, o Pires ficou estarrecido quando ele lhe disse que para prender as barbas usara um pouco de cola lá da sua oficina.
Foram momentos de grande aflição os que aqueles três homens passaram.

O Meneses de olhar vítreo e temendo a dor. O Pires procurando a forma de, com mil cuidados, tirar o algodão da cara do Meneses sem trazer a pele atrás. O Gesteiro, todo ele era uma aflição.

De um lado para o outro, vagueando pela enfermaria, culpabilizava-se pelo sucedido, pedia desculpas ao Meneses dizia ao Pires, “tem cuidado oh amigo, tira isso devagar”.

No fim, o Pires, mostrando ao Meneses, num espelho, como a pele do seu rosto tinha sido salva, avisou-o:
- Olha pá, para prevenir vou já injectar-te com um anti-inflamatório.
- Oh Pires, e isso não vai doer?
- Dada por outro, ia, dada por mim vai doer mas poucochinho. Mas tem que ser.

Vai o Gesteiro, num desvario, agarra com firmeza o braço do Pires e determina:
- Oh amigo, não pode ser. Quem teve a culpa fui eu, dás-me a injecção a mim.

Em Bissorã, uma estrela voou no céu, e em Belém, a sorrir, nasceu o Deus Menino.

Bissorã, 24 de Dezembro de 1969.

Bissorã, 1970 > À esquerda, de pé, o Gesteiro, fur. mil. de transmissões, ao seu lado o Meneses, fur. mil. mecânico auto, à direita, em primeiro plano, o Pires, ao seu lado um civil que era vedor e ali fazia prospecção de águas.
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 19 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10824: Conto de Natal (3): Papagaio Verde Versus Estrela do Norte (3) (Armor Pires Mota)

2 comentários:

José Marcelino Martins disse...

Pode parecer "ridícula" a decisão do Giesteiro:
_ Oh amigo, não pode ser. Quem teve a culpa fui eu, dás-me a injecção a mim.

Não, para mim que não conheço nenhum dos intervenientes, apenas posso dizer que é SOLIDARIEDADE e CAMARADAGEM

Bispo1419 disse...

Mais um naco de bela prosa do Armando Pires.
Mais um ternurento relato sobre um "mundo" onde os seus seres viviam imersos na beleza e no horror, onde a raiva e a doçura, a esperança e o seu contrário, a ordem e o desleixo, a dádiva e o egoísmo, a revolta e a calma (submissão) se entrelaçavam num jogo de vida e morte.
Tudo isto praticamente à margem da vivência do seu país natal onde os dias corriam sem que a sua paisagem social e política desse sinal da existência do tal "mundo".
Um grande abraço, meu caro Armando
Manuel Joaquim