segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Guiné 63/74 - P10694: Notas de leitura (430): "Crónica dos (Des)Feitos da Guiné", por Francisco Henriques da Silva (1) (Mário Beja Santos

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Outubro de 2012:

Queridos amigos,
O livro do nosso confrade Francisco Henriques da Silva gira à volta do conflito político-militar que avassalou a Guiné-Bissau em 1998-1999 e deixou sequelas até ao presente.
É o relato de alguém que é pressionado a ter que agir celeremente enquanto Bissau está a ferro e fogo, há vidas a proteger, evacuações melindrosas, há que atuar à procura de uma paz. O embaixador não arreda pé, a própria embaixada é atingida, as instâncias do poder não lhe agradecem. Só em 22 de Julho, o presidente Jorge Sampaio lhe envia uma mensagem, exprimindo o seu maior apreço pela coragem e serenidade que desde há semanas ia dando provas, comportamento que dignificava a diplomacia e a Nação Portuguesa.
Este relato é de leitura compulsiva, sentimos todos uma ponta de orgulho pelo comportamento deste nosso confrade.

Um abraço do
Mário


Crónica dos (Des)feitos da Guiné (1)

Beja Santos

Francisco Henriques da Silva foi alferes miliciano, pertenceu à CCAÇ 2402 (BCAÇ 2851) combateu em regiões como Có, Pelundo, Bissorã, Mansabá e Olossato (1968-1970). Em 1997 regressou, desta feita como embaixador de Portugal. E a roda da fortuna permitiu-lhe viver na primeira pessoa páginas de ouro da vida diplomática portuguesa. Assistirá e terá um desempenho relevante no conflito político-militar que eclodiu em 7 de Junho de 1998. Sobre o que observou e viveu resolveu passar a escrito com um título esclarecedor: “Crónica dos (Des)feitos da Guiné” (Edições Almedina, 2012). O mínimo que se pode dizer é o que o seu testemunho constitui um contributo incontornável para o estudo da Guiné-Bissau neste período tão conturbado em que os militares deram o sinal que estavam acima das instituições e já não dependiam do sistema político ou da ordem constitucional.

Entrou em funções em Outubro de 1997. Foi-se apercebendo das diferenças abissais na Guiné que conhecera cerca de 40 anos antes, e como se estivesse a escrever num diário foi anotando a degradação do Bissau Velho, a corrupção latente em toda a sociedade, as aproximações oportunistas, os equívocos da cooperação, um país com o Estado ausente. Aqui e acolá, vai pontuando as suas observações com pilhérias que deixam o leitor a conter a gargalhada com relatos assombrosos, como este, à volta de um jantar que deu na sua residência para receber o secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros de Portugal, José Lamego, e para o qual convidou dois ministros guineenses, o dos Estrangeiros e o da Justiça, para além de outros altos funcionários. Seriam dez da noite quando um empregado da residência lhe disse estar lá fora o Dr. Kumba Ialá. Segue o relato:
“Com o seu inconfundível barrete vermelho, a necessitar urgentemente de uma lavagem, suando e a tresandar a álcool, com um sorriso de orelha a orelha, irrompe pela sala Kumba Ialá. Olha ostensivamente para o relógio de pulso e num tom de voz estentórico diz:
– Meu caro embaixador, desculpa lá eu vir tarde, já passa das dez, mas não tenho fome. Ena, pá, tanta gente! Alguns eu conheço…
– Oh, dr. Kumba, isso não tem a menor importância – disse eu, sem me desmanchar, perante os olhares meio sorridentes dos dois Ministros presentes – Diga lá, o que é que que tomar?
– Um sun-sun (aguardente de caju) – retorquiu.
– Bom, isso não há, mas tenho algo de parecido. Lá pedi ao Augusto que lhe servisse um conhaque ou um brandy e deixei-me ficar por perto. Entretanto, José Lamego aproximou-se também.
– Ora, cá está o Secretário! Sabe quem é este gajo? – e aponta com um dedo esticado para Delfim da Silva, enquanto emborcava o conhaque – Este foi um dos que roubou os meus votos, por isso é que eu perdi as eleições. Sorriso amarelo por parte do visado e dos circunstantes que se entreolharam um tanto embaraçados.
– Mas este ainda é pior – e vira-se, então para o Ministro da Justiça, Daniel Ferreira – Este é que é um dos responsáveis pelos 20.000 votos que perdi nos Bijagós. Estes é agora Ministro da Justiça, secretário! Ouça o que eu lhe digo, esta gente do Governo não é séria! Mas vocês dão-lhe confiança”.

É um diplomata que envia regularmente para as Necessidades informações sobre a tensão crescente na Guiné-Bissau: o rumor do profundo descontentamento da Forças Armadas, onde já não se excluía a confrontação, e vivendo a bipolarização entre os antigos combatentes (os indefectíveis do PAIGC e maioritariamente apoiantes de presidente Nino Vieira) e os novos quadros, homens que frequentaram ou estagiaram em estabelecimentos de ensino militar no estrangeiro, gente na casa dos 40 anos, não só letrada mas com uma vivência concreta de outros países; um caos económico decorrente de uma adesão ao franco CFA que correu bastante mal na fase de arranque; a rebelião do Casamansa que levou ao tráfico de armas e à pressão internacional para impedir qualquer forma de apoio aos rebeldes dessa região; um 6º Congresso do PAIGC que revelou fissuras profundas mas também uma grande incapacidade para se inserir numa sociedade multipartidária um antigo partido único; enfim, a tríade presidente da República-militares-PAIGC, outrora um elemento constitutivo indispensável do país estava em franca desagregação. É neste quadro que Nino Vieira demite Ansumane Mané enquanto uma comissão da Assembleia Nacional Popular dá como provada a isenção do brigadeiro e responsabiliza altos quadros do PAIGC por envolvimento no tráfico de armas. Acresce que nessa mesma linha apareceu uma carta-panfleto dos Combatentes da Liberdade da Pátria, proferindo ataques pessoais ao presidente e acusando a alta hierarquia da Forças Armadas por prática de várias irregularidades e até ilícitos criminais. É neste contexto com grandes incógnitas para o aprofundamento da democracia na Guiné, e logo a seguir à exoneração de Ansumane Mané que estala o levantamento militar, logo a seguir Bissau vai tornar-se numa inacreditável carreira de tiro.

Aos primeiros rebentamentos, o embaixador desloca-se para a chancelaria e agarra-se ao telefone, na aparência as forças fiéis ao presidente da República controlavam a situação mas começaram a surgir notícias que na região de Brá-aeroporto as forças amotinadas estavam a receber apoio popular. Os combates prolongaram-se durante todo o dia, imediatamente se pôs a questão de como garantir a segurança dos portugueses que, aliás, começaram a bater à porta da embaixada. Como proteger os portugueses? Até que surge uma chamada telefónica providencial, o comandante do cargueiro “Ponta de Sagres” propõem-se deslocar-se para Bissau para recolher refugiados. Iniciam-se as negociações para uma possível evacuação, isto enquanto Nino Vieira já pedira a intervenção direta da Guiné Conacri e do Senegal, as forças rebeldes afinal não tinham sido controladas, o fogo de obus começava a atingir o centro de Bissau, mas também a área das embaixadas, as granadas caiam mesmo no porto do Pidjiquiti. Bissau era uma cidade sitiada, aqui moviam-se à vontade às forças leais ao presidente. Do perímetro militar de Brá, do aeroporto de Bissalanca e dos bairros periféricos de Bissau, a junta militar bombardeava as posições governamentais, enquanto as baterias de artilharia destas últimas, muitas vezes nas imediações de igrejas, hospitais, embaixadas estrangeiras e de outros edifícios civis, disparavam a eito sobre o dispositivo rebelde, escreve Henriques da Silva. A embaixada portuguesa é pequena para acolher tanto português. O embaixador escreve: “Comia-se onde calhava e o que calhava; faziam-se as necessidades em determinados lugares que rapidamente se tornavam insalubres e viveiros de todo o tipo de bactérias e doenças”. Felizmente que a embaixada tinha adquirido arroz para as comemorações do 10 de Junho. E durante 4 dias, até à evacuação pelo cargueiro “Ponta de Sagres” comeram “arroz com 10 de junho” ou “massa com 10 de junho”, servia-se em pratos de cartão com um ou dois croquetes, pastéis de bacalhau, rissóis de camarão ou uma fatia de fiambre. Felizmente para todos, chegou a hora da grande evacuação, em 11 de Junho.

(Continua)
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Notas de CV:

Vd. último poste da série de 16 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10679: Notas de leitura (429): "Da Guiné à Angola O Fim do Império", pelo Coronel Piçarra Mourão (Mário Beja Santos)

5 comentários:

Anónimo disse...

É o segundo livro, que eu me lembrem, escrito pro um embaixasor português, sobre a Guiné-Bissau independente...

Vd. aqui a recensão do MBS:


SEGUNDA-FEIRA, 25 DE SETEMBRO DE 2006
Guiné 63/74 - P1113: Notas de leitura (1): Dez razões para ler 'Em tempos de inocência', diário do Embaixador A. Pinto da França (Beja Santos)

http://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/2006/09/guin-6374-p1113-dez-razes-para-ler-em.html

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Comentário do editor (LG)

Anónimo disse...

O procedimento da diplomacia portuguesa naquele momento (1998) foi um dos momentos em que Portugal teve um Ministro dos Negócios Estrangeiros à altura, e embaixadores a acompanhar, evidentemente.

Os ilheus dão bons ministros de N. estrangeiros.

Têm mais cultura para essas coisas.

Penso que Timor ficou resolvido também com o mesmo ministro.

Claro que do Continente também sairam bons ministros, mas em geral aprenderam ou falaram com os tais ilheus, ou mesmo de origem colonial africana, indiana ou brasileira ou filhos de emigrantes.

Claro que falo destas coisas porque fui obrigado a olhar para compreender coisas novas: Fui retornado e emigrante.

Foi uma oportunidade de ver coisas que nunca pensei um dia olhar para elas.

Antº Rosinha

Cherno Baldé disse...

Caro Rosinha,

E, ainda assim, como costumas dizer, não impede que a diplomacia e a cooperação portuguesa, em geral, continue a não acertar o passo com as "suas ex-colónias". Certo?

Um abraço amigo,

Cherno Baldé

Luís Graça disse...

... Atenção: a sensibilidade sociocultural e o capital de relações sociais do pessoal diplomático são dois factores que, a meu ver, podem ajudar a desempenhar melhor o papel de representação de um país no exterior. Os embaixadores na Guiné-Bissau A. Pinto da França e o o nosso camarada Francisco Henriques da Silva acho que tinham esse perfil, pelo que eu li (do livro do primeiro) e pelo que conheço (embora pouco) do segundo...

Antº Rosinha disse...

Cherno, a diplomacia internacional portuguesa raramente funciona como deve ser.

Se Portugal ainda não desapareceu do mapa em quase mil anos, deve-se aos portugueses, porque se fosse devido aos governantes já tinha desaparecido.

Deve-se aos portugueses das diversas origens, e muitos milhares também vieram ou são da Guiné.

Mas Cherno, sabes que quem tem governado Portugal todos estes anos foram os predominantemente «anti-colonialistas» e mais «pro-europeistas» de maneira que a falta de cultura desta gente está a quilómetros de saber onde fica Portugal.

Foi um Madeirense e um Açoreano os melhores Ministros dos Estrangeiros durante estes 38 anos.

Cumprimentos