quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Guiné 63/74 - P10475: Blogpoesia (306): S. T. T. L., Sit tibi terra levis!... Que a terra da tua Pátria, ao menos, te seja leve!.. (Luís Graça)


[Imagem à esquerda: Guernica, de Picasso, 1937. Óleo sobre tela, 349 cm × 776 cm. Museu Rainha Sofia, Madrid, Espanha... 

Imagem do domínio público: Cortesia da Wikipedia.]




S.T.T.L... Sit tibi terra levis!... Que a terra da tua Pátria,
ao menos, te seja leve!

por Luís Graça



1. Um dia até as pombas da paz do Picasso
repousarão no museu da guerra.

Em relicários,
de aço.
Mais as moscas,
regressadas dos campos de batalha,

que ficarão lá espetadas em alfinetes
nos respetivos mo(n)struários.

As moscas.
Exangues.

Cobertas de terra.
E a merda das moscas,

liofilizada,
como os grelos que comias na noite de Natal,
a merda agora elevada à categoria
de artefacto cultural.

Um dia ouviste um coronel, 

veterano,
dizer, sem rancor nem fel
(mas nunca viste isso escrito na Ordem de Serviço):
 Chiça!, sempre mais vale uma mosca na sopa
do que um míssil na cozinha.


A tua guerra foi tacanha.

Foi uma guerrinha,
de baixa intensidade,
assegura-te o escriba, submisso,
agora garboso historiador oficial.
Não viste mísseis a cruzar o Geba ou o Corubal,
mas milhões de insetos caíam-te na sopa.

Salgada,
da água da bolanha.
Fria.
Desconsolada.

A responder-lhe,
ao veterano,
seria com a célebre frase de um  general prussiano
(um general das guerras napoleónicas,

ainda por cima prussiano,
sempre é mais ovoestrelado 
do que um coronel do exército colonial):
– A guerra não é mais do que
a continuação da política de Estado
por outros meios. 

Fim de citação. 
Ponto final.
Siga a Marinha.
Até ao Terreiro do Paço. 

2. De megafone em punho,

o guia-mor do museu,
antigo combatente
maneta, 
o olhar baço, 
o peito ainda ardente, 
fala-te da arte e da ciência da guerra.
E da importância que é devida
aos detalhes
de barba.
Lá estava o aviso exposto na tua camarata:
– Mais vale perder um minuto na vida,
do que a vida num minuto.
Confessa, camarada,
que nunca chegaste a perceber
por que é que o soldado tem que ser tosquiado.
E ir ao encontro da deusa da morte... devidamente ataviado.

3. Faltou-te sempre a visão do todo,
que, para um estratega, 
bem escanhoado,
como o teu major de operações,
só podia ser maior do que a soma dos detalhes.
A única filosofia de vida,

de vida sem liberdade,que tu ouviste,
foi na tropa,
ao teu tenente de instrução da especialidade 

de atirador de armas pesadas de infantaria.
Começava em porcaria, 
e rimava com morte.
Era cínica e dissolvente,
como qualquer vulgar detergente
de cozinha:
- A merda é o adubo... da vida;
é fazendo merda, que tu aprendes;
e sobretudo nunca te esqueças
que é com a merda dos grandes,
que os pequenos se afogam.



À quinta feira, 
recordas-te ainda tão bem,
depois da feira do gado vacum, 
em Tavira,
fazia-nos, à malta do nosso pelotão,

rastejar na bosta,
enquanto ele gania como um cão
debaixo da janela da sua amada.  
É por isso que ainda hoje 
nem tu nem eu gostamos... de xarém.

4. Na tropa-do-um-dois-três-e-troca-o-passo

nunca soubeste
onde ficava o norte,

meu desgraçado!
Nem nunca soubeste pôr ao pescoço o baraço.
Nem fazer o nó à gravata.
Nem onde pôr a mão esquerda.
Nem o ombro arma,
a arma no ombro
ou o ombro na arma.

Nem fazer o pino.
Nem adivinhar a hora da sorte.
Nem sequer fazer um manguito de bravata.
Nem por isso te chumbaram,
coitado.

Depois um dia, no meio da guerra,

quiseram mandar-te para a psiquiatria,
o que era estranho,
porque o RDM,
em todo o seu articulado,
não previa a figura do inimputável 
nem a do cacimbado
(muito menos  a do psicopata... do major).
 Deem-lhe um valium dez,
metem-no numa camisa de forças. –
gritou o comandante das tropas em parada
ao médico, amável, 
ao enfermeiro, calado que nem um rato,
ao maqueiro, rapaz cortês:
– Sempre é mais cómodo e barato
do que embrulhá-lo em papel selado!

5. Prometeram-te depois um mundo melhor,

porém chato, chatíssimo,
com escudo de proteção 
e seguro contra todos os riscos;
não te disseram onde,
nem quando,
nem a que preço.
Descobriste que era tarde
e longe do planeta

e caríssimo.

 6. Ter a consciência limpa,

ó meu... sacana ?!
Para ti, é ter a memória com as baterias em baixo.

–   Por favor avisa-me, camarada,
quando elas estiverem a cinco por cento.
Quero fazer 'reset' das minhas memórias da Guiné.


Procuras, além disso, uma mão ?
– Direita, 
com cinco dedos,
disposta a ajudar
o meu pobre braço.
Esquerdo.
Decepado.
Dou alvíssaras,

estou disposto a pagar
com o American Express Card.
Golden, claro!


7. Morrer é 

quando tu chegas um beco sem saída
e não tens um kit de salvação.

Morrer em Nhabijões,
em Madina do Boé,
em Gandembel,
em Mampatá,
na Ponta do Inglês,
em Gadamael
ou em Missirá
... ou no Pilão, numa cena canalha,
tanto faz.
A morte não tem SPM.
E quem morre,  morre de vez,
quer mortalha,
e sobretudo quer que o deixem em paz!

8. A vida com a morte se (a)paga.
Há sempre moscas à espera
do teu cadáver,

mesmo seco e magro.
E jagudis.
E formigas bagabaga.

E um dia aziago.
E um primeiro sorja da CCS que te põe os pontos nos ii.
E um capelão que te fecha os olhos, 
com extrema unção e compaixão.
E um coveiro que te prega as tábuas do caixão.
– Não me perturbem o sono eterno! –,
podia ser o teu epitáfio,
ó tuga dum carago!

9. A prática, dizem-te, leva à perfeição,
exceto no jogo da roleta russa

que jogavas nas picadas da Guiné,
a G3 contra a Kalash,
a pica contra o fornilho,
o coiro, encardido,  contra o Erre-Pê-Gê.
Por isso tu vivias cada dia,
como se aquele fosse
o único que te restasse

no calendário de parede,
no teu abrigo,
grafado com gajas nuas.
E muitos traços, em conjuntos de sete, 
marcando a eternidade de uma semana, 
ou de um mês:

Cada dia era o primeiro, 
o único, 
o original, 
o irrepetivel,
no jogo da vida e da morte!
E todos as manhãs fazias o teste do dedo grande do pé esquerdo,
o do joanete,
o dos calos,
o das bolhas,
o da unha encravada,
o das pisadelas,
o mais azarento, 
o rebenta-minas!

10. Não sei se o pintor de Guernica 

(ou Gernika, que o topónimo é basco),
gostaria de ter conhecido
Adão e Eva
no Paraíso.

Ou a Terra Prometida quando era rica,
e nela corria então o leite e o mel,
mais o ouro, o incenso e a mirra.
Deve ter achado que 
esteticamente o Inferno
dava muito mais... pica.





PS - Aqui vai, para a comissão de ética,

 a tua declaração de conflito de interesses:
– Não conheço nenhum museu da paz,
apenas este,  o da guerra.

Nada sei de estética.
Não sou columbófilo.
E muito menos fã do Picasso. 


Já agora escreve, 
no teu testamento vital,
a tua última vontade, 
o teu desejo final:
Quando eu morrer, camaradas, 
que a terra da minha Pátria, 
ao menos, me seja leve!

_____________


Nota do editor:


Último poste da série > 2 de outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10466: Blogpoesia (305): O helicóptero (Jorge Cabral, Missirá, 1970)

12 comentários:

Anónimo disse...

"Jag lyfter på hatten"! Ou,como diria aqui,aí ou acolá:"Chapeau"!

Torcato Mendonca disse...

Gostei!

Vale a pena ler e reler. Ainda sentes demasiado a Guiné e vives intensamente, o que em certa medida é natural, o teu blogue. Abriste-o a todos e num comentário de hoje ou de ontem delimitas bem o "terreno". Oxalá ou inch Allá...te compreendam.
Por vezes, menos agora obviamente, recordo o ano de 2005 ou 06 em que vi pela primeira vez este "lugar" de gentes, de ex combatentes da tal pátria...a conviverem fraternalmente sem,a grande maioria,se conhecer pessoalmente. Era e é engraçado.Um voto para que assim continuem.Plural...
Abraço T. (faço T. por duas razões:dá menos trabalho e tenho o nome no cimo)

Torcato Mendonca disse...

Sabes Luís Graça Guernica é um "símbolo" para mim, não bem um símbolo talvez uma marca forte da violência e brutalidade humana.

Picasso era um Homem fascinante.

Deleta se quiseres. AB T.

Luís Graça disse...

Torcato, não leves o poeta... à letra, porque o que os poetas escrevem é treta.

O poeta é um fingidor (Fernando Pessoa)...

Vi, no museu da rainha Sofia, a Guernica, ao "vivo", a 1, 5, 10, 50 metros de distância... de muitos ângulos e distâncias... Tinha acabado de chegar a Madrid do "longo exílio" em Nova Iorque, imposto pelo próprio pintor...

Na altura, há uns largos anos atrás, foi uma emoção enorme para mim e para a Alice... É algo de esmagador, até pelas dimensões da tela e pela força das imagens traduzindo todo o horror da guerra...

Um verdadeiro mural!... Fiquei siderado!!!

Só pela Guernica vale a pena uma viagem a Madrid e ao museu da rainha Sofia...

Luís Graça

Anónimo disse...

O poema do L. graça
tem graça
poesia da desgraça
fala da guerra com graça
mistura a desgraça de guernica
tem graça
com o horror da guerra
na visão de Picasso
tem graça a desgraça

será ?
ou será só treta

C.Martins

Luís Graça disse...

Meu caro Martins, insisto na "treta"... Basta lembra o Pessoa...

"AUTOPSICOGRAFIA

"O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

"E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

"E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

Fernando Pessoa"

... E sem esquecer o Alberto Caeiro:


(...) "Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia,
Não há nada mais simples.
Tem só duas datas - a da minha nascença e a da minha morte.
Entre uma e outra todos os dias são meus." (...)

Obrigado, pela leitura,,, crítica!

Luís Graça

Torcato Mendonca disse...

Eu sabia que gostavas da Guernica de Picasso e o Fernando que aqui aparece em duplo e mais uns quantos fernandos ficam...O Homemsente-se sempre pequeno frente a certas criações de gente que foi além de ----AB T

Antº Rosinha disse...

Luis Graça junta a foto do quadro de Picasso a um título de um post que reflectem (quase) bem o sentido deste blog.

O Blog de Luís Graca sem cedilha.

É que só um basco fazia aquele quadro, mas só o Luís Graça mantinha o nível deste blog.

Luís Graça disse...

Rosinha:

"Não sou ateniense, nem grego, mas sim cidadão do mundo"... Esta frase tem cerca de 25 séculos. E é atribuída a Sócrates, o filósofo grego...

Picasso também diria o mesmo: não sou andaluz nem espanhol, sou filho da humanidade...

Eu, à minha escala modesta, costumo dizer, que também tenho costela celta, fenícia, grega cartaginesa, romana, judia, visigoda, bérbere, subsariana... E tenho orgukho em ser português!...

Na época das Descobertas, calcula-se que 100 mil portugueses, machos, em idade de procriar, abriram a estrada da globalização... Quem é que cá ficou a tomar do rectângulo ? As nossas mães e os... escravos da Guiné!

Mantenhas! Luis

Torcato Mendonca disse...

Pablo Picasso não é Basco. É Andaluz, salvo erro, de Málaga.

Guernica é cidade Basca arrasada pelos aviões nazis alemães, que faziam treinos para a II G.Guerra e ajudavam os Falangistas de Franco.

O quadro é a preto e branco e denuncia o massacre. Uma pequena cópia,(A4/A5 , acompanhou-me muitos anos.Pertencia aos pequenos objectos que me davam algo.Alguns ainda andam comigo...

Não quis corrigir nada. Só que certos erros, mesmo sem importância, não devem passar em branco, neste caso branco e preto. Ab, T.

Antº Rosinha disse...

Torcato e Luís para mim, alem de Olivença é como que seja "tudo para o mesmo lado", não tive tempo para ir lá.

Mas obrigado pela elucidação sobre o Picasso.

Anónimo disse...

Caros camaradas

Entre um pintor e um poeta (ambos andaluzes)

Um "pirou-se" para frança..bom "vivant"..comedor de ..tudo e tudo.."mui aficionado de la fiesta"..nada contra..nos intervalos pintou "GUERNICA", como símbolo da "barbarie" da guerra.

O outro foi fuzilado às ordens da "barbarie"...

FREDERICO GARCIA LORCA

c.martins