segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Guiné 63/74 - P10428: Notas de leitura (409): "Comandante Hussi", de Jorge Araújo (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Agosto de 2012:

Queridos amigos,
Nem sempre uma reportagem de gabarito se pode converter numa peça novelística do mesmo nível, no caso em apreço, o comandante Hussi sai vencedor nos dois processos de escrita, Jorge Araújo pusera a criança a percorrer Bissau sempre a sonhar com a sua bicicleta, nesta história que podia ter começado por “Era uma vez…”, a luminosidade da criança ganha encanto, e o que antes fora uma reportagem de alta intensidade converte-se agora numa narrativa encantadora e imaginativa.
A Guiné-Bissau e os acontecimentos de 1998-1999 são presentes nos dois cenários. As ilustrações de Pedro Sousa Pereira valorizam todo o texto, adoçam o que já é terno, acrescentam, nas suas linhas por vezes pueris, uma densidade que potencia a fantasia do texto.
Mas será mesmo fantasia o objetivo da narrativa? Compete ao leitor ajuizar de tanta capacidade de sonho.

Um abraço do
Mário


Comandante Hussi 

Beja Santos

Foi a ler “Reportagem, uma antologia” (por José Vegar, Assírio & Alvim, 2001) que tive conhecimento do soberbo trabalho de Jorge Araújo, uma peça intitulada “Comandante Hussi”, e publicada no jornal O Independente, numa edição de Fevereiro de 1999. O jornalista cabo-verdiano Jorge Araújo assentou arraiais em órgãos de comunicação social portugueses como O Independente, TVI e Correio da Manhã. Presentemente, é editor do “Actual”, caderno do semanário Expresso.

Comandante Hussi é o seu primeiro romance e venceu em 2003 o Prémio Gulbenkian para a Qualidade Literária. Este romance foi publicado recentemente entre nós (Clube de Autor, Novembro de 2011). O ponto de partida foi a reportagem em que Jorge Araújo percorreu a Guiné em chamas durante o conflito político-militar de 1998-1999. Como escreveu José Vegar, “Quis o acaso que nas ruas de Bissau alguém lhe indicasse o miúdo António Hussi, o mais jovem guerrilheiro de Ansumane Mané. O repórter deixou-se ficar junto dele, ouviu-lhe confidências e narrações dos episódios da guerra. Através dele, contou a batalha de Bissau e revelou ao leitor o desejo de um miúdo recuperar a sua bicicleta. Uma história única possibilitou uma reportagem de escrita avassaladora".

Pode descrever-se assim: António Hussi vivia na miséria absoluta mas tinha um tesouro, uma bicicleta pintada de lama, pedais amputados, celim desengonçado, os raios das rodas a contorcerem-se de dor; um dia, o menino foi obrigado a abandonar a sua bicicleta, as balas caiam do céu, a guerra civil veio com toda a força, a mãe partiu e levou a família, o pai ficou a combater, ao lado de Ansumane Mané; António Hussi não quis ficar em Nhacra, regressou a Bissau e pôs-se à procura do pai. A escrita de Jorge Araújo mistura o pungente com a candura, as ruas desertas, asfaltadas de cadáveres, casas abandonadas feridas de balas, almas penadas vestidas de medo; é numa atmosfera de demência e irracionalidade que por ali andam abutres em voo picado sobre corpos em decomposição, paisagem mais desoladora não há: famílias divididas, vidas destruídas, uma cidade inteira a sangrar de dor.

António Hussi a todos vai perguntando por onde anda o pai, dá-se o reencontro o pai está furioso, António não cede perante a pancadaria que levou do pai e este, resignado pela determinação do filho, cede-o ao campo de batalha, ele fica obrigado a fazer tudo como se fosse um homem grande. E Jorge Araújo escreve: “E ele fez. Transportou armas e munições para a linha da frente, fez de pombo-correio, foi ajudante cozinheiro. Não matou mas viu morrer. Passeou pelos horrores de uma guerra fratricida com a mesma inocência com que antes pedalava na sua bicicleta pelas ruas de Bissau”. António assiste à internacionalização da guerra, vê gente de outros países a morrerem ao lado dos homens fiéis de Nino Vieira. E em 6 de Maio de 1999, as forças de Ansumane Mané levam tudo de roldão, Nino Vieira refugiou-se na embaixada de Portugal. Segue-se uma descrição dantesca, naquela Bissau em chamas o Palácio Presidencial era vandalizado: “Assistiu ao saque e à ira da população. Subiu as escadas do velho edifício colonial, atravessou as portas imponentes, vagueou pelas enormes salas abandonadas, vasculhou destroços calcinados, distribuiu abraços pelos soldados vencedores, tropeçou em Kalashknikovs que adormeciam pelo chão”. António é tratado por todos por “comandante Hussi”. A guerra acabara, voltou à sua casa no bairro de Santa Luzia. O seu tesouro mais valioso estava são e salvo: “pintado de lama, pedais amputados, selim desengonçado, os raios das rodas a contorcerem-se de dor, a sua bicicleta estava suja e abandonada, mas era a sua bicicleta”.

O romance pega nesta trama, reconverte os factos e os feitos numa arquitetura onde cabe o mirífico e a possibilidade lendária. A família vive em Porto dos Batoquinhos, ali existe o Batuque Futebol Clube, eterno rival dos Saguessugas, o orgulho do Cais da Sombra. Em dia de futebol rebenta uma guerra, a Guerra do Balão. Entra em cena o brigadeiro Raio de Sol. O pai de Hussi, Abdelei, vestiu a farda militar e mandou a família para outro local. A bicicleta fica ali escondida, angustiado, Hussi parte ao lado de Dona Geca, a sua mãe, e dos irmãos, vão rumo à aldeia dos seus antepassados. Hussi ganha coragem e regressa a Bissau, a todos vai perguntando onde está Abdelei Sissé. É neste ponto que surgem as divergências entre o romance e a reportagem. Aquela Guerra do Balão parece estar empatada, entrara mesmo na rotina, com bombardeamentos à hora marcada, as mesmas conversas nos bunkers improvisados, os ataques à frente leste depois da frente norte, as pausas das tardes de sábado para se poderem beber os relatos da bola. O brigadeiro Raio de Sol tem como feroz opositor o comandante Trovão que acreditava que a guerra estava no fim. É desenhado como um déspota sanguinário, cercado por uma clique de bajuladores, e sobre ele o autor escreve: “O comandante Trovão era uma personagem gorda, tão pesada que o chão tremia com as suas passadas de elefante. O seu rosto era uma cascata em alvoroço, tanto era o suor que lhe escorria pela testa. Tinha um olhar de pitbull anestesiado, dentes pontiagudos, desalinhados, a pele mais gordurosa do que o óleo de palma. Os dedos eram pequenos e redondos. Talvez por isso usasse sempre luvas de boxe forradas de cetim vermelho e se recusasse cumprimentar os visitantes com um aperto de mão”.

A arquitetura da escrita vai resvalando para as considerações moralizadoras, este Trovão vive em perpétuo autoelogio, nunca suportou a traição da bela Ayassa, a menina dos seus olhos, que o trocou pelo brigadeiro Raio de Sol. Convocados os generais, o chefe do Estado Maior informa que estavam empatados, eles controlavam a cidade do asfalto, o inimigo a cidade de terra batida. Furioso, Trovão liquida-o com um tiro de pistola e exige ao major Katinga que lhe traga no dia seguinte o crânio do brigadeiro Raio de Sol. A história desenvolve-se à volta de profecias, era preciso apreender uma bicicleta mágica do filho de Abdelei Sissé, é este o ícone que protege os combatentes. Por portas e travessas, lá se arranjou uma bicicleta qualquer, decapitaram-lhe o selim, e serviram-na ao comandante Trovão sobre uma bandeja de prata. O déspota parece aliviado e volta a ditar mais uma ordem mirabolante: quem for apanhado a pensar numa bicicleta será imediatamente fuzilado. Hussi apercebe-se de que morrera uma bicicleta e logo se afligiu, podia ser a sua, patrulhou o local onde vivera, era tudo um amontoado de destroços. E o menino chorou desesperado pela perda do seu tesouro. Passaram-se os dias e o jovem Hussi descobriu que o inimigo não conseguia ganhar a guerra.

Chegara entretanto o momento da ofensiva final na linha da frente. Assiste ao descalabro dos derrotados em fuga, viu os mercenários estrangeiros a fugirem, viu livros a serem consumidos pelas chamas assassinas. Os vencedores chamavam ao menino herói. A guerra de Hussi não terminara com o fim dos combates, porque os seus pensamentos continuavam estrangulados pelo desaparecimento da bicicleta. E a história edificante termina como deve ser: Hussi recupera a sua bicicleta, ser vivo e objeto conversam, aliás tinham muito que falar, e tudo termina em absoluta concórdia, de acordo com as regras de qualquer história com moral: “Hussi limpou o retrovisor com o seu velho lenço amarelado, sacudiu o pó que asfixiava o cachecol do Barcelona, colocou a fitinha tricolor do outro lado do guiador, ajustou os pedais com a sola das sandálias. Quando se sentou no selim, sentiu-se outra vez dono do mundo. E os dois pedalaram para a eternidade”.

Lê-se a narrativa e é com desgosto que se fecha a última página. A mascote dos revoltosos da Guiné-Bissau é agora personagem com direito a uma eternidade, tal e tanto é o amor que vota à sua bicicleta.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 22 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10422: Notas de leitura (408): O conflito político-militar na Guiné-Bissau (2) (Francisco Henriques da Silva)

1 comentário:

Torcato Mendonca disse...

Desafias-me para a guerra, a leitura de guerra.

Li duas vezes e, no que escreves, quase vi o miúdo, a bicicleta, senti os tiros...eu quero a paz e a quietude. Venho aqui porque gosto, pelos amigos, por aquela terra vermelha e suas gentes.Mas venho e sinto-me tentado, como agora, a teclar.

Tenho que ler o livro.Já anotei. Ontem e um pouco hoje li poesia do O'Neil,assim repousei para a assembleia que ia ter...outras guerras...

Como consegues estar tão dentro da Guiné? Não li, tenho resistido á leitura do Tangomau e vou ler quando as folhas do Outono já tiverem voado. Não sei, talvez antes mas lá mais para a frente.

Dizes porque não escrevi sobre a "Lança Afiada". Vou tentar outra vez, um dia...Agora vai um abração do T.