sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Guiné 63/74 - P10416: Notas de leitura (407): O Corredor de Lamel - 68 Guiné 69 - de Guilherme Costa Ganança (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Julho de 2012:

Queridos amigos,
Aqui temos o segundo ano da comissão de Gabriel Silva, o alter-ego de Guilherme Costa Ganança, que andou por Contuboel, Bula, Cabedú, Catió e Farim.
Guarda recordações impressivas dessa região próxima do Cantanhez e do corredor de Lamel. Paira sobre a narrativa o espectro de um comandante de companhia profundamente estimado e morto em combate. Atravessa toda a sua prosa as cartas para a madrinha de guerra, os seus sonhos, uma profunda inocência. Quem previu que a literatura da guerra colonial se finara, exausta, tem aqui a prova em contrário, os sexagenários revelam uma impressionante capacidade para pôr a limpo as suas memórias. E Guilherme Ganança está longe de ser um escritor solitário.

Um abraço do
Mário


O Corredor de Lamel

Beja Santos

Guilherme Costa Ganança combateu na Guiné entre 1967 e 1969. No ano passado editou “Do Cacine ao Cumbijã, 67 Guiné 68” (Chiado Editora 2011). Escreveu-se na oportunidade que se tratava de um livro autobiográfico, narra a vida de Gabriel Silva a chegar ao Funchal, já promovido a aspirante, da Madeira irá para o campo de instrução militar de Santa Margarida para formar uma companhia de intervenção com destino à Guiné. Em 28 de Outubro de 1967, vindo de Tomar, embarca no Uíge, Gabriel Silva faz parte da companhia 78081 comandada pelo capitão Germano Neves. Segue-se o período de adaptação, Silva começa a escrever às madrinhas de guerra, precisa febrilmente de companhia. Faz o batismo de fogo na região de Caresse, uma operação que moralizou a sua unidade. Findo o treino operacional seguem para Bula onde participam na operação Bolo-Rei, na região de Choquemone.

O primeiro ano da comissão passa-se essencialmente em Cabedu, entre Cacine e o Cumbijã, estão perto do Cantanhez onde o PAIGC se posiciona nos locais de Catifine e Cafal, Cabanta e Catesse. Gabriel Silva está à frente de um pelotão que dispõe de uma maior capacidade ofensiva, “os corsários”. Em 16 de Fevereiro de 1968, tem lugar uma operação fatídica, Germano Neves morre em combate. A apreciação então feita é de que se tratava de uma obra asseada, marcadamente autobiográfica, com descrições minuciosas, via-se claramente que o autor reposicionava a sua prosa pela inocência do seu olhar a partir da Madeira, servia-se das suas madrinhas de guerra como confidentes da sua vivência em Cabedu.

Acaba de ser editado “O Corredor de Lamel, 68 Guiné 69”, romance histórico, por Guilherme Costa Ganança (Chiado Editora, 2012). A companhia 78081continua em Cabedu, companhia órfã, entrega aos alferes, sargentos e furriéis, em finais de Março retoma-se a atividade operacional, volta-se ao Cantanhez e arredores, são patrulhamentos sem danos, não se encontra o inimigo. O alferes de minas e armadilhas vai colocando engenhos explosivos e instala uma rede de minas e armadilhas nos acessos. E fica provado que grupos inimigos acionaram tais engenhos, deixam marcas eloquentes de sangue. No aquartelamento processa-se a construção de novos abrigos e a reparação dos existentes. Também em Abril terá lugar um patrulhamento até à Península de Cassacunda, haverá troca de tiros quando se detetou um grupo de guerrilheiros, capturou-se um guerrilheiro, uma mulher, uma espingarda e objetos que o inimigo abandonou na sua retirada apressada. O guerrilheiro foi levado prontamente para Bissau, tratava-se de alguém que tinha recebido instrução militar na Argélia e era responsável pela logística do Cantanhez.

Gabriel Ganança optou por uma prosa muito sóbria, terra a terra, é uma linguagem descarnada, não há perdas de tempo para descrições opulentas, só cede à emoção quando narra acidentes brutais, caso de uma descarga que eletrocutou o soldado Nestor Pimenta, aí a descrição aviva-se dá-se corpo aos sentimentos dos camaradas que estão em profunda mágoa, consternados. Spínola visita estas tropas que continuam metodicamente a patrulhar à volta do Cantanhez e por vezes com sucessos. Determina a sua transferência para Catió: “Ali, era apenas mais uma companhia no meio do batalhão comandado por um tenente-coronel, a quem eram devidos todos os agradecimentos (…) a vila de Catió, plana e bem desenhada, albergava 5 mil habitantes. A zona central, onde se encontravam os estabelecimentos comerciais que abasteciam a região, era constituída por edifícios sólidos, caiados de branco e aspeto razoável. Em volta da vila, existiam núcleos dispersos de gente nativa. As tabancas de Cudocó, Cubaque e Canchumane, encontravam-se arrasadas pela guerra. Pouco tempo depois, Spínola havia de engendrar um plano de reordenamento do território. Visava concentrar recursos e melhorar a sua eficácia. A tabanca de Cumebú, que ficava perto do rio Ganjola, seria transferida para junto da vila e a de Quibil anexada ao ilhéu de Infanda. A 78081 tinha de contar com o perigo das matas de Cubaque, Canchumane, Cufar e Camaiupa, atravessadas pelas estradas que ligavam Catió a Cufar. Era um território apetecido para atividade inimiga”. O comandante do batalhão entregou-lhes um mapa de circuitos que deviam ser patrulhados diariamente. São patrulhamentos por vezes muito duros, como uma ida à mata de Cabolol onde conheceram uma sede tremenda, como o autor explica: “A chuva parou, de súbito, e as pequenas poças que se criaram no chão pareciam limpas, quase transparentes. Gabriel olhou-as, ávido, e sentiu as securas de uma sede insaciável. Eram toalhas finas de água, tão delgadas que não podiam recolhe-las com a concha da mão. Teve sorte. O ramo mais baixo de uma árvore estendeu-lhe as folhas verdes, bem na frente do seu rosto. Pegou numa delas, curvou-a, e de joelho no chão, foi recolhendo pequenas porções do líquido precioso”.

Gabriel Silva vai conhecer o tenente João Bácar Djaló que vivia em Príame, descreve-o como um nativo de porte arrogante, senhor de muitas mulheres e de muitas bolanhas. Em Julho chega o novo comandante da companhia, Luciano Barbosa. Cedo há de perceber que a sombra de Germano Neves ainda paira sobre a companhia, pretende impor-se através do seu estilho, dar-se-ão choques, nem sempre fáceis de amortecer. Depois vão à ilha do Como, o comando-chefe decidira o abandono do aquartelamento de Cachil, a brigada de sapadores fará explodir tudo que não pudera ser retirado. Seguem-se férias na Madeira. No regresso, apercebe-se que Luciano Barbosa pretende punir dois soldados do seu pelotão, Gabriel procura negociar e garante contrapartidas, os soldados pedirão desculpas. Gabriel começa a escrever à irmã do padre Honório, o capelão de Catió, o leitor será inteirado do conteúdo destas missivas, o alferes está profundamente só, quer companhia a todo o custo. “Os corsários” estão numa grande exaustão, são transferidos para Cabedú, é quase um tempo de pasmaceira. Em Fevereiro, a 78081 recebe ordem de marcha para a zona de Farim, acabou-se o tempo entre Cacine e Cumbijã, vão conhecer o corredor de Lamel, a importância do corredor deve-se à utilização feita pelos guerrilheiros que o utilizam a partir do Senegal até às suas bases que ficam a Sul do Rio Jumbembem. Ali à volta estão os quartéis de Jumbembem, Cuntima, Binta e Guidage. É nesta altura que Gabriel toma a decisão de estudar matemática e física, quer ingressar no curso de engenharia, aspira ser engenheiro eletrotécnico. Aliás, passará as suas segundas férias em Bissau dedicado ao estudo. Em Farim, o capitão Barbosa quase que será linchado por soldados, depois de ter usado uma linguagem insultuosa. A companhia está instalada em Nema, não muito longe do Oio. Serão flagelados, a companhia anda desatinada, o fim da comissão nunca mais chega. Estamos em Junho de 1969, a atividade no corredor de Lamel entrara numa rotina enfadonha, as brigas repetem-se, ameaças de levantamento de rancho, de punições. Aqui e acolá, há mortes por acidente ou em combate.

E chega o anúncio da partida. Em fins de Agosto, chegam a Lisboa, vão até Tomar, a unidade mobilizadora, a guerra acabou, fica a nostalgia das últimas despedidas. Vai até ao Funchal, consegue uma bolsa de estudo, cumpre o sonho da sua vida, entra no Instituto Superior Técnico, toda aquela ansiedade descrita abundantemente na correspondência com as madrinhas de guerra vai-se extinguindo. Gabriel faz-se engenheiro, muitos anos mais tarde sente o impulso de passar a escrito aqueles tempos da Guiné. Ao fim de mais de 40 anos, publicou as suas memórias. Gabriel Silva agora é mesmo Guilherme Costa Ganança. Sente-se feliz por relatar episódios determinantes da sua vida, vivências de uma idade em que os seus sonhos correram risco de não se concretizar. Temos aqui obra asseada, despretensiosa, alguém que se sentiu impelido a partilhar a sua inocência e até a sua comunicação com as madrinhas de guerra. E não esquece a sua padroeira a quem sempre pediu proteção e que o premiou com a vida e a realização pessoal e profissional.
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Notas de CV:

Guilherme Gabriel da Costa Ganança foi Alf Mil da CCAÇ 1788/BCAÇ 1932, Cabedú, Catió e Farim, 1967/69 e faz parte da nossa tertúlia desde 22 de Julho de 2012

(*) Vd. poste de 3 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8850: Notas de leitura (282): Do Cacine ao Cumbijã, 67 Guiné 69, de Guilherme da Costa Ganança (Mário Beja Santos)

Vd. último poste da série de 20 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10411: Notas de leitura (406): O conflito político-militar na Guiné-Bissau (1) (Francisco Henriques da Silva)

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