terça-feira, 18 de setembro de 2012

Guiné 63/74 - P10403: Do Ninho D'Águia até África (10): Minas na estrada (Tony Borié)

1. Continuação da narrativa "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177.


Do Ninho D'Águia até África (10)

Minas na Estrada

O “Mister Hóstia” foi baptizado com este nome, por dois motivos. Primeiro, porque andava sempre com uma bíblia pequenina, daquelas de bolso, na mão, e segundo, porque era parecido com determinado treinador, a quem chamavam Mister qualquer coisa, de uma equipa de futebol da capital de Portugal que nessa altura era muito popular e algo conhecida na europa.

Era muito religioso e na caserna onde dormia com os outros militares, não perdia oportunidade de recitar e cantar partes dessa mesma bíblia, por horas, até o mandarem calar ou algum companheiro, mais afoito, lhe arremeçar com um travesseiro. Uma vez, o Curvas, alto e refilão, até lhe queria mandar com um banco, feito de madeira de uma caixa de munições, ao mesmo tempo que lhe dizia na sua linguagem rude e malcriada:
- Ou te calas com essa merda, ou parto-te já este banco nos cornos!

Quem o salvou foi o Trinta e Seis, baixo e forte na estatura, que se intrometeu e disse ao Curvas, alto e refilão, com ar grave e decidido:
- Quanto mais velho estás, mais bruto te tornas. Cala-te e vê se ouvindo isto purificas a tua alma. Ao que o Curvas, alto e refilão, logo responde:
- A Alma, uma merda. A minha alma, se é que isso existe, já está no inferno, desde que a desgraçada da minha mãe me abandonou quando era criança.

Pois o Curvas, alto e refilão, não tinha família, tinha sido abandonado pela sua mãe, que diziam andava “na vida”. Era oriundo de uma aldeia da Estremadura, andou primeiro encostado a uns vizinhos que lhe davam de comer, e dormia num palheiro desses mesmos vizinhos. Depois já mais crescido, meteu-se à estrada caminhando e estendendo a mão, pedindo comida aqui e ali, roubando fruta e outras coisas, até que veio parar à capital, talvez à procura da mãe. Na capital, conviveu com rapazes da rua, alguns nas mesmas condições, sem qualquer família, começou a usar uma caixa de engraxar sapatos por mais ou menos oito horas, pois a referida caixa pertencia a uma espécie de “sindicato”, entregavam tanto pelo seu aluguer, tanto fazia que trabalhassem ou não, e entre eles diziam:
- Esta caixa não tem escovas boas, da próxima, quando for levantá-la ao “sindicato”, quero a “número cinco”, é mais alta e tem escovas das novas e boas.

Portanto a referida caixa era uma peça de ferramenta que trabalhava vinte e quatro horas por dia, mas em diferentes mãos, tal como se fosse um táxi, de uma importante empresa.

O seu corpo alto e curvado para a frente, donde lhe veio o nome Curvas, talvez fosse derivado a ter cescido, durante anos, curvado, trabalhando na caixa de engraxar sapatos. O Curvas usava a referida caixa, mais ou menos das dez da noite até às seis da manhã, em zonas pouco recomendáveis a uma criança da sua idade, como por exemplo, em frente e dentro de bares que estavam abertos toda a noite, em frente a casas de prostituição, em ruas mal iluminadas, mas que tinham movimento àquela hora, e em outros locais, pouco recomendáveis, pelo menos como já dissemos, a uma criança. Daí a sua linguagem reles.

Passado uns anos sabia como roubar uma carteira num bolso dum casaco ou dumas calças, sem o dono se aperceber, como pedir esmola a um turista em francês ou inglês, sabia os locais na capital onde a vida lhe era mais fácil, sabia os sintomas e como podia vigarizar uma pessoa chegada recente à capital, vendendo-lhe a “Estação do Rossio”, enfim, tinha a escola da rua. Claro que pouco a pouco, conforme aumentava os seus conhecimentos naquele ambiente de rua, também aumentava a sua ficha na esquadra da polícia, pois, por dezenas e dezenas de vezes foi apanhado na hora certa, mas no local errado. Quando chegou a altura em que as autoridades pensaram que ele tinha a idade, recomendaram-lhe que se deveria apresentar num quartel da cidade para cumprir a tropa. Assim fez. 

Recebeu o tal treino de como defender-se e saber matar, que ele já sabia de cor e salteado. Foi defender a sua mãe Pátria, pois a mãe verdadeira, abandonou-o e “andava na vida”, dormindo todos os dias em camas diferentes, levando beijos, que no lugar de carícias eram mordidelas de escorpião, e carícias no seu corpo, que em lugar de atitudes de amor, eram apertões, que lhe deixavam marcas negras em todo o corpo, de pessoas desesperadas, que se queriam servir dela por uns minutos, e quando passavam a boca pelo seu corpo, pensavam que estavam a comêr um bife de uma vaca com carne de boa qualidade.

O Curvas, alto e refilão, não mais soube dela, se hoje a visse, não a reconhecia, pois talvez já estivesse a morrer com a doença de sífilis, que naquele tempo não perdoava, ou tivesse sido atirada ao rio Tejo, por não ter cumprido, com as regras do seu “chavalo”, que lhe dizia, com a boca a cheirar a tabaco e álcool de fraca qualidade, com as unhas tratadas, mas cheirando mal por todos os poros do seu corpo, pois o seu banho, era o perfume de qualidade baixa, que comprava aos ciganos, às vezes nem comprava, era o troco dos favores das “garinas” que tinha por sua conta, e com os olhos, sem qualquer brilho, postos nos seus, pensando que via na sua frente, uma vaca leiteira, que lhe devia de dar uns tantos litros de leite ao dia, lhe dizia, passando na sua cara, umas mãos, secas e amarelas pelo cigarro que sempre segurava entre os dedos, que a protegia, e que ninguém lhe faria qualquer mal, pois ele, era o seu dono e senhor, e que nessa noite, depois de trabalhar até alta madrugada, na rua, nos bares, ou num simples táxi, teria o privilégio, como prémio, de ir dormir com ele, num reles quarto de umas águas furtadas, que ocupava algumas horas durante o dia ou da noite, pois esse mesmo quarto, era um local de trabalho, servindo de ponto de encontro, para o serviço das suas “garinas”, que mantinha no mercado de prostituição.

Mas enfim, a mãe abandonou-o, talvez quando ele mais precisava dela, e juntamente com o Cifra, pois foram no mesmo barco, desembarcaram nesta província do então Ultramar Português, onde cumpriram a comissão juntos e foram amigos. Perdoem os leitores se me alonguei, mas todo este relato era o que o Curvas, alto e refilão, contava ao Cifra, em alguns momentos, em que lhe vinham algumas lágrimas aos olhos, e se recolhia, umas vezes sentado no chão, outras, deitado e encolhido no capim rasteiro, que existia em determinada área do aquartelamento, não muito distante do centro cripto, e que o Cifra, vendo-o lá, ia ao encontro dele, e o ouvia, às vezes por horas.

Depois de lerem este relato, compreenderão melhor algumas atitudes do Curvas, alto e refilão, em relatos seguintes, onde ele é o protagonista. Enfim, adiante e continuando, e falando do Mister Hóstia, que nesta altura, faz parte de uma coluna militar, que tem que viajar entre duas áreas, no interior norte. São zonas de combate.

A estrada, de terra batida, por onde vão passar é estreita e em alguns locais, além de alguma água existe capim e árvores rasteiras de ambos os lado, que quase a encobre. É um potencial local para uma possível emboscada, colocação de minas, ou fornilhos, pelo menos no momento em que podem transitar viaturas auto.

(A história da acção que se segue aconteceu na região do Oio, a saída foi de Mansoa e creio que iam a caminho da região de Mansabá, sendo descrita, logo à chegada ao aquartelamento, pelo Mister Hóstia e pelo Setúbal juntamente com os seus companheiros que todos os presentes no dormitório ouviram. Quando mais tarde o relatório passou pelas mãos do Cifra, que o traduziu em código, para ser enviado  para o comando territorial na capital da província, verificou que pouca diferença fazia do relatado.)

O Mister Hóstia, tal como o Setúbal e o Curvas, pertenciam a um pelotão de morteiros, já tinham alguma experiência de combate, e nessa manhã o Mister Hóstia, cheio de fé, pois meia hora antes de partirem já estava de joelhos, encostado ao mosquiteiro, em oração profunda, viaja agora com parte de uma companhia de intervenção, reforçada com alguns soldados naturais, que normalmente serviam de guias e tradutores, transportada em viaturas abertas, tipo quatro bancos compridos no topo da viatura, dois ao meio, de costas um para o outro, e por vezes dois mais, um de cada lado. A viatura estava coberta com sacos de areia na frente para sofrer menos com o impacto de possível rebentamento de uma mina, ou qualquer outro engenho explosivo. O Mister Hóstia nunca viajou na frente ao lado do condutor. O seu lugar preferido, nestas situações, era o segundo a contar de trás, num dos bancos do meio. Nem o primeiro, nem o terceiro, no segundo é que se sentia mais confortável.

As viaturas rolavam a uma velocidade muito baixa, talvez dez ou quinze quilómetros por hora. Devagar, mesmo devagar, era um calor infernal, um silêncio demasiado calmo. No espaço de segundos a coluna é flagelada por rajadas de metralhadora, seguida de forte rebentação. Uma rebentação estrondosa. O Mister Hóstia, só se lembra de, já no chão, na berma da estrada, sem capacete de protecção e sem a G-3, mas com os carregadores à cinta, apalpar a cabeça por diversas vezes, assim como o corpo na procura de sangue, o que felizmente não viu.

Abaixou-se o mais que pôde procurando esconder o corpo. Com o impacto da rebentação da mina ou qualquer outro engenho explosivo, na frente da viatura, quase todos os militares foram projectados e voaram para o chão. O barulho dos tiros que se seguiu à rebentação, era cada vez mais forte, vinham das árvores, lá ao longe. A seu lado, um militar, também já com uma certa experiência, o Setúbal, não parava de dar tiros na direcção das árvores, despachou todas as suas munições, as que trazia e as que o Mister Hóstia lhe deu. Passado uns longos dez a quinze minutos, o som dos tiros fica menos frequente, de parte a parte, até que terminaram.

Ouvia-se somente gemidos, alguns gritos de aflição e o som de qualquer coisa a arder, com algum fumo espesso que saía do que restava da frente da viatura.

O Setubal, levanta-se devagar, olha em volta e deita-se de novo ao lado do Mister Hóstia. Com as mãos na cabeça, exclama:
- Meu Deus, que desastre.

E tinha sido um desastre. Três mortos e sete feridos, alguns com balas no corpo. A frente da viatura destroçada pela rebentação do engenho explosivo, estava trucidada. Do Vouzela, que era o condutor, e do Madeira, que era o militar que ia a seu lado, foram recolhidas algumas partes do corpo. Recolheram os pés, com parte das pernas e parte da cintura, assim como alguma parte superior do corpo e da cabeça, que estavam protegidos pelas botas, cinto das cartucheiras e pelo capacete, que guardaram em dois casacos camuflados que o Setúbal e o Mister Hóstia despiram. Havia sangue, pedaços de carne humana colados ao que restava da frente da viatura, era um cenário que fez o Cifra arrepiar-se e perder a cor da cara, quando o Mister Hóstia, com as lágrimas nos olhos, e a tremer de emoção, lhe contou.

Um militar acabou de morrer nos braços do Mister Hóstia, as suas últimas palavras foram mais ou menos isto:
- Mister Hóstia, vou morrer, diz ao Cifra, meu amigo que mande todas as minhas coisas, mais aquilo que ele sabe, para a minha família em Portugal, que era de onde eu nunca devia ter saído.

Estas palavras, foram ditas devagar, aos soluços e com uma bondade nos olhos, que o Mister Hóstia não mais pode esquecer.

O Mister Hóstia, ainda lhe disse:
- Não morres nada, pois não tens qualquer ferimento. Mas a sua cara tombou para o lado e morreu. Este militar não mostrava qualquer ferimento à vista no corpo, mas ao virarem-no de costas, viram sangue e descobriram uma bala alojada nas costas, um pouco abaixo da clavícula, todos diziam que essa bala alojada no seu corpo não era motivo para morrer, mas possivelmente algum orgão lhe rebentou por dentro, com o impacto da rebentação da mina, ou minas, ninguém sabia.

Pedidos socorros, vieram dois helicópteros que recolheram o morto, o que restava dos outros mortos e alguns feridos com mais gravidade. Os feridos sem gravidade, assim como o resto dos militares, regressaram ao ponto de partida. Uns dias depois foram buscar o que restava da viatura, onde já faltavam algumas partes e onde estavam escritas legendas provocatórias e de intimidação aos militares, escritas a tinta amarela e verde pelos guerrilheiros, sinal de que o local tinha sido visitado antes. Esta estrada, que mais era um carreiro, que os militares usavam para encurtar caminho, não mais foi usada, pelo menos durante o tempo em que o Cifra, esteve na referida província. O Cifra colaborou com os militares encarregues de mandar as coisas deste militar morto para Portugal, incluindo um bocado do camuflado ainda ensanguentado que o militar usava, que o Mister Hóstia teve a coragem de cortar quando descobriu o buraco da bala no seu corpo. O Cifra colocou tudo dentro da mala que se encontrava debaixo da sua cama, mais aquilo a que se referia, que era um envelope com algum dinheiro, que era dele e o Cifra tinha guardado numa mala, num compartimento quase secreto do centro cripto, dinheiro este que ele recebia por ajudar algumas vezes na messe dos sargentos, e que, quando entregava ao Cifra, para lho guardar, dizia:
- Isto é para um começo de vida, quando regressar à Metropole.

Mas continuando, fechou a mala, amarrou-a com uma corda e foi enviado para a sua família em Portugal, creio com a ajuda do Movimento Nacional Feminino.

Na altura em que o Cifra recolhia todas as coisas na mala, incluindo o bocado de camuflado ensanguentado, o Curvas, alto e refilão, num ataque de fúria, agarra-se à cama desse militar, rasga o mosquiteiro, abraça-se ao colchão e grita em plenos pulmões:
- Eu mato-os, eu mato-os a todos. Só vou descansar, quando os matar!

Todos fugiram dele. Mais tarde o Trinta e Seis aproximou-se e levou-o para fora do dormitório.

Em Portugal o Cifra visitou a família deste militar por diversas vezes. Eram de uma aldeia na região da Serra da Estrela. Tinha uma irmã e um irmão, ambos casados. A mãe andava sempre vestida de preto e dizia:
- Ainda não fui, mas não tarda muito tempo. Sou viúva duas vezes, do meu Joaquim que Deus lhe guarde a alma em descanso e do meu António, que era a cara do pai quando nasceu, e que morreu lá na África.

E mostrava sempre a fotografia do António que beijava e encostava ao coração.
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 15 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10388: Do Ninho d'Águia até África (9): Orquídea Negra da lama da bolanha

2 comentários:

JD disse...

Camaradas,
O Tony traz-nos uma estória comovente, com personagens tão diferentes entre si, que só a tropa poderia juntar e desenvolver laços entre eles.
Infelizmente, a estória acabou mal para alguns, como, afinal, aconteceu tantas e demasiadas vezes durante as acções de combate.
mas contém descrições de camaradagem que se perpetuarão na memória dos sobrevivos, destes aqui retratados, como de muitos outros que andaram por aqueles ambientes.
O Tony deu outro contributo, apesar de matéria repetitiva, para o conhecimento e compreensão dos ânimos e desânimos, das esperanças e desesperanças persolaizados por este grupo de militares.
Abraços fraternos
JD

JD disse...

Camaradas,
O Tony traz-nos uma estória comovente, com personagens tão diferentes entre si, que só a tropa poderia juntar e desenvolver laços entre eles.
Infelizmente, a estória acabou mal para alguns, como, afinal, aconteceu tantas e demasiadas vezes durante as acções de combate.
mas contém descrições de camaradagem que se perpetuarão na memória dos sobrevivos, destes aqui retratados, como de muitos outros que andaram por aqueles ambientes.
O Tony deu outro contributo, apesar de matéria repetitiva, para o conhecimento e compreensão dos ânimos e desânimos, das esperanças e desesperanças persolaizados por este grupo de militares.
Abraços fraternos
JD