domingo, 2 de setembro de 2012

Guiné 63/74 – P10316: Memórias de Gabú (José Saúde) (24): Morte estúpida na pista de aviação



1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabú) - 1973/74, enviou-nos mais uma mensagem desta sua série.


Camaradas,


Não obstante o silêncio entretanto constatado, eis-me de regresso ao blogue com mais um pequeno apontamento das “Minhas Memórias de Gabu”. 

Hoje, centro atenções na morte do soldado Damásio. 

Um militar exemplar, amigo, educado e que encontrou a morte em plena pista de aviação. 

Coube-me a missão de acompanhar a derradeira partida do soldado Damásio para a viagem sem regresso, fazendo o espólio dos seus haveres. 

Aqui fica, pois, os pormenores do sucedido. 

Morte estúpida na pista de aviação 
Damásio, soldado exemplar 

Diz-nos o teor da veracidade do BART 6523 que nos 14 meses de comissão em território da Guiné, o seu efetivo registou apenas uma baixa. É certo que o período normal de incumbência das nossas tropas naquela antiga província ultramarina, ia para além deste ciclo, porém a Revolução de Abril de 1974 acelerou o regresso do nosso exército das três frentes de guerra – Angola, Moçambique e Guiné - com as quais Portugal estava envolvido.  

O meu Batalhão, sediado em plena região de Gabu, não obstante os ataques noturnos, designadamente às companhias destacadas no mato – Madina Mandinga e Cabuca -, teve a sorte em não se deparar com eloquentes baixas resultantes de confrontos diretos com o IN, tão-pouco deparar-se com rebentamentos das famigeradas minas antipessoais ou anticarros que originavam efetivos para abater nas contas do exército português. As operações feitas no terreno passaram isentas de eventuais baixas que serviam para engrossar a lista de infelizes que perderam a vida no campo de batalha. 

Em parte incerta da obra “AS MINHAS MEMÓRIAS DE GABU”, tive o cuidado em expressar, com enfâse, que houve mortes que nada tiveram a ver com o conflito. Sou testemunha de uma morte estúpida, e única, de um soldado da CCS do meu Batalhão na pista de aviação, numa situação considerada aparentemente normal e quando nada o fizesse prever. Mas infelizmente aconteceu. 

Coube-me a tarefa para tratar o assunto de perto. Chamava-se simplesmente Damásio e era um dos soldados do meu grupo. Numa manhã, perfeitamente vulgar, o soldado Damásio integrou um grupo cujo objetivo único passava por descarregar bens alimentícios originários de Bissau e que vinham a bordo de um avião. Fez-se o habitual cordão para facilitar o serviço, sendo que o Damásio se colocou entre as duas viaturas destinadas ao carregamento. 

Num ápice, uma das viaturas tentou a aproximação a outra que se encontrava estacionada por perto e numa manobra arriscada – marcha atrás – embateu na traseira da outra viatura, sendo que o embate ficou marcado, infelizmente, pela morte imediata do Damásio que naquele momento se encontrava entre as duas viaturas. Foi horrível. Morreu esmagado. 

Como um dos líderes do grupo, tive a missão de organizar o espólio do infeliz Damásio e enviá-lo depois para a família. Não foi fácil lidar com toda a situação. O Damásio era um moço educado. Fazia amigos, facilmente. E eu fui um deles. Sei que guardei durante vários anos um documento onde tinha descriminado todas as suas pertenças pessoais que na altura mandei para os seus familiares. Nada faltou. Lembro-me do derradeiro adeus. As lágrimas dos camaradas que viram partir para a eternidade – a tal viagem sem regresso – um jovem que vivia, certamente, um mundo de sonhos. 

Senti, na altura, o vazio nas almas que se abateu sobre os seus familiares. Como explicar-lhes tamanha fatalidade! E nós, homens que convivíamos com ele diariamente, lá longe sem nada podermos transmitir aos seus entes queridos. Impunha-se aconchegar o seu profundo desespero, todavia a distância ditava, apenas, o carpir mágoas pelo seu infeliz último adeus. Ficavam as amarras do silêncio. O Damásio ficou-me eternamente na memória. Até sempre, camarada! 


Damásio (à esquerda) com o enfermeiro Alfredo Dinis, no navio Niassa a caminho da Guiné (foto do saudoso Dinis, membro da nossa Tabanca) 

Um abraço camaradas deste alentejano de gema, 
José Saúde 
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados. 
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Nota de M.R.: 

Vd. último poste desta série em: 


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