sábado, 28 de julho de 2012

Guiné 63/74 - P10202: Cartas do meu avô (15): Décima primeira (Parte III): a reforma, :a escrita, um ano em Perpigna, o regresso a Almada e à Caparica, e por fim... à justiça disse nada... (J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil, CCAÇ 728, Bissau, Cachil e Catió, 1964/66)

A. Continuação da publicação da série Cartas do meu avô, da autoria de J.L. Mendes Gomes, membro do nosso blogue, jurista, reformado da Caixa Geral de Depósitos, ex-Alf Mil da CART 728, que esteve na região de Tombali (Cachil e Catió) e em Bissau, nos anos de 1964/66. [, Foto à esquerda, com os netos]. As cartas, num total de 13, foram escritas em Berlim, onde vivem os netos, entre 5 de março e 5 de abril de 2012. (*)

B. Décima primeira carta - Parte III – Aposentação

Por fim, minha mulher tinha sido autorizada a vir para Lisboa. Estávamos a viver em Almada. Todos os dias tinha de vir trazê-la a Algés e levar o Luís ao colégio no Lumiar. E , ao final do dia, ir buscá-los. O calvário das bichas na ponte…

Os meus dias de aposentado passava-os em Almada. Quando regressava de Lisboa ia direito até ao paredão da Caparica.

Aí ficava grande parte da manhã a escrever e a ler, frente ao mar. Nas esplanadas daqueles bares muito bem erguidos em madeira. O “fofinho” e o vizinho, de um casal de retornados de Macau. Não me lembra o nome. Tudo desapareceu, naquele majestoso paredão, na voragem da novi-pseudo-urbanização urbana. Pérolas a porcos…

Enquanto não chegou a reforma de minha mulher. Foram os tempos mais radiosos da minha vida. Sem saber como, dei comigo a escrever…escrever…como nunca o sonhara.

A minha autobiografia desde a infância até ao fim da guerra; ensaiei romances; abalancei-me pela poesia; pelos contos e artigos para três jornais semanários. Foi uma doce e consoladora catarse às nuvens pardacentas do meu passado. Esconjurei os fantasmas todos, tenebrosos, do meu tempo de seminário…os da guerra e os da Caixa.

Lavei minha cabeça de toda a poeirada que nela entrara. Vivi livre…Se me apetecia, pegava no carro e aí ia eu, até Alcácer, até Évora, Setúbal , Sesimbra…Fui feliz. Cheguei a desejar que minha mulher se reformasse também…para continuarmos tudo aquilo a dois.

Inesperadamente, por força e efeito das mudanças de cadeiras na direcção do Instituto, surgiu a inefável hipótese de ir com minha mulher em sabática, durante um ano para Perpignan. Com um bom e suficiente subsídio…

Que experiência magnífica!...

Aí houve um total reencontro nosso. Ela, sozinha, nas suas investigações moleculares, com os recursos devidos, sem ninguém a chatear, produziu um trabalho excelente, inovador, eu, a giboiar pelas bordas azuis do mediterrâneo, desde Argelès até Colliure, ou a contemplar extasiado as níveas vertentes altíssimas dos Pirinéus…ditando poesia e as minhas narrativas sem parar, para o meu portátil, frente ao lago remançoso da Vile Neuve de la Raho…

Foi então que se assistiu no mundo ao maior atentado que se podia imaginar. As duas gémeas de Nova York foram derrubadas por um avião. Soubemos pelo rádio de França, quando regressava-mos ao hotel de Rivesaltes. Ali, ainda ninguém sabia. Pedi à recepcionista para abrir a TV.b Ficamos aterrorizados com o que estava a acontecer.


Daí em diante o mundo inteiro ficaria outro com toda a certeza. Sangramos de dor e horror. Quando fui para o quarto escrevi assim:

AS DUAS GÉMEAS …

É preciso, de imediato,
Lavrar a terra
E fazer renascer,
As duas gémeas,
No sítio exacto,
Onde tombaram.

É preciso reerguê-las,
A toda a pressa,
E repor, ao alto,
O valor americano,
A quem o mundo,
Apesar de tudo,
Muito deve,
No presente
E no passado.

É preciso que,
Doravante,
Todo o mundo
Se entenda,
Como gente,
Senão igual,
Como companheiros
De viagem,
Pelo universo…

Se enterre,
Para sempre,
Sem retorno
E bem à vista
Essa loucura,
Estúpida,
Armamentista…

Se queime e se estiole,
De verdade,
Toda a cultura
De semente
Que não dê pão
Ou força
À humanidade…

Que o país rico
Dê a mão,
Sem pedir preço,
Ao que nasceu pobre,
Ficou doente,
Ou não vai à escola…


E se não responda
À carnificina,
Com outra,
Igual,
Ou pior ainda…
...

Quem previu,
Algum dia,
Que o bastião americano
Fosse, tão vilmente,
Apunhalado?!…


Perpignan,
( restaurante-bar No Names)
14 de Setembro de 2001- 11h e 12m

Joaquim Luís Monteiro Mendes Gomes

[Imagem, editada, da Wikipedia, com a devida vénia]

Acabada a sabática, com muita pena, regressámos a casa. Para a nossa vida habitual. A minha mulher retomou as suas investigações no instituto. Eu passei a levá-la e buscá-la, como antes. Durante o dia, passava parte da manhã junto ao mar na Caparica, a ler e escrever e depois vinha para o meu escritório de advocacia em Almada- Ficava pertinho do tribunal. A maior parte dos casos que tratei foram atribuídos pelo tribunal, como advogado oficioso, pago pelo Estado, segundo a tabela própria.

Advogado de quem provava não ter recursos para pleitear em tribunal. Foram sobretudo casos de instauração de divórcios, regulação do poder paternal ou acidentes de trabalho. Como estava frente à porta do tribunal, fui muitas vezes chamado para julgamentos de detenções em flagrante delito.

Os intervenientes eram sobretudo ciganos. Por roubos ou zaragatas. De tal modo que me tornei no advogado mais procurado por eles. O pior era receber os honorários. Muitas vezes fiquei apenas com a primeira parte. A segunda, como ficava para depois do julgamento, ficou por lá. Tive de assentar na exigência do pagamento antecipado.

O último que tratei foi de uma raparigona cigana vendedora de roupa ao ar livre. Havia um contencioso instalado entre a GNR e os vendedores ambulantes, sem licença.
Esta moça fora desapossada de tudo o que tinha exposto no chão por uma brigada vestida à paisana. Houve grande desacato entre ela, os familiares e os agentes. Por não serem reconhecidos como tal.

A apreensão e o julgamento foram imediatos. Fui chamado para a defender. Pedi para falar com ela a sós e recomendei que ela se comportasse ordeira e com respeito. Que confessasse a reacção que tomara, por irreflexão e desorientada com a perda da mercadoria. E que se mostrasse arrependida.

Qual quê!? Quando o agente começava a contar ao tribunal como tudo se passara, ela exclama em alta voz, como se estivesse na rua:
- Olha-me este grande aldrabão. Roubou-me tudo e ainda me prendeu.

Olhei para ela e dei-lhe a entender que não devia falar assim. Ela acedeu. O juiz enfureceu e quase lhe deu ordem de prisão. Desrespeito ao tribunal. Como se ela fosse uma cidadã de alto porte.

Não era caso para tanto…

O último caso que defendi em Almada foi o de uma brasileira, trabalhava de mulher a dias. Tinha sido posta na rua pelo companheiro. Se não fosse embora, ele dava-lhe cabo da vida… Provou-se que foram verdadeiras as ameaças. Ele mesmo confessou que ameaçou e que admitia que ela pensasse que ele era capaz de o fazer. No final, quem esteve para ser condenada foi a mulher…

Foi mesmo o derradeiro caso. Bastou-me de compartilhar naquele sistema em descalabro. Desiludido.

Fechei a porta ao Direito para sempre.

(Continua)
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Nota do editor:

Último poste da série > 24 de julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10188: Cartas do meu avô (14): Décima primeira (Parte II): De regresso a Lisboa, para o contencioso, nos serviços centrais da CGD... (J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil, CCAÇ 728, Bissau, Cachil e Catió, 1964/66)

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