segunda-feira, 2 de julho de 2012

Guiné 63/74 - P10101: Notas de leitura (376): "Aviltados e Traídos - Resposta a Costa Gomes", por Mello Machado (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 15 de Maio de 2012:

Queridos amigos,
Foi graças ao confrade Duarte Azevedo que tive acesso a este livro do coronel Mello Machado.
Trata-se de um libelo acusatório à descolonização, há que ponderar os seus argumentos e os factos históricos recentes que ele desconhecia quanto à situação da Guiné, a sua comissão foi entre Fevereiro de 1969 e Dezembro de 1970. O levantamento dos factos político-militares já se encontra bem caracterizado até 25 de Abril de 1974, como recentemente se tem visto no blogue ainda há muita coisa a cruzar entre os relatórios e a vivências das unidades militares durante todo o período de transição para a independência.
Mais uma iniciativa a que o blogue se pode afoitar.

Um abraço do
Mário


Aviltados e traídos 

Beja Santos

O coronel Mello Machado (1928 – 2012) que foi comandante do BART 2865 entre Fevereiro de 1969 e Dezembro de 1970, no sudoeste da Guiné, escreveu em 1977 o livro “Aviltados e Traídos – Resposta a Costa Gomes” (Literal, 1977). Trata-se de um libelo acusatório contra o antigo Presidente da República, destaca frases de Costa Gomes durante o período da guerra e vem a terreiro queixar-se da traição da descolonização. Alega a sua experiência nos teatros de guerra, conheceu as três frentes, como escreve: “Por destino e profissão, cruzei os sertões distantes, vivi no seio das gentes dos territórios africanos atingidos pela guerra. Por ordem cronológica, primeiro Moçambique, depois Guiné, finalmente Angola. Evacuado da frente de campanha em meados de 1973, é longa a minha experiência”.

Vem juntar a sua voz àqueles que “arrastam entre nós o desespero do labor perdido, do sonho destruído, da fazenda espoliada, dos bens que viram roubados”. E procede a uma incursão pelos diferentes territórios. Como aqui só se fala da Guiné, vejamos os seus argumentos, depois de descrever os elementos geográficos mais pertinentes: “A guerrilha raras vezes aceitou combate. Subtraindo-se a qualquer contacto, preferia atuar por ações maciças de fogo, com armas de longo alcance sobre as guarnições militares ou povoados nativos indefesos, sem qualquer discriminação. Furtou-se sempre ao combate a peito descoberto, e quando o fez sofreu desaire, apesar do melhor armamento que dispunha. Muitas das flagelações por meio de armas pesadas eram desferidas a partir de bases em território vizinho. As guarnições de fronteira foram, de longe, as mais sacrificadas. Compreende-se que a solução da guerra não se encontrasse dentro dos acanhados limites da pequena parcela nacional (…) Exerci comando sobre guarnições todas elas implantadas em zona libertada. Indique as guarnições: Catió, Cufar, Bedanda, Cabedú, Cacine, Cameconde, Gadamael, Guileje, Ganturé. Nesta porção de território havia povoações nativas isoladas que se organizaram em autodefesa: Ilhéu de Infanda, Mato-Farroba, mais tarde Cameconde e Caboxanque. Tropas regulares e milícias, irradiando desta dúzia de localidades, patrulhavam as matas e asseguravam a proteção dos povoados nativos”.

Confessa o seu pasmo quando em Lisboa lhe mostraram estes aquartelamentos dentro do chamado “território libertado”. Porque não houve sufrágio para decidir, depois de 25 de Abril de 1974, de que lado queria ficar toda aquela população guineense. A guerra não estaria ganha dados os condicionalismos que descreve, mas admite que houvesse revolução em Angola e Moçambique chegaria a paz à Guiné.

Faz um breve excurso sobre o mosaico étnico para também concluir nem de perto nem de longe o PAIGC representava as aspirações dos povos da Guiné. E termina com uma poderosa catilinária: “Perverteu-se a disciplina militar; louvou-se a cobardia; instalou-se a desordem nos quartéis; contestou-se a hierarquia; comandos dos mais qualificados foram afastados das tropas que lhes votavam obediência e lealdade… A capitulação iniciou-se com o abandono da Guiné. As populações nem sequer foram consultadas. É certo que não mostravam disposição para aderir ao movimento libertador. Razões tinham para isso, lembradas dos martírios e violências até então sofridas. Talvez por isso malogrou-se a conferência de paz que reuniu em Londres representantes da soberania portuguesa com delegados do PAIGC. Nas guarnições militares daquele território assistiu-se à substituição de comandos; as tropas foram industriadas numa nova missão para que não estavam habilitadas – não deveriam combater! A televisão ajudou, bem como a imprensa, fazendo a apologia do PAIGC como legitimo representante da vontade dos guinéus. Chefiado por cabo-verdianos, não estaria lá muito bem identificado com os guinéus”.

São estas, no essencial, as referências à descolonização da Guiné. É do senso comum que as recordações de guerra que retemos têm uma data, o coronel Mello Machado teve a sua comissão na Guiné nos anos 1969 e 1970. Não fala de tudo quanto aconteceu depois, nomeadamente dos episódios críticos de 1973. Não há, nem podia haver, pois não estava no domínio público, uma só referência à reunião de Londres, de Março de 1974, entre um emissário de Marcello Caetano e uma comitiva do PAIGC, as ordens do diplomata eram para negociar um cessar-fogo e depois encetarem-se negociações para a independência da Guiné. Não há, nem podia haver, só recentemente é que se procedeu à divulgação do que seria o dispositivo aprovado para a manobra, negociado por Costa Gomes e Spínola, como Aniceto Afonso e Carlos de Matos Gomes escreveram: “A manobra proposta foi uma ação retardadora em profundidade para ganhar tempo e consolidar um reduto final que in extremis, ainda possa permitir a solução política do conflito. Para a constituição desse reduto eram considerados pontos-chave a manter a todo o custo: Aldeia Formosa, Cufar, Catió, Farim, Nova Lamego, Bafatá, a Ilha de Bissau associada às regiões de Bula e Mansoa. A situação aconselhava a um retraimento do dispositivo militar português que devia ficar com todas as unidades aquém da linha geral Rio Cacheu – Farim – Fajonquito – Paunca – Nova Lamego – Aldeia Formosa – Catió, para evitar o aniquilamento das guarnições de fronteira. Foi este novo dispositivo que Spínola e Costa Gomes acordaram em 8 de Junho de 1973. Esta solução de último recurso tem sido apresentada como prova de que no seu regresso a Lisboa Costa Gomes considerou a situação da Guiné como controlada e que o território era defensável quando era, como hoje se sabe, a única viável das três que lhe foram apresentadas por Spínola no memorando do comando-chefe: redução da área a defender; conservação do atual dispositivo sem qualquer reforço, à luz de um espírito de defesa a todo o custo; reforço do teatro de operações em ordem a manter a superioridade do inimigo. O general Costa Gomes emitiu a opinião de que, perante a impossibilidade de dotar a Província com os meios necessários à sua defesa, a única alternativa seria a de um retraimento do dispositivo com o abandono de largas áreas do território ao longo da fronteira. Esta solução é a clara admissão de que as forças portuguesas abdicavam da posse de boa parte do território da Guiné e das suas populações para concentrarem num reduto central. A soberania portuguesa seria assim apenas formal e enquanto pudesse sê-lo porque, a partir da declaração de independência que o PAIGC veio a fazer em Setembro, e logo reconhecida por 88 países, este reduto seria sujeito a ataques que poderiam contar com forças regulares de países africanos e que teriam justificação face ao direito internacional, pois Portugal já era considerado pelas Nações Unidas ocupante ilegal do território. O reduto central seria militarmente e politicamente cada vez mais indefensável. Com a adoção de uma estratégia deste tipo, o governo português sujeitava as Forças Armadas a uma derrota humilhante e o país a uma situação de vexame internacional”.

As queixas de traição, como é sabido, vêm de longa data e tendem a perpetuar-se, independentemente de hoje se saber que não havia volta a dar no caso específico da Guiné, pelo menos. Aqui fica a recensão de “Aviltados e Traídos” a juntar a outros documentos como “Vitória Traída” e “Em Defesa da Pátria”.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 1 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10097: Notas de leitura (375): Prefácio de † Joaquim Evónio de Vasconvelos ao livro de Manuel Bernardo "Marcello e Spínola: a ruptura: as Forças Armadas e a Imprensa na queda do Estado Novo (1973-74)" (Lisboa, 1ª ed,, 1994)

5 comentários:

antonio graça de abreu disse...

Diz Carlos Matos Gomes, Aniceto Afonso e subscreve o Mário Beja Santos:

"O general Costa Gomes emitiu a opinião de que, perante a impossibilidade de dotar a Província com os meios necessários à sua defesa, a única alternativa seria a de um retraimento do dispositivo com o abandono de largas áreas do território ao longo da fronteira. Esta solução é a clara admissão de que as forças portuguesas abdicavam da posse de boa parte do território da Guiné e das suas populações para concentrarem num reduto central. A soberania portuguesa seria assim apenas formal."

Como sabemos, depois do abandono de Guileje, em 73/74 não houve esta solução,não existiu nenhum retraimento do dispositivo militar
nem o abandono de quaisquer áreas militares. As opiniôes e teses de Costa Gomes
nada têm a ver com as realidades que todos vivemos. Mas Carlos Matos Gomes, Aniceto Afonso e Mário Beja Santos acham que sim. As opiniões, longe da verdade do dos factos, provam a derrota militar.
Até quando nos querem continuar a impingir estas opiniões como "verdades"?

Oiçam o general António de Spínola, no seu livro País sem Rumo, Lisboa, Ed. Scire,1978, pag. 60:

"Nos briefings diários, o general Costa Gomes aproveitava todas as oportunidades para aconselhar a retirada imediata das guarnições de fronteira e expressar a opinião de que se impunha iniciar o retraimento do dispositivo, acentuando que tais medidas nunca deviam ser interpretadas como um insucesso.
(...) Hoje, analisadas as opiniões e conselhos do general Costa Gomes à luz do seu ulterior comportamento no processo de descolonização, ressaltam à evidência os seus verdadeiros objectivos, ao tempo habilmente cobertos com argumentação militar justificativa de uma "manobra de retirada" mas que no fundo, se integravam numa maquiavélica manobra política mais tarde claramente revelada."

Para concluir, mais uma citação de Spínola no mesmo livro, pag. 62:

"Perante o insucesso da sua ofensiva (de Abril, Maio de 1973) e a limitação imposta pela impraticabilidade do terreno na época das chuvas, o PAIGC interrompeu a sua actividade operacional e a Província entrou num período de relativa acalmia."


Abraço,

António Graça de Abreu

Anónimo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anónimo disse...

..."Sem nexo.Acidente da inconsequência da superfície das coisas.Monótono,mas dorminhoco.E que brisas quando as portas e as janelas estäo todas abertas!"... (F.Pessoa)

Anónimo disse...

Camaradas,
"Não havia volta a dar no caso específico da Guiné". Discordo frontalmente, pois tinham-se iniciado diligências para aquisição de material capaz, no sentido de garantir a contra-subversão. E não se tratou disso anteriormente, por se ter menosprezado o IN, nem se ter sentido verdadeiramente a necessidade de criar condições para acabar com a guerra.
Ora, só numa posição de força se deve iniciar um processo de negociações. Tanto na política, como noutros negócios.
Face ao que aconteceu, poderemos perguntar, se foi melhor o conjunto de acontecimentos que se seguiram (decorrentes do 25/4), que não cuidaram de revanches, nem dos interesses morais e materiais que caracterizavam e equilibravam as sociedades portuguesas em África.
Claro que não foi melhor, nem para os africanos, nem para os portugueses. Aqui, aconteceu uma rebaldaria de traições, boa parte entre os elementos do MFA; generalizou-se a indisciplina, e gerou-se uma forma revolucionaria de "legislar" e de aplicação do direito. Quase paralisou a economia, o ensino, a justiça, o que deixou as pessoas à beira de ataques de nervos, divididas entre os vagos conceitos de revolucionários e reaccionários. No Ultramar, suscitaram-se rivalidades étnicas e racistas, e a comunidade branca foi constantemente enganada com as "garantias" prestadas pelo novo regime e pelo MFA, ma medida em que todas as comunidades foram excluídas das negociações intempestivas de independência, do que resultou o êxodo de brancos, e o estigma dos cidadãos que nunca pegaram em armas, e tiveram que assistir à delapidação do pouco que sobrou, sem voz activa nos novos meios políticos. Quer dizer, em nome da "democracia" "ajudámos" a criar novos déspotas.
Só uma classe se passeou altiva, poderosa, judiciária, transbordante de uma nova intelectualidade, ora simplista, ora complexa: os militares, para quem, afinal, fora feito o 25 de Abril.
Se deixaram vilipêndios nesse caminho, parece que não interessa a ninguém, porque a excelente manipulação dos "media", parecia ir ao encontro dos que não desejavam a guerra, a maioria, mas com o particular escondido, de ter sido a qualquer custo, e com grande negligência.
JD

Antº Rosinha disse...

Obrigado pelo esforço Beja Santos.

Já me falta a paciência que tu tens para ler quem tem menos informação que tu, eu e os que para aqui andamos.

Mas é bom ler o que se escreveu a quente e o que se vai escrevendo hoje.

A maior parte de nós, antes do 25 de Abril queria lá saber daquela política, queria era adrenalina para a vida.

A política veio depois, pelo menos para mim. Aos 36 anos comecei a ler e a ouvir tudo o que me foi possível principalmente na Guiné que havia vagar sem televisão nem rádio.

Agora tenho o blog e o pessoal como tu e alguns que não desistem.

cumprimentos