sexta-feira, 29 de junho de 2012

Guiné 63/74 - P10088: Notas de leitura (374): Obra Escolhidas de Amílcar Cabral (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 15 de Maio de 2012:

Queridos amigos,
Se dúvidas houvesse quanto ao talento transbordante de Amílcar Cabral como ativista, diplomata e estratega, bastava ler estes dois volumes selecionados por um amigo muito querido e outro grande ideólogo, o angolano Mário Pinto Andrade.
Temos aqui uma seleção das principais peças em alocuções, mensagens, palavras de ordem, relatórios, memorandos, discursos, curtas peças de circunstância.
Todos estes textos têm em comum a luminosidade, a coerência, a acessibilidade da comunicação. À distância de décadas mostram, se também necessário fosse, a dimensão do estadista revolucionário.
Neste momento só está à venda a antologia preparada por António Duarte Silva.

Um abraço do
Mário


Obras escolhidas de Amílcar Cabral (2) 

 Beja Santos 

O segundo e último volume das obras escolhidas de Amílcar Cabral segundo a organização do seu amigo Mário Pinto de Andrade (Seara Nova, 1977), estrutura-se em cinco áreas temáticas: a mobilização política, escritos assinados muitas vezes com o nome de Abel Djassi e difundidos sob a forma de folhetos, entre 1960 e 1963; relatórios de síntese, contendo por vezes elementos secretos, dirigidos quer a instâncias do PAIGC quer a instâncias da OUA – Organização da Unidade Africana; palavras de ordem, apanhados de reflexões em torno da teoria e prática do conhecimento da guerrilha, que conheceram a publicação em Novembro de 1965; orientações de política internacional em diversas assembleias; reflexões sobre o Estado da Guiné-Bissau, em que sobressai, de forma insistente, a designação de um território nacional cujos centros urbanos teriam ocupantes estrangeiros, e em que o PAIGC se perfila como Partido – Estado. O conjunto destes documentos dá conta do talento polifacetado do líder do PAIGC: mensagens cortantes, económicas, comunicação acessível, imbuída de confiança e plena convicção. É um estilo poderoso no panfleto, no documento, no relatório, na intervenção enquanto conferencista. Como, abreviadamente, se passa em revista.

No memorando datado de 1 de Dezembro de 1960 e dirigido ao governo português, Cabral procura tirar partido do apoio internacional então disponível, criando mesmo uma ampliação genérica: “No campo internacional, temos hoje o apoio incondicional da esmagadora maioria dos povos do mundo e podemos contar com a ajuda eficaz de várias países amigos, no quadro dos princípios enunciados em Bandung, nas Conferências dos Povos Africanos e nas Conferências de Solidariedade dos povos Afro-Asiáticos. Na ONU, a resolução tomada pelo conselho de tutela em 12 de Novembro, pôs um ponto final na falsa argumentação que os legados portugueses souberam sustentar durante alguns anos em torno da natureza jurídica dos territórios ocupados por Portugal e acerca das obrigações do governo português para com os povos desses territórios. O próprio governo espanhol teve de quebrar a sua  já tradicional solidariedade para com o governo português, e este encontra-se hoje totalmente isolado, pois não tem, nas votações da ONU, senão um parceiro indesejável – o mais racista e mais colonialista de todos os governos (África do Sul)”.

Passando para os relatórios referentes à ação armada, merece logo destaque o relatório referente ao Congresso de Cassacá e a subsequente apresentação de resultados no plano político e administrativo e no plano militar. Anuncia, no plano militar: “Reorganização da luta armada, nomeadamente pela restruturação e a redistribuição das forças armadas e pela criação de comandos inter-regionais e de um órgão central de direção da luta armada (o Conselho de Guerra); - criação das Forças Armados Revolucionárias do Povo (FARP) englobando a guerrilha, as milícias e o exército popular; - extensão e multiplicação das frentes de luta que atingiram todas as regiões ainda não libertadas, transformando profundamente a fisionomia da guerra (o inimigo tem a partir de agora que se bater em todo o país); - intensificação e aumento de frequência dos nossos ataques contra os quartéis portugueses; formação de quadros militares especiais (armas pesadas, armas antiaéreas, etc.), e quadros destinados à luta armada nas ilhas de Cabo Verde); - vitórias importantes levadas a efeito pelos nossos combatentes, nomeadamente na região do Gabu, Boé, Canchungo, São Domingos e regiões contíguas, ao longo da fronteira Norte; - consolidação das nossas posições nas regiões libertadas, reforçada pela obtenção de meios mais eficazes de defesa”.

Recorde-se que estes princípios angulares foram estritamente cumpridos e anunciam o primado do poder político sobre o militar que só se irá inverter depois do golpe de 14 de Novembro de 1980. Cabral era provido de uma capacidade jornalística incontestável, era um bom panfletário e manejava perfeitamente a toada revolucionária, usando expressões como “Estamos a viver um período decisivo para libertação do nosso povo do jugo colonial português” ou “Fazendo face com coragem aos aviões portugueses e votando à derrota todas as tentativas das tropas coloniais visando recuperar o território nacional libertado, o nosso povo e os nossos combatentes infligiram ao inimigo as baixas mais pesadas sofridas até ao presente no nosso país” (isto escrito em Maio de 1968). Escrevia freneticamente relatórios para diferentes destinatários. Durante anos a fio redigiu jornais escritos num português de primeira água. As suas mensagens de Ano Novo eram documentos enquadradores, referiam resultados e apontavam metas, o mesmo se podendo dizer das mensagens que dirigia para o interior do PAIGC em datas-chave. As mensagens de 19 de Setembro de 1972 e de Ano Novo de 1973 são dois documentos de leitura obrigatória: fica-se a saber como se preparava a independência e como se previam as ações militares durante 1973.

O mesmo se dirá das palavras de ordem, documentos sucintos sempre com consignas: esperar o melhor, mas preparar-se para o pior; conhecer bem as nossas forças e as forças do inimigo; reforçar a segurança e a disciplina em todos os sectores de luta; destruir a economia do inimigo e construir a nossa própria economia. Na mensagem “Melhorar os nossos conhecimentos e defender a nossa saúde” refere a criação de escolas e a formação política dos professores, alerta para a mania de querer deixar o país para ir estudar com a ambição cega de ser doutor, lembra que os responsáveis do partido devem dar o exemplo dedicando-se seriamente ao estudo, não descurando os aconselhamentos práticos na assistência sanitária, revelando um conhecimento perfeito da realidade e dos meios disponíveis.

Quanto às relações internacionais, Mário Pinto Andrade selecionou um conjunto de textos que vão desde o início dos anos 60 quanto à participação das organizações nacionalistas das colónias portuguesas em eventos internacionais até às intervenções que Cabral proferiu na ONU, caso do importante texto que redigiu em Outubro de 1972. É preciso ler todos estes textos de Cabral para se perceber que foi ele quem pôs de pé o partido, quem o mobilizou, lhe ofereceu o verbo da motivação, são documentos que revelam, do princípio ao fim, o ideólogo, o lutador unitário, o organizador, o estratega, o diplomata e o revolucionário no quanto este termo inclui o agitador, o equilibrador de fações ou grupos, o criador de factos políticos efetivamente inovadores, suscetíveis de surpreender os camaradas e os adversários, e Mário Pinto de Andrade foi muito feliz nesta seleção de peças, Cabral escreveu de forma transbordante, é preciso lê-lo para se perceber o gigantismo do político.
____________

Nota de CV:

Vd. últimos postes da série de:

26 de Junho de 2012 > Guiné 63/74 - P10076: Notas de leitura (373): Na Kontra Ka Kontra, de Fernando Gouveia (Fernando Gouveia / René Pélissier)
e
25 de Junho de 2012 > Guiné 63/74 - P10070: Notas de leitura (372): Obra Escolhidas de Amílcar Cabral (Mário Beja Santos)

4 comentários:

CEBE disse...

Obrigado por estas resenhas! Gostava muito de conseguir encontrar estes dois volumes, saberá apontar-me para alguma livraria e/ou alfarrabista (em Portugal ou Cabo Verde) que os possam ter?

Muito obrigado e boa continuação!

João Peixoto

Antº Rosinha disse...

Mais uma vez obrigado ao MBS.

E sobre Amílcar hoje não emito opinião.

Mas vou falar da minha opinião sobre o nome Pinto de Andrade e os anos em Paz do antes e durante a "nossa guerra" na terra de Mário Pinto de Andrade, Angola.

Este nome de família Pinto de Andrade, era muito conhecido em Luanda ao lado de outros nomes como os Van Dunem, os Boavida, os Laras, os Peyroteo, os Ribas, Correia Mendes, mas todas as cidades de Angola tinham famílias muito grandes e muito antigas com tradições e muito respeitadas.

E todas essas famílias tinham muita instrução e educação, e desafogo financeiro àquela maneira de Angola em que tudo era acessível.

Em Angola não havia grandes riquezas nem grandes misérias nestas famílias tradicionais que em geral havia já muita mestiçagem, albergando naquelas enormes casas com grandes quintais e mulembeiras e cajueiros de sombra, uma infinidade de gente à maneira familiar africana.

Quando os retornados como eu dizemos que aquilo "lá em Angola é que era bom", que é difícil de compreender a quem não viveu, temos que agradecer àquela gente tradicional maravilhosa que preparou uma vivência que só visto.

E a malta ia daqui e adaptava-se e naturalmente integrava-se.

(aprendiamos a colonizar com eles, digo eu para escândalo de muitos, mas no meu caso foi real)

Mas sobre estas famílias, ninguém tenha dúvida que todos sonhavam com as independências.

E ninguém tenha dúvidas que foram muito poucos que aderiram ao processo das armas, principalmente depois que a UPA fez aquele terrorismo em 1961.

E, neste caso do Mário Pinto de Andrade é a figura típica do revolucionário que "perdeu a vez" dentro da revolução que apoiou.

Não se fixou dentro das estruturas do MPLA, e depois no partido irmão do PAIGC, ao lado de Luís Cabral, também teve que desistir.

Aqui em 1980 eu vi o desfecho ao vivo.

E tenho muita pena que figuras assim,tenham de uma maneira ou outra desaparecido do processo das independências e que muita falta faziam tanto em Angola como na Guiné.

E pior foi aqueles que foram para o Brasil e outros para cá, como fizemos os retornados, alguns eram pessoas que eu conheço, e que não ficaram a bem connosco aqui, porque a vida é diferente, nem com as suas terras em guerra.

Foram muitos milhares de gente fora de série e ficou "como peixe fora de água".

Beja Santos, já era bom lembrar analistas de Amílcar, que este jamais mandaria pôr minas anti-pessoal em Caboverde, contra seus "ermons".

Cumprimentos

antonio graça de abreu disse...

Este blogue é um espanto!

Acabo de ler um poste do Luís Graça que fala de 50 toneladas de arroz levadas pelas NT , as Nossas Tropas, às populações de Xitole/Saltinho, que descreve operações no sector, e mostra fotografias de excepcional qualidade, retratos reais das vidas de todos nós.
Acabo de ler um poste com referência sentida aos norte-americanos que em 28 de Maio comemoraram o seu "Memorial Day, honrando assim os seus heróis".
Acabo de ler um poste sobre as Obras Escolhidas de Amilcar Cabral onde o seu inefável e proactivo (como se diz agora!) admirador Mário Beja Santos fala do seu "talento transbordante, "como activista, diplomata e estratega", onde fala da "luminosidade, coerência,dimensão do estadista revolucionário", do "gigantismo" de Amilcar Cabral.

Curioso também, e arrasador, creio, o comentário do C. Martins ao poste 10070 do Mário Beja Santos, sobre o mesmo Amílcar Cabral, há cinco dias atrás, onde diz:

Considero que foi um "pensador politico" brilhante, assim como não ponho em causa a sua capacidade intelectual e técnica e cientifica como agrónomo.
Vi em Bafatá um busto em sua homenagem completamente abandonado, e miúdos a urinar na base do monumento.
Questionados sobre se sabiam de quem era aquele busto, não faziam a mais pequena ideia."

Ai, Guiné, Guiné...

Abraço,

António Graça de Abreu

Carlos Vinhal disse...

Sugestão do nosso camarada Mário Beja Santos ao nosso leitor João Peixoto:

Eu se fosse ao João Peixoto adquiria a obra “Documentário”, por Amílcar Cabral, organização e apresentação de António Duarte Silva, Livraria Cotovia, 2008.
Um abraço do
Mário