sexta-feira, 15 de junho de 2012

Guiné 63/74 - P10036: Notas de leitura (369): "Bissau, Entre o Amor e a Guerra", de Leonel C. Barreiros (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 30 de Abril de 2012:

Queridos amigos,
Fui há dias dar umas aulas de segurança alimentar no Instituto Superior de Estudos Militares, coscuvilheiro como sou, entrei na biblioteca e descobri esta pérola.
O soldado Calvário é seguramente o alter-ego de Leonel Barreiros, com quem já falei e já se começa a viciar no nosso blogue. Depois do livro de Manel Mesquita, é a descoberta prazenteira de um relato não confabulado, o diário de alguém que a partir da Amura, sem encobrimentos da sua vida íntima, nos descreve os primeiros anos da guerra.
Mais uma edição de autor que precisa de conhecer a grande circulação. A ver se o Leonel Barreiros nos descreve mais coisas quando entrar no blogue.

Um abraço do
Mário


Diário do soldado Calvário, da Companhia de Polícia Militar 590, Guiné 1963/1965

Beja Santos

Ninguém ignora que foram pouquíssimas as praças que escreveram testemunhos sobre as suas comissões militares. Leonel C. Barreiros foi soldado de uma Companhia de Polícia Militar, viveu sem desfalecimento na fortaleza da Amura dois anos e escreveu um diário dos quais publicou um extrato em 1993, edição de autor.

É um relato singular de alguém que escreve prosaico, que dá público testemunho de engates e muita estúrdia, temos ali a evolução da guerra contada por terceiros que passam por Bissau, que ele visita no Hospital Militar; percebemos a máquina da informação e da contrainformação, o autor despe por dentro a instituição mais odiada por todos aqueles que passavam por Bissau, por esta ou por aquela razão – a PM. “Bissau entre o amor e a guerra” é um feliz achado, um testemunho que se recomenda aos investigadores, está ali o registo dos primeiros anos da guerra, saem do punho de alguém que não se precisa de vangloriar pelo que viu e ouviu.

Primeiro, a despedida da família, as dores vivas da separação, o embarque no “Índia”, nos finais de Outubro de 1963. Ele chama-se Calvário e vem de Viseu. Ficamos a saber que o alferes Mário Tomé é o número dois da sua Companhia. Vão prontamente habitar na fortaleza de S. José da Amura. O diário começa a 5 de Outubro, primeiro dia de serviço. Aliás, pendularmente o Calvário está de reforço, na ronda, ordenança, de reforço ou de faxina ao refeitório. O primeiro serviço é no Hospital Militar. Uma enfermeira dá-lhe as seguintes instruções: “Tome bem nota do que vai ouvir. Está aqui dentro um nativo com a patente de alferes-tenente, comandante de uma companhia de guerrilheiros. Há quatro dias atacou as nossas tropas, onde perderam a vida 4 homens e foram feridos todos quantos estão dentro daquela enfermaria. Neste quarto só pode entrar o oficial de dia, médicos, pessoal de enfermagem, comandante militar e as senhoras do Movimento Nacional Feminino”. Irá estabelecer-se uma comunicação afetiva entre guerrilheiro e polícia, ao longo de meses. Aos poucos, Calvário familiariza-se com Bissau. Surge a lavadeira, Canjala, a primeiríssima história de envolvimentos amorosos, de curta ou média duração.

Assombra-se com os alfaiates de rua. Faz por vezes serviço na Capela Militar de Santa Luzia, onde jazem em câmara ardente os tombados em combate ou por acidente. Vai apresentado os seus camaradas, começa pelo Rei do Sono, um dorminhoco crónico. Antipatiza com o Cabo Rancho. O comandante dá murros a torto e a direito. Logo em Novembro toca a piquete e vão para a Praça do Império dispersar uma manifestação. Aparece lá na caserna o Montijo, um ex-P.M. que cumpriu serviço em Bissau e agora é chefe de posto no interior e descreve-o: “O seu aspeto físico era resultado do medo que os nativos tinham dele. Pelo bem, era boa autoridade administrativa; pelo mal, agia severamente”. E comenta, adiante: “O movimento da guerrilha alastrava cada vez mais. Os componentes destes grupos, quando feridos, eram levados para o Hospital Militar, onde eram tratados da mesma forma que os militares portugueses”. De vez em quando saem de Bissau, vamos ficando a saber que há flagelações e intimidações à população à volta de Mansoa, minas na estrada Bula-Binar. Ao fim de um mês, já não está impressionado com todos aqueles helicópteros que depositam feridos no Hospital Militar. Depois Mariana, uma cabrita, entra na vida de Calvário. É pela rádio que ele vai conhecendo o desenvolvimento da guerrilha, em Farim, no Gabu, fala-se insistentemente no Sul. Vamos conhecendo mais nomes da malta da caserna: o Viana, o Corroios, o Alentejano, o Moraria, o Leiteiro, o Faralhista, o Entretela, o Arrentela. Nas folgas, vão em grupo e atacam em todos os bailes. Chegou-se à quadra do Natal e ele anda triste: “Muitos militares choravam às escondidas. Depois do jantar, o grupo dos mais malandros juntou-se a mim para cantarmos a chorar hinos ao Menino Deus, fomos assistir à missa do galo, depois seguiu-se um espetáculo de variedades". Calvário tem várias madrinhas de guerra ao mesmo tempo.

É um diário onde se registam rixas, bebedeiras monumentais, bailaricos com meninas bem empoeiradas com pó de talco. E há também quadras ao gosto popular, como no Dia de Reis de 64, o Calvário soube que tinha havido mais dois mortos na zona de Buba e assim escreveu: “Entre a guerra e o silêncio/ E a sombra de um mangue/ Lágrimas de mães e de noivas/ Rostos lavados em sangue./ Nos olhos tristes dos tristes/ O fúnebre cortejo passando/ Como a tristeza de uma ave/ Que a voar se vai queixando”. Aqui e acolá, vão fazendo rusgas, de vez em quando apanham armas e até sacos com granadas. A 14 de Janeiro escreve que aqui embarcou o batalhão 490, vão participar numa operação designada por “Colmo”. Ele sabia que era um grande empreendimento e iam muitos militares para um objetivo onde os guerrilheiros estavam bem implantados. Ficou impressionado com aquela máquina de guerra que partia do cais de Bissau para as ilhas do Sul. É Marina que vai informando do que se está a passar, os guineenses sabem muito bem do que se trata. A partir daí o seu diário fala dessa operação sem parança, a P.M. procede a escoltas do carregamento de munições para o aeroporto, mas não deixa de dar outras notícias, úteis para se perceber o desenvolvimento da guerrilha, como em 20 de Janeiro: “A visita do Fernando Cristino de Viseu fez com que andássemos todo o dia na borga. Mas deu-me a possibilidade de registar os acontecimentos mais interessantes do seu destacamento por terras de Farim. Pertencia ao Esquadrão de Cavalaria n.º 365 com Comando em Bafatá. Deste esquadrão saiu destacado o pelotão do Cristino para Farim, onde esteve até terminar a Comissão. Deste pelotão saiu para a localidade de Binta uma secção para guarnição aos celeiros da mancarra. Certa noite foram atacados por aqueles que comiam e bebiam com eles à mesa, com espingardas de carregar pela boca, duas com carregador de balas e umas 4 ou 5 caçadeiras (…) A primeira baixa que sofreram foi quando rebentou uma mina por baixo da autometralhadora o que deixou o condutor com as duas pernas estilhaçadas. A segunda baixa surgiu quando o cabo que levava o detetor de minas levou uma rajada no pescoço, surpreendidos por uma emboscada”. Os noticiários radiofónicos matraqueiam com o sucesso da operação do “Colmo”. Como o pré é insuficiente, Calvário e muitos outros tornam-se dadores de sangue, sempre eram 450 escudos de cada vez, era dinheiro para a ramboia. De vez em quando são metidos num rebocador, vão desempenar barcos carregados de mancarra e segundo relata chegam ao Corubal, não se percebe lá muito bem, fala no Xitole que, como se sabe, estava distante do Corubal. Chegam notícias que as coisas naquela grande operação do Sul não estão a correr bem, os céus de Bissau estão a permanentemente a ser riscados pelos aviões que partem ou chegam.

É um diário que se lê sem tédio, é uma prosa possível para um jovem com a 4.ª classe que vai averbando cenas de pancadaria, engates descarados, os estampidos da guerra, crianças que perdem os pais, que anda em idílio com a Mariana e começa a perceber que aquela chegada contínua de batalhões tem mesmo a ver com o progresso da guerrilha. E estamos em Março de 1964, Calvário escreve sem parar, praticamente todos os dias. E consegue esconder todos aqueles apontamentos de olhares indiscretos.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 11 de Junho de 2012 > Guiné 63/74 - P10021: Notas de leitura (368): Revista "Ultramar" e "Abrindo Trilhos Tecendo Redes" (Mário Beja Santos)

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