quarta-feira, 6 de junho de 2012

Guiné 63/74 - P10006: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (53): Bula - A guerra das minas (3) - Acontecia... Bummm!!!

1. Mensagem do nosso camarada Luís Faria (ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72), com data de 3 de Junho de 2012:

Caro amigo Vinhal
Um abraço com desejo que a saúde e o bem-estar te assistam.
Por saber que o trabalho dá saúde e promove o bem-estar, espero contribuir para tal enviando-te mais um apontamento de “Viagem…”se calhar merecedor de “rodinha” para alguns eventuais leitores mais emocionáveis, talvez até “Eleitos” no mesmo ou noutros cenários e a quem desde já peço desculpa por eventualmente interferir em campos guardados na memória.

Saúde e um abraço para todos
Luís Faria


Viagem à volta das minhas memórias (53)

Bula - guerra das minas (3)

Acontecia

BUMMM!!!

O estrondo de um rebentamento ali muito próximo deixou-nos expectantes…

Os dias iam-se acumulando vagarosamente no depósito dos passados e no dos a ultra-passar, estes com recortes de dor e sofrimento para uns, de mágoas e tristezas para outros, de inseguranças e receios para uns outros, julgo de esperança para todos.

Eram dias encimados em dias, que se iam transpondo na fragilidade de um “arame suspenso” e em tensão de alto risco, esticado e sem rede de segurança por sobre uma arena também ela potenciada de riscos sérios.

A “barra de equilíbrio” usada para ir dando passos e conseguir transpor esse arame, era basicamente feita de serenidade, atenção e contenção, ingredientes que dada a natureza humana, nem sempre sendo conseguidos vinham a causar a perda de equilíbrio que provocava o desastre, podendo o mesmo também acontecer e sem se conhecer o porquê, ou pura e simplesmente o “arame” rebentar e sem aviso, o BUMMM… do rebentamento inesperado ali ao lado deixava-nos expectantes do e a quem tinha acontecido!

Os dias negros em que situações destas aconteciam, continuo a falar por mim, em que o estropiamento de um companheiro acontecia e nos marcava, tinham que ser arrumados não no depósito dos passados mas no dos a ultrapassar e fechados com as chaves da Fé e da Esperança, único modo de se ir conseguindo enfrentar e viver os vindouros.

A acontecer o desastre, esperava-se ao menos ficar com a articulação do joelho, de modo a acabar por do mal, o menos, poder andar sem muleta! Daí e nestas lides eu usar sempre as minhas botas em couro de meio cano alto e ajustadas, que acreditava poderem vir a contribuir na protecção e nesse sentido.

Botas que usava nas minas

Dizia-se até que na desdita (aos “felizardos” certamente) seriam aplicadas próteses na Alemanha, que imitavam a carne e que até permitiam correr e jogar futebol. Para as caneladas deveria ser óptimo, este incentivo de truz!!!!

Em confrontos nas matas daquela terra já tinha presenciado e vivido diversas situações em que companheiros ficaram feridos com gravidade e de morte. Foram momentos difíceis que houve que ultrapassar mas que se não esquecem e ficam para sempre na memória pormenores (?) subjectivos gravados com nitidez, de imagens que se vão esbatendo ao longo do tempo.

Honestamente, por maior que fosse o choque sentido não era de me deixar abater e de deixar transparecer emoções ou constrangimentos na presença dos feridos, fosse qual fosse a sua gravidade. Achava e continuo a achar que esse tipo de reacções, naturais e comuns é certo, provocavam um efeito negativo no ferido e até em expectantes, podendo levar inclusive a laxismos e desorientações que não podiam ter lugar nessas ocasiões, pelo que e a meu ver, em especial quem exercia funções de comando deveria conseguir controlo sobre essas emoções

Nesses momentos de dor e incerteza para o ferido, julgo até que agravada de solidão em ausência da família, a hora deveria ser de tentar interromper esse estado de espírito, de incentivar não demonstrando preocupação em demasia, quiçá “chistando” até com o acontecido ou com as consequências.

Recordo a propósito uma “converseta” sic ou quase, com “eleito” estropiado:
- Oh Faria, dá-me água...
- Bai -te f…Queres água p’ ra quê? Entra-te pela boca e sai-te pela perna…”!??! (segundo o que parecia saber, naquelas situações não deveriam beber?)

Usei-o a meu ver com resultados positivos. Se o ferido fosse eu, não gostaria de sentir a meu lado a imagem do “carpidor” que olhava o desgraçadinho do coitado, do que pena, do que está f…! Quereria era sentir iniciativa, confiança, segurança, naturalidade, despacho. Bom, mas como disse era assim que pensava e sentia e como tal adoptava esse tipo de conduta que poderia ser criticável, bem sei. Ainda hoje assim acontece.

À excepção da morte ocorrida no Balanguerez (P7172) provocada por um RPG directo, digo com sinceridade, o que sentia em presença dos feridos pelas minas era diferente, bastante diferente e mais intenso do que os acontecidos nas matas, em combate. Eram ferimentos ”feios” que impressionavam pelo estado e aspecto.

A vista do membro estraçalhado, à mistura com aquele odor a sangue e carne queimada a explosivo era realmente perturbador e continuo a falar por mim, difícil de encarar e esquecer, desencadeava um turbilhão de emoções. Na verdade para se conseguir controlar e manter o equilíbrio emocional em presença, havia que fazer um grande esforço de “alheamento” e contenção para não deixar transparecer essas emoções.

Posteriormente e a mais das vezes, podia-se extravasar toda essa contenção. O bar não fugia, a viola repousava pelo quarto, o abraço, palavras de amizade e apoio aconteciam!

No quartel a ambulância era esperada e recebida com ansiedade, curiosidade, comoção e até por descontrolo emocional causador de distúrbios psíquicos (?), como chegou a acontecer causando para a vida feridas nunca bem cicatrizadas.

Já o disse, para mim foram os tempos mais desgastantes e dos mais difíceis porque passei nessa guerra, que por Graça acabou por me poupar e ao que sinto até ver, não me deixou feridas mal cicatrizadas do corpo ou psicológicas.

Luís Faria
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 4 de Maio de 2012 > Guiné 63/74 - P9850: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (52): Bula - A guerra das minas (2) - Os "eleitos"

7 comentários:

Anónimo disse...

Caro camarada Luís Faria

Confesso que o que mais temia eram as minas, apesar de ser artilheiro.
Talvez por isso tinha e tenho uma grande admiração pelos "minas e armadilhas",apesar de ser a arma mais "cobarde" aplicada em qualquer guerra,estes montavam e levantavam as próprias e as alheias com os riscos inerentes...
Sobre o não dar água a um ferido era completamente incorrecto, a não ser que fosse evacuado quase imediatamente e tratado no HMP, o que infelizmente era quase impossível.
A razão tem única e exclusivamente a ver com a necessidade de ser anestesiado, e por isso tem que ter o estômago vazio, devido a poder,se desencadear o vómito,aspirar o conteúdo gástrico e provocar no mínimo uma pneumonia química.
Sobre a garrotagem,esta provocou muitas vezes a morte por embolia gorda.
Hoje a tecnologia e tratamento médico evoluiu muito nos grandes ferimentos traumáticos de guerra.

Um alfa bravo

C.Martins

Luis Faria disse...

C.Martins

Agradeço a tua explicação.

À altura a informação que tinha era não se dever dar de beber a traumatizados graves e sim humedecer os lábios.A estes feridos era-lhes dada uma injecção(estabilizadora?)e julgo,mas já não posso afirmar,eram postos de imediato a soro.Seria?pergunto.
(Sobre essa injecção não esqueci uma estória que eventualmente abordarei)
Um abraço
Luis Faria

Anónimo disse...

Caro LUÍS FARIA e restantes camaradas

Colocar um soro era fundamental e se possível clampar´(apertar) as artérias que estivessem rompidas,era para isso que se colocava o garrote.
Quando se é ferido a morte é devida ao "shok hipovolémico (perda de grande quantidade de sangue), e é também por isso que se sente uma sede muito intensa.
Quanto à injecção que referes seria provavelmente um digitálico (digoxina) que aumenta a força da contracção cardíaca e um corticosteroide que diminui a possibilidade de "shok".
Era também mandatório injectar petidina ou mesmo morfina para as dores.
Quero realçar que esta minha explicação é baseada nos meus conhecimentos actuais.
Quem pode fornecer uma informação mais correcta são os camaradas furrieis enfermeiros ou médicos sobre a forma de actuação na altura.
NÃO,NÃO ESQUEÇO AS ENFERMEIRAS PÁRAS...ESSES ANJOS QUE DESCIAM DOS CÉUS E SALVAVAM AS NOSSAS VIDAS,incluindo a minha.

Um alfa bravo

C.Martins

Anónimo disse...

Fui testemunha de muitos dos acontecimentos que relatas, tendo tido a sorte de não ter sido interveniente directo. Fiz contudo, com o meu Grupo de Combate,em algumas ocasiões a vossa protecção de retaguarda, que não era tão longe que não ouvisse não só os rebentamentos, como as pragas e alguns gritos de dor, dos nossos colegas, menos afortunados!Em memória desses tempos, a minha solidariedade, para com todos vós, menos afortunados que eu.

Aquele abraço.

JORGE FONTINHA

Anónimo disse...

Caros amigos,

Sobre minas e armadilhas, as do inimigo, aterrorizavam qualquer um. Concordo que era uma arma extremamente cobarde. A intenção primária do seu uso nem sempre era matar, mas estropiar vidas humanas para a vida.

Mesmo assim, se me é permitido parafrasear o Fur. Mil. Enf. Esteves da CCaç 3327, o nosso Sol. Aux. Coz. Cabral, numa redacção preparatória para o seu exame de adulto, lá foi escrevendo que as nossas minas eram boas. Más eram as plantadas pelo PAIGC. Lá teria as suas razões!

Um abraço amigo,
José Câmara

Anónimo disse...

Viva Luís,
Com este post correste o risco de, não lendo o essencial sobre a aplicação técnica, a má surpresa latente, e o controle emocional, centrares a atenção dos leitores no aparente desprezo por quem sofria.
Eu também corro esse risco. Se havia actividade intensa do(s) enferneiro(s), para além de presenças mínimas para qualquer eventualidade, em meu entender, o ambiente devia ficar livre de gente e das naturais reacções, que poderiam susceptibilizar o(s) ferido(s).
Somos todos diferentes, e a expressão mais efusiva do sentimento de revolta pela adversidade, não significa maior solidariesdade, ou sentido da responsabilidade, perante os acontecimentos. Principalmente, se tivermos em conta, que a guerra não proporcionava intervalos para assistência aos feridos.
A minha actividade de minas e armadilhas ficou indelevelmente marcada no início da comissão, quando acompanhei um veterano ao Corubal para levantar as minas que tinha colocado quase dois anos antes. Estivémos, sem o saber, num pequeno campo de minas, e foi aquele veterano que lá perdeu um pé. Decidi, então, que não procederia de igual modo, mas também não tive que me confrontar com semelhantes situações.
Mais grave: saí algumas vezes para patrular aquela região, e não tinha conhecimento da colocação de minas "boas".
Abraços fraternos
JD

Hélder Valério disse...

Caro Luís Faria

As tuas 'viagens...' têm um traço comum: consegues 'falar' de situações, de ambientes, de episódios, com um aparente distanciamento mas com uma profunda emoção, que nos transmites e que absorvemos facilmente.

Esta situação, das minas ('más', as dos outros, ou 'boas', as nossas) foi sempre (e acho que será) um dos piores pesadelos para quem 'esteve lá' e quem teve que lidar de mais perto com elas tem ainda o meu maior respeito e admiração.

Abraço
Hélder S.