quarta-feira, 23 de maio de 2012

Guiné 63/74 - P9938: Cartas do meu avô (5): Segunda Carta: Em Catió (Parte IV) (J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil, CCAÇ 728, Bissau, Cachil e Catió, 1964/66)

A. Continuação da publicação da série Cartas do meu avô, da autoria do nosso camarigo Joaquim Luís Mendes Gomes, membro do nosso blogue, jurista, reformado da Caixa Geral de Depósitos, ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Os Palmeirins de Catió

que esteve na região de Tombali (Cachil e Catió) e em Bissau, nos anos de 1964/66, vivendo presentemente em Berlim.

B. SEGUNDA CARTA – EM CATIÓ (PARTE IV) (*)

Lichtenrade, Berlim, 14 de Março de 2012

6- Da Tormenta à Bonança

Ao cabo de uns meses, as cartas do Funchal começaram a rarear. Como é natural. Em vez delas, as de Lisboa chegavam certas.

A ansiedade pela avioneta do correio começava a crescer. Virá alguma ou não ? Sentia um verdadeiro deleite em ler cada uma que chegava.

O castelo delas ia subindo de altura, perto da cabeceira. Ia-as relendo e saboreando no intervalo de cada vinda da avioneta. Falavam-me da vida serena e pacata duma família aburguesada com os hábitos de Lisboa. As belezas de Sintra [, foto à direita, Palácio Nacional, postal antigo, fonte desconhecida, ] e Cascais que eu conhecia mal,  vinham descritas com mestria, ao contar os passeios de Sábado ou de Domingo, com os pais. Vila Franca e Salvaterra. Alcácer e Setúbal. Ficaram indelevelmente gravados na minha fantasia, como sítios onde teria de ir, uma vez regressado.

As peripécias do curso de biologia e aquele mundo imaginário da universidade, onde eu gostaria de ter entrado já. Histórias do seu gato preto, à mistura com as dos garotos da catequese. Aquelas tricas que há sempre dentro da família. A da Avó que, embora sempre “atrelada” aos passos da família, para todo lado onde fosse, ela ali estava, e no entanto, os mimos e galanteios iam todos para o tio. Que não lhe ligava um chavo…

As idas ao cinema com os pais, decididas de repente ao fim do jantar em dias de semana. Os serões que os pais faziam – ambos eram versados na arte das contabilidades – fora no Instituto Comercial que se conheceram - para darem conta das escritas dos clientes. Para ganharem mais algum. O soldo militar era religiosamente baixo. Por entendimento oblíquo do Salazar. Entendia o mago que o que faltava ao soldo, recebia-o no elevado benefício do estatuto militar… Os militares tinham a obrigação de casar ricos… Para isso usavam farda.

As minhas cartas eram tiradas a ferros. Sentia cá uma dificuldade enorme em redigi-las. Porque, tinham de ficar muito bem construídas. A naturalidade própria da escrita epistolar era-me inacessível. Sentia muita dificuldade em deixar correr a caneta. Mas porque a obrigação “ oblige”… por vezes, ficava até às tantas … Era um parto muito doloroso.



Guiné > Região de Tombali > Catió > CCS / BART 1913 (1967/69) > Álbum fotográfico do Victor Condeço > Vila de Catió >  Foto 16 - "Uma vista tirada da Rotunda, onde se vê uma DO-27 sobrevoando a zona do quartel, à direita a zona da antiga messe de oficiais e a antena dos Correios à esquerda".



Guiné > Região de Tombali > Catió > CCS / BART 1913 (1967/69) > Álbum fotográfico do nosso saudoso  Victor Condeço  (1943-2010) > Vila de Catió >  Foto 17 > " Foto tirada da torre da Igreja no sentido do Quartel, vendo-se o depósito de água deste, a torre dos Correios, em baixo a rua das Palmeiras".




Guiné > Região de Tombali > Catió > CCS / BART 1913 (1967/69) > Álbum fotográfico do Victor Condeço > Quartel > Foto 32 > "Cerimónia militar em Fevereiro de 1968. Militares, civis da administração, correios e comerciantes. Da esquerda para a direita, [?], de costas o cap médico Morais, o comandante, ten cor Abílio Santiago Cardoso, quatro funcionários dos Correios e Administração, os comerciantes Srs. José Saad e filha, Mota, Dantas e filha, Barros, depois o electricista civil Jerónimo, e o alf mil capelão Horácio [Neto Fernandes]".






Guiné > Região de Tombali > Catió > CCS / BART 1913 (1967/69) > Álbum fotográfico do Victor Condeço > Quartel > Foto 3A > "Vista aérea da Rotunda e Avenida de Catió antes de 1967. O edifício à esquerda na foto era a escola primária que em 1967 já tinha sido modificado".

Fotos (e legendas) de Catió: Victor Condeço (1943/2010) / © Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Todos os direitos reservados


Ainda hoje, quando me dá para as reler, do maço em que estão religiosamente guardadas, ali na gaveta da escrivaninha, vejo bem retratado o esforço de as escrever. E lembro-me muito bem do lugar e quando as escrevi… O entusiasmo recíproco era crescente. Havia entre ambos uma empatia indiscutível. Cada um de sua parte, interrogava-se sobre o que aconteceria, após o regresso, se ele viesse a verificar-se.

A mãe dela- confessou-mo ela depois- andava tão preocupada com o entusiasmo que via nela, que lhe perguntou:
- Olha lá,  filha. E se, entretanto, te aparece algum rapaz que goste de ti?...
- Que lhe respondeste? - perguntei eu,  a brincar.
- Que isso não me preocupa. O que tiver de ser,  será.

O á-vontade entre ambos foi se firmando com os meses decorridos. A tal ponto que alguém sugeriu, não me lembro quem e como, que seria bom partilharmos uma fotografia.
Eu mandei-lhe uma em que estava vestido com um “bonito” pijama azul comprado no mercado dos sirianos [, na loja do sr. Saad].

Fiquei à espera da dela. Com muita curiosidade, como é de supor. Qual não foi o meu desapontamento, quando, certa manhã, ao abrir uma carta dei de caras com uma foto, tipo passe, via-se um pouco do tronco ao nível do peito e dos ombros, uma golita branca a sair sobre uma camisola de lã feita pela mãe, à mão, e o rosto muito vivaço duma mocita de treze ou catorze anos!..



Confesso que fiquei desiludido e desnorteado. Nunca imaginei ser isso possível.
- Pronto. Mais um pontapé que me deram à falsa fé… Só pode estar a gozar comigo…

Coincidiu com a licença que o capitão me concedeu para ir a Bissau, tratar dos dentes – um salutar pretexto bem conhecido, para se passar uns dias fora da guerra. Bissau era uma metrópole africana, segura e cosmopolita. Para se passar umas ricas férias.

Entretanto a comissão ia decorrendo. Fui toda a viagem de avioneta,  ensimesmado. A olhar para a foto, de vez em quando.
- Só pode ser uma partida. Mas se é… diz muito mal dela…- pensava eu.

Nem deu para saborear a esfusiante beleza natural do emaranhado verde das bolanhas, matas com os rios em serpente, que se vê lá de cima, durante a meia hora até Bissau.

Os primeiros dias de Bissau foram soturnos. À procura duma explicação plausível. Não a encontrava. Só descansei quando resolvi deitar tudo para trás das costas e aproveitar bem aqueles parcos dias de libertação.
– Vou deixar de escrever-lhe e pronto. Ela, se estiver interessada, há-de explicar tudo muito bem.

Voltava de novo ao ponto de partida. Foi o que fiz melhor. 

Quando regressei a Catió, tinha umas duas ou três cartas. Numa delas vinha uma fotografia. Essa sim. Duma moça viçosa, duns vinte e tal anos. Um rosto duma beleza de linhas, fora do trivial, muito expressiva. E o corpo também. Não era uma boneca banal e estilizada. Tinha garra. Sinceramente agradou-me.
- Então porque mandou a outra, mais que ultrapassada?

A explicação vinha numa das cartas seguintes, à que trazia a foto. Como eu não dava sinal de mim, ela viu-se na necessidade de explicar. Aquilo fora uma reacção sua à minha ideia extravagante de eu ter mandado uma fotografia em pijama…

Na realidade, eu havia-o feito sem qualquer intenção. Não me passou pela cabeça a confusão que iria causar. Caí em mim, aceitei a reacção e pedi-lhe desculpa.

Tudo se recompôs a partir daí. Leviandades de quem é novato…mas não haviam de ficar por aí.

Em Catió havia um posto de correio público. Era vulgar ver por lá a gente nativa em altos berros a falar ao telefone com os faseus familiares doutras regiões da Guiné. Certo dia, deu-me a triste ideia de pedir uma ligação para Lisboa. Ela tinha-me dado o número não sei porquê. Ficava-se à espera tempos infindos que as ligações estivessem feitas.
Mal pensava eu enquanto esperava, o sarilho que havia desencadeado em casa dela…
- Uma chamada da Guiné? - Perguntou a Mãe, à pessoa dos telefones que a fez anunciar.

A Mãe ficou estarrecida. Se calhar há más notícias. O moço morreu. E agora? Chamo ou não chamo a A.T.?... Depois de uns instantes de intensa comoção, chamou-a. Ali apareci eu,  todo prazenteiro e descontraído, pelo menos em relação ao temporal que, sem dar conta, causara naquela casa.
- Apeteceu-me ouvir a sua voz!...- foi a ingénua explicação.

Só mais tarde, quando cirandávamos a namorar pelas ruas de Lisboa,  ela relatou o pesadelo que eu lhes tinha dado…

(Continua)
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Nota do editor:

(*) Vd. último poste da série > 16 de maio de 2012 > Guiné 63/74 - P9910: Cartas do meu avô (4): Segunda Carta: Em Catió (Parte III) (J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil, CCAÇ 728, Bissau, Cachil e Catió, 1964/66)

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