quarta-feira, 16 de maio de 2012

Guiné 63/74 - P9910: Cartas do meu avô (4): Segunda Carta: Em Catió (Parte III) (J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil, CCAÇ 728, Bissau, Cachil e Catió, 1964/66)

Foto à direita: Alemanha, Berlim > Páscoa, 2012 > O J.L. Mendes Gomes com os netos.

Foto: © J. L. Mendes Gomes (2012). Todos os direitos reservados.

1. Continuação da publicação da série Cartas do meu avô, da autoria do nosso camarigoJoaquim Luís Mendes Gomes, membro do nosso blogue, jurista, reformado da Caixa Geral de Depósitos, ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Os Palmeirins de Catió, que esteve na região de Tombali (Cachil e Catió) e em Bissau, nos anos de 1964/66, vivendo presentemente em Berlim.

SEGUNDA CARTA – EM CATIÓ (PARTE III) (*)

Lichtenrade, Berlim, 14 de Março de 2012


5- Inesperada evocação esquecida




Guiné > Região de Tombali > Catió > CCS / BART 1913 (1967/69) > Álbum fotográfico do Victor Condeço > Quartel > Foto 6 > Porta de Armas  e  ao fundo o edifício da cozinha das praças.


Guiné > Região de Tombali > Catió > CCS / BART 1913 (1967/69) > Álbum fotográfico do Victor Condeço > Quartel > Foto 31  >  Cerimónia militar em Fevereiro de 1968, por ocasião da imposição à CART  1689,  da Flâmula de Honra (ouro) do CTIG, atribuída em julho de 1967.  Com a presença das entidades civis e população. Vista parcial do quartel com as tropas em parada


Fotos (e legendas): Victor Condeço (1943/2010) / © Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Todos os direitos reservados

   
Tornaram-se prática generalizada, sobretudo nos últimos anos, os encontros anuais de convívio fraterno dos ex-combatentes, por esse país fora. Uma prática cada vez mais frequente que se afigura, desde logo, muito sadia e consoladora.

O reverem-se em cada encontro e as recordações cruzadas que se trocam, sobre tudo o que se passou, lá atrás, naqueles tempos conturbados, sobretudo durante o almoço, o apresentar dos novos familiares de cada, esposas, filhos e netos, propiciam sublimes alegrias que, para a esmagadora maioria, têm mesmo de repetir-se. Tornou-se uma obrigação e uma necessidade.

Eu fui e sou excepção. Apresentei as minhas razões e desculpas, mas só apareci uma vez. Foi no ano em que o promotor era o comandante da companhia. Nas instalações do Regimento de Évora. Para revisitar o quartel onde tudo começou, e se preparou a companhia e donde partíramos para a Guiné.

As razões eram e são estritamente do meu foro pessoal. Há feitios e feitios…Sentia e sinto uma natural resistência a voltar aos sítios onde fui infeliz, onde sofri. Não tem para mim, o efeito reparador e consolador que a maioria sente. Prefiro manter tudo em suspenso, bem guardado dentro de mim e só lá vou quando é preciso. Foi uma vivência que passou.

Estávamos todos no mesmo barco. A jogar o mesmo jogo. Em equipa que o destino reuniu. É preferível deixá-la onde está. Não a inquinar com novos desafios. Aquele acabou, cada um foi à sua vida.

Esta é a base onde assento a minha atitude. Discutível ou censurável. Mas é assim que sinto. Não me arrisco a agravar feridas que nunca sararam. E foi o que aconteceu, nesse encontro de Évora.

Apareci sozinho. A concentração deu-se no largo à frente do quartel. Abeirei-me dos imediatamente reconhecidos: o Gonçalves e o Arlindo. Uma grande festa. O que era de esperar e me agradou. A rapaziada já era muita, em alegre cavaqueira. Penso que não reconheci ninguém, assim como vi e senti que me olhavam de olhar inquiridor:
- Quem é aquele gorducho de barbas brancas ?- confessaram-no depois, durante o almoço.

Eu estava mais gordo e tinha alargado em todas as direcções. Excepto na altura. Não havia nem há grandes semelhanças com o que então era. Mas isso era a regra geral Só que, as duas dezenas de anos decorridos, sem qualquer contacto, deu para que tudo se modificasse e ficássemos irreconhecíveis.

Entretanto chegou o capitão acompanhado da esposa. A mesma festa recíproca. Sempre tive muita admiração e amizade por aquele superior. Sereno e vertical. Seguiram-se umas palavras vibrantes dele para connosco, de exaltação pelo que fomos e de lamentação pelo abandono e ignorância geral da pátria, sobretudo da gente da política, que entretanto se seguiram, relativamente aos ex-combatentes. - “ A pátria que nos mandou para a guerra, não foi nem é a mesma que nos acolheu…”

Seguiu-se um passeio pelo interior. Guiado pel o comandante da altura, do quartel. A revolução estranha, interior, que se desencadeou dentro de mim, de forma incontrolável, confirmava-me a razão de nunca ter aparecido. Foi uma lufada de de memórias em ccortejo que me fizeram reviver, sobretudo, as horas más do passado.

Pensei mesmo em apresentar minhas desculpas, retirar-me e não ir ao almoço. Mas o Gonçalves convenceu-me a ficar.
- O pessoal pergunta sempre e gosta de ti. – dizia-me ele sinceramente.

Durante o almoço, num monte alentejano, dos arredores, já se tinha desanuviado mais estas nuvens carregadas que me toldavam. Alguns dos meus soldados e sargentos manifestaram o gosto de me ver. Vieram falar-me.

No final dá-se o inesperado. Começa aquele esperado número- soube-o depois- o da leitura de quadras pelos mais habilidosos, trazidos já de casa, como já era habitual. A dada altura, pareceu de propósito. Sou eu que entro na berlinda.

O ex-cabo de transmissões, de que me lembrava muito bem, e por quem não sentia grande simpatia, diga-se- e, ele por mim…, começa a desbobinar em versos de pé-quebrado a descrição dum episódio, passado em Catió, numa manhã, em que eu era o oficial de dia.

Confesso que me sentia ainda mais atónito à medida em que ele avançava. Sinceramente, não me lembrava nada de ter feito o que ele, jocosamente, desenvolveu…acompanhado da hilaridade geral e olhar de soslaio da assembleia para ver como eu reagia. 

Penso que a sinceridade da surpresa que manifestei sentir terá dado para os convencer… Então que é que tinha acontecido?

Eu sempre fui exigente com todo o pessoal. Em todas as situações. Desde Évora até ao regresso da Guiné. Sempre impus respeito e disciplina, cá e lá. Era incapaz de desapertar as amarras e deixar passar toda a bicharada. Tratamentos por tu, com os meus sargentos, muito menos os soldados, nem pensar. Era contra essa prática. Visceralmente.

Então aconteceu, naquela manhã em que iria deixar de ser oficial de dia, tocou a corneta para o pequeno almoço, na forma habitual. Passou-se um pedaço de tempo exagerado para a comparência deles. Apenas uns gatos pingados desalinhados e de olhos mais fechados de sono que abertos. Pegaram no seu caneco de café com leite e no pedaço de casqueiro e retiraram-se. Ninguém aparecia.

Eu estava ali ao pé da cozinha.
- Ai é?!...
- Ó nosso cabo, faça o favor de despejar esse caldeiro de café com leite pelo esgoto abaixo.

O cabo olhou-me arregalado, hesitante, sem saber o que fazer.
- Faça o favor.

E aí foi tudo para o lixo… 
Retirei-me danado. Fiz bem?...Fiz mal?... Ainda hoje, continua a parecer-me discutível. O certo foi que, não perguntem como, esqueci completamente este episódio que me perturbou. E a eles também…

Varreu-se-me da memória… até àquele momento. Voltei a sentir o mesmo. Relembrei tudo. Fora verdade. Não sorri muito como esperariam, certamente.

O certo foi que nunca mais apareci a qualquer convívio.

2 comentários:

Anónimo disse...

Era para não comentar. Corre-se sempre algum risco ao fazê-lo mas o Mendes Gomes ao ter a coragem de narrar aqui este episódio correu um risco ainda maior. Na verdade todos fizémos algo que não deveríamos ter feito mas raramente alguém se penitencia aqui neste espaço que deve ser de verdade, de sinceridade e de respeito pelas pessoas. Não sabes se fizeste bem ou mal em ordenar o despejo do café. A mim parece-me que tinhas outras medidas alternativas mas, quem sou eu para te julgar, desconhecendo as circunstâncias e o contexto daquela situação. Não esqueçamos que tu e quase todos os que davam ordens, na estrutura de uma companhia, eram quase da mesma idade dos seus subordinados.
O blog, julgo eu, deve respeitar e admirar a tua frontalidade...mais nada.
Um abração
Carvalho de Mampatá

Anónimo disse...

Este tema é muito interessante

Relação entre comandantes e comandados e vice-versa.

Atitudes,justiça,injustiça,abuso de poder,capacidade de liderança ou não,coesão ou espírito de corpo.

Todos nós tivemos casos,independentemente da categoria ou posto hierárquico.

A propósito de "rancho"...lembro-me de um caso passado num regimento de uma cidade alentejana..o oficial de dia fez um levantamento de rancho !!!!.
Este tinha por hábito não se limitar a provar a comidinha da bandeja,mas verificar as pesagens dos géneros segundo as "neps".
Era "vitela à jardineira"..tanto de ervilhas,cenouras, batatas e a carne da dita.
Iniciado o repasto que a bem da verdade o pessoal comia com sofreguidão, o dito oficial olhando de soslaio para pratos e travessas repara que havia ervilhas cenouras grande quantidade de batatas e..surpresa a carne praticamente tinha-se evaporado.
NINGUÉM COME MAIS CAR..berra o"gajo com um galãozito transversal no ombro" e enceta uma corrida frenética até à cozinha onde se depara com grandes nacos de carne sobre a bancada.
Transtornado enfia uma cabeçada no 1.º sarg. vago-mestre ou lá o que era..você está preso seu f.da p. e..estão todos presos seus cabr...fps bandidos gatunos ..ettccc.
Mais calmo tenta contactar o comandante que não estava o 2.º também não..bem a alternativa era o contacto com o QG da região militar.atende o oficial de dia da respectiva..fez o quê ?!! Você já desgraçou a sua vida.
Nesse dia almoçou-se só às cinco da tarde.
O "sorja" f.da p. tinha por hábito gamar a carne e outros géneros que vendia a talhos e estabelecimentos civis com a conivência dum cabo rd..os outros elementos da cozinha eram ameaçados para se calarem.
A justiça militar actuou com penas exemplares..
O "aspiranteco",teve um elogio verbal e foi mobilizado para o CTIG.

Qualquer coincidência com a realidade não foi mera ficção.

C.Martins