terça-feira, 8 de maio de 2012

Guiné 63/74 - P9864: Notas de leitura (358): "Horas Malditas", por Manuel Martins (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 2 de Abril de 2012:

Queridos amigos,
Foi o Carlos de Matos Gomes que teve a amabilidade de me emprestar estas “Horas Malditas”.
Não tenho rebuço em continuar a pedir-vos o favor de me emprestarem quaisquer literatura sobre a Guiné em vosso poder, bom, mau ou assim-assim, os historiadores é que podem conferir importância a tais testemunhos, por vezes muito mais úteis que a pouca importância que lhes possamos atribuir. Estas “Horas Malditas” têm aspetos curiosos, soam a desabafo dentro da forma desprendida que o autor utiliza.

Um abraço do
Mário


Um romance singular sobre a guerra da Guiné: Horas malditas

Beja Santos

Intitula-se “Horas Malditas”, por Manuel Martins, Mediedições, 1991. É um romance económico, estabelecido na base de síncopes, uma linguagem fragmentária em que o acidental por vezes sobreleva o essencial. O autor explica o título pelas horas de ansiedade à espera de uma flagelação ou a estranha sensação nas horas que se seguiam ao rebentamento de uma mina. E depois generaliza: “Eram-no também todos aqueles dias e semanas de rotina ansiosamente à espera de voltar à metrópole no gozo de férias”.

O “periquito” Orlando Marques chega a Mansoa e sabe-se que depois vai até Cutia. Vai em rendição individual, quando o capitão Maia, lá na sua unidade na metrópole lhe deu notícia, quase que entrou em estado choque, já não previa o chamamento. Ele bem barafusta, tinha sido promovido a furriel há mês e meio, o capitão explica-lhe que a data de mobilização era anterior à sua promoção. Ficamos a saber que o Marques tem laços com a Lousã, que andou no Colégio Nuno Álvares, em Tomar, que tem uma irmã de um casamento em segundas núpcias do pai e que as relações com este não são lisonjeiras. Aliás, só informa o pai horas antes de partir para a Guiné. As suas lembranças, contudo, viagem para a Lousã, onde fora assessor nas Finanças e onde está a Tina, a sua namorada. E lá vai num DC-6 para Bissau, o pai está comovido quando o leva ao aeroporto. Em Bissau é descarregado no Batalhão de Intendência. Depois dão-lhe a guia de marcha para Cutia, algures entre Mansoa e Mansabá.

Podia ser um excurso sensaborão, Manuel Martins socorre-se do linguajar da tropa macaca: quilhar, canhoada, saiam da daqui, porra, é proibido o caraças!... E o que é brutal descreve-se com sobriedade, naquela flagelação uma velhota, desnutrida, jazia completamente desventrada, contendo o que pareciam ser os intestinos aconchegados no seu regaço do lado direito: “De joelhos sobre a mulher, rasgou-lhe as parcas e andrajosas roupas que a cobriam, e que juntamente com o sangue já coagulado e pedaços de terra à mistura, se confundia com aquele desfilar contínuo de tripas que pareciam continuar a sair pelo ventre”. Chama-se a ambulância, pede-se para se fazer uma massagem cardíaca, mais outra injeção. Mas o médico reconhece que nada há a fazer.

São trapos soltos, o autor não sente necessidade de falar da cronologia dos acontecimentos, sabe-se que estamos em pleno os anos 70. Marques tem uma boa relação com o alferes Pires, estabelecem uma camaradagem perfeita. E dentro deste desligamento dos textos, o leitor é convocado para o rebentamento de uma mina, vai uma GMC à frente com o Legião, um soldado na casa dos 30 anos que combatera na legião estrangeira, tinha acabado uma operação, deslocam-se para o aquartelamento. Explode uma Berliet, vinha a seguir à GMC, fica com a frente completamente desfeita, ferros todos retorcidos e praticamente sem pneus. E somos transportados para um episódio grotesco:
- O furriel pode ler-me este telegrama? É para mim e eu estou tão nervoso! Se calhar é mesmo a miúda a dar-me com os pés! Por isso não me escrevia há quase 15 dias!...

Marques, mesmo antes de ver os seus aerogramas, e como que se o nervosismo de Santos lhe tivesse sido transmitido, rasgou a tirinha de papel que sigilava o telegrama e abrindo pausadamente pousou ao de leve os olhos na pessoa que o escrevera e pôde ler: Maria da Conceição.
- Quem é a Maria da Conceição?
- É a minha miúda! Eu vi logo. Já andava a desconfiar. Anda um tipo aqui a fazer projetos e as gajas lá ao fim de um tempo já não nos respeitam.

Marques lia para si o telegrama. E infelizmente para o Santos o seu conteúdo era bem mais grave: “GRAVES PROBLEMAS STOP TEU PAI FALECEU STOP FUNERAL HOJE STOP DOENÇA DELE NÃO ME DEIXOU ESCREVER STOP CORAGEM TUA MARIA CONCEIÇÃO”
- Oh Santos, tens de ter paciência homem. A vida é assim. Hoje é má para ti amanhã será para mim, quem sabe. Temos é de ter todos coragem!

Santos já não o ouviu. Agora só conseguia ver aldeia abaixo, lado a lado com o pai, à frente da junta de vacas, a caminho da Devesa para irem fazer as sementeiras.

Os dias são monótonos onde quer que o Marques se encontre, bebe muito, joga, tá farto da comida, alguém faz um reparo: “- Vai lá para Infandre, e já comes melhor, meu cabrão! Se estivesses a arroz branco e conservas, já começavas a gostar mais deste petisco”. Pelas 3 horas da manhã Marques parte para um patrulhamento, o cabo Pires esqueceu-se do tubo do morteiro, tal a forte bebedeira e justifica-se:
- Foi o álcaro, meu alferes!

Percebe-se que caminham em direção à saída norte de Mansoa até ao cruzamento da estrada de Bissorã, cambam o rio Brá, avançam com cautelas, vão picando o caminho. E em dado passo está lá uma emboscada, pensava-se, mas não era, afinal andavam uns nativos descontraidamente à caça. É no regresso que está lá uma emboscada, o Zé da Tropa está profundamente ferido e o Marques é atingido por um estilhaço.

No texto seguinte Marques já está de férias em Lisboa, quando se prepara para ir passar uns dias à Lousã recebe uma carta do alferes Pires em que lhe comunica que desertou e foi para França, é uma carta cheia de pormenores, um retábulo barroco que termina com a promessa de se voltarem a encontrar em Lisboa e então comerão uma lagosta. É uma prosa entediante, parece que Orlando Marques perdeu a bússola, aparecem-lhe dois agentes da PIDE lá em casa, pretendem informações sobre o alferes Pires, ele nega saber o seu paradeiro. De novo em Bissau, Marques é um sargento de atos fúnebres, temos aqui outra dimensão grotesca da obra, vai trabalhar na secção de funerais, é um zelador das urnas, anda pelas casas mortuárias, vê o estado dos cadáveres, vestem os mortos, quando estão despedaçados põem cuidadosamente o fardamento por cima, Marques assiste obrigatoriamente ao ato da soldadura e à tiragem dos gases para que as urnas não expludam. Até é participado ao leitor o acidente em que o Braga quando se preparava para tirar gases a cerca de 20 urnas que deveriam de seguir a bordo do Rita Maria, inadvertidamente, após ter feito o furo junto aos pés de uma urna, por onde deviam ter saído todos os gases, resolveu não fechá-la a ferro quente e solda, usou um maçarico e provocou uma explosão, pôs tudo num desalinho. E chega o 25 de Abril, os militares do MFA andavam em delírio pelas ruas de Bissau. E nesse verão, Marques, o cangalheiro, partiu para Lisboa, casou, divorciou-se, fez-se médico. E 10 anos depois, no Rossio, encontra-se com Vitor Pires. Chegou a hora dos grandes desabafos. Pires tinha-se naturalizado francês, trabalhava lá como técnico de controlo de material da aeronáutica numa empresa do Estado. Tinha dois filhos, o Michel e a Nicole, de sete e seis anos, agora estava divorciado, viera a Portugal visitar os pais. Metem-se num táxi e vão jantar à Portugália: “Falámos durante horas a fio. E bebemos muitas imperiais enquanto conversávamos. Mas também comemos a maior lagosta que eles lá tinham”.

É um livro curioso, não se capta bem o que Manuel Martins deixa como mensagem, recupera habilidosamente o jargão da caserna, doseia as horas más e a solidariedade militar na provação com vivências do grotesco e do humor negro. É provável que este reencontro se transforme no símbolo da memória perdurável das horas malditas e das amizades que escapam às agruras do tempo.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 4 de Maio de 2012 > Guiné 63/74 - P9851: Notas de leitura (357): As grandes Operações da Guerra Colonial (2), edição do "Correio da Manhã" (Mário Beja Santos)

1 comentário:

FRANCISCO PINHO disse...

Caro camarada Beja Santos, tenho o prazer de informar que o autor da obra se chama Manuel Eduardo Fortuna Martins e foi meu camarada e colega na 1ªRep/2ªFun-QG/CTIG, nunca mais o vi depois de termos acabado a comissão, soube que se formou em medicina e é médico fisiatra, foi chefe de serviços no Hosp. Santa Maria.

Francisco Jorge de Pinho
Ex-Fur.Mil