quinta-feira, 12 de abril de 2012

Guiné 63/74 - P9737: Um Professor na guerra (Manuel Joaquim) (4): Mansabá, solene inauguração

1. Foi com esta mensagem de 28 de Março de 2012 que o nosso camarada Manuel Joaquim (ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) nos apresentou o seu trabalho de que hoje terminamos a sua apresentação:

Meus caros Luís, Carlos e Eduardo:
Durante a minha vida militar na Guiné, tirando os quatro meses iniciais, sempre dei aulas, melhor dizendo, fiz alfabetização. Guardei sempre uma parte do meu tempo livre para proporcionar a muitos soldados a obtenção da quarta classe e, nos últimos quatro meses, trabalhei a tempo inteiro com soldados e com crianças. A minha "guerra" foi sublimada com este meu trabalho de que me orgulho e ao qual me dediquei. Talvez ingenuamente foi a procura dessa sublimação o que sempre me conduziu na minha atividade como combatente. Precisei desse objetivo mesmo sem saber ou pouco me importar qual o resultado final.

Titulei este trabalho com "Um professor na guerra". Professor e combatente fui de certeza. O título está para o"frouxo". Arranjam-me um melhor para este relato? Vai dividido em quatro partes. Se acharem por bem publicar é possível que prefiram uma outra divisão. Fica ao vosso critério.

Manuel Joaquim


UM PROFESSOR NA GUERRA

IV - Solene inauguração

Continuando a falar da nova escola de Mansabá passo por cima da sua óbvia atividade que é o ensino o qual, neste caso e de minha responsabilidade, não passou da iniciação na língua portuguesa e na matemática. É que, poucos dias após a sua inauguração, o meu Bcaç 1857 saiu de Mansabá a caminho de Bissau, em fim de comissão.

Logo em janeiro no início das aulas, debaixo do frondoso mangueiro, comecei a pensar no que as crianças poderiam oferecer aos visitantes da sua escola, no dia da sua inauguração, para além de cantarem o Hino Nacional, tarefa de que me incumbiram e eu garanti cumprir. A primeira ideia que me surgiu foi a de elas se apresentarem com canções populares locais. Ainda começámos a ensaiar uma, por sinal muito bonita, mas numa noite de insónia veio-me à ideia ensinar-lhes canções populares portuguesas. Percebi de imediato que, se o conseguisse fazer, a coisa iria funcionar como uma maravilha para as “chefias”! Ratice!

Se rápido o pensei, mais depressa pus mãos à obra, melhor dizendo, memórias e gargantas a funcionar! Sentia ser esta uma tarefa muito difícil para a miudagem, por não saberem falar português, mas dois meses dariam para memorizar duas canções. E, com esta ideia, comecei a ensaiar o “Malhão” aproveitando uns vinte minutos diários, no final das aulas de cada dia. Fiquei espantado com a rapidez com que aprenderam a música (lalalá lá lá). Mas a letra estava mais difícil, havia dificuldade na sonorização de certas sílabas, a coisa não estava a ser fácil. Da minha parte, alguma experiência nesta área ajudou-me a obter bons resultados. Tinha coro infantil!

Perante este resultado fiquei tão entusiasmado que lancei a canção “Ó Rosa arredonda a saia”. Que problema para conseguirem dizer/cantar “órrosárredondássaia”! Mas conseguiram! Como o conseguiram com a “Tia Anica de Loulé”! O que é certo é que , em dois meses de ensaios, as canções estavam que se “podiam” ouvir. “Sabiam-me” musicalmente melhor do que quando cantadas pelos meus alunos na metrópole, devido à expressão mais sonora das palavras, com as sílabas muito mais abertas. Esta vocalização foi precisa para aquelas maravilhosas crianças apreenderem os sons de todas as sílabas (não esquecer que estavam a começar a aprender português e muitas daquelas palavras eram para elas como é o chinês para mim!).

E vamos agora ao Hino Nacional. Aqui é que foi o busílis! Enquanto que nas canções infantis eu lá lhes conseguia explicar o sentido das palavras e das frases, nos versos do Hino a explicação era impossível! (Quando ouço alguém a tentar cantar em inglês sem saber uma palavra desta língua, lembro-me sempre dos meus alunos de Mansabá a cantarem “A Portuguesa”!) Imaginem-se a explicar-lhes o que são “heróis do mar”, “nobre povo”, “esplendor de Portugal”, “brumas da memória”, “egrégios avós”, etc.

Pois é, não percebiam nada do que estavam a cantar mas memorizaram aquela caterva de sons alinhadinhos que até parecia que sabiam o que estavam a dizer!: “Irós di má ...nó...bipô ô ô naçãvalen...ti...mutá”, etc. etc.

Chegou o grande dia, a inauguração da escola. Os três Furriéis a ela ligados (eu, o Passeiro e o Correia) estavam um pouco nervosos, eu especialmente, mas correu tudo muito bem. O Hino Nacional, cantado por aquelas crianças, saiu lindo! (Foi fantástico elas memorizarem todas aquelas palavras(?)-sons! A sua memória era maravilhosa!) E as canções populares portuguesas foram um sucesso. E foram tão bem cantadas! Arnaldo Schulz gostou tanto que me veio dar um abraço e bater mais umas palminhas às “minhas” crianças.

Este acontecimento foi reportado na imprensa e na rádio da Guiné. Num jornal a que chamo Diário da Guiné (não tenho ideia nenhuma da sua existência) saiu uma reportagem de que mostro aqui a parte principal e que mandei à namorada (os sublinhados são dessa altura):

Bissau, 25Abril67 (...) “Como já reparaste vai aqui um excerto do Diário da Guiné. O jornal não identifica a minha actividade militar em Mansabá (...) Fiquei um pouco admirado quando li a reportagem. Na fotografia, a minha presença vai assinalada com uma seta. Aqui vai tudo para te distraíres um bocado! Ah ah ah! (...)Até fui abraçado pelo general! A exibição coral foi, na verdade,um sucesso. Palavra que me chegaram as lágrimas aos olhos quando, à frente das crianças, a exibição coral passou muito além do que eu pensava. Dois dias depois ouvi pela rádio a transmissão e fiquei visivelmente orgulhoso pela maravilha como me saíu o “Malhão”, a “Tia Anica de Loulé”, “Ó Rosa arredonda a saia” e outras.(...)”


Uns vinte e poucos dias depois destes factos, deixámos Mansabá. O melhor que tenho para encerrar este relato da minha vida de militar-professor é esta transcrição do que então disse à namorada, na última carta que lhe escrevi da Guiné: (...)Saí de Mansabá com as lágrimas nos olhos pois não consegui conter-me perante a despedida afectiva daquelas crianças. Ver criancinhas negras com lágrimas na face e abraçadas a mim foi demais. Nunca pensei que as coisas chegassem a este ponto. Foi qualquer coisa de inolvidável (...).”

FIM
_____________

Nota de CV:

Vd. postes da série de:

2 de Abril de 2012 > Guiné 63/74 - P9692: Um Professor na guerra (Manuel Joaquim) (1): Analfabetismo, um outro combate

5 de Abril de 2012 > Guiné 63/74 - P9703: Um Professor na guerra (Manuel Joaquim) (2): Uma Escola em Mansabá
e
9 de Abril de 2012 > Guiné 63/74 - P9721: Um Professor na guerra (Manuel Joaquim) (3): Na escola, com as crianças

10 comentários:

armando pires disse...

Manel.
Tu mereceste as lágrimas daquelas crianças.
Tu mereceste.
abraços
armando pires

Cherno Baldé disse...

Caro Manuel Joaguim,

A tua "guerra" foi a melhor de todas e a tua experiencia de vida é muito rica. As minhas felicitacoes.

A historia que relatas sobre a miudagem local é verdadeira. Também eu comecei a aprender as primeiras letras nas mesmas condicoes. Nao sabia praticamente nada, mas como tinhamos muita vontade de aprender, eramos todo- ouvidos e nada nos escapava, claro, a nossa maneira.

Historicamente, nas regioes Norte e Leste da Guiné, o ensino pela memorizacao do corao (livro sagrado dos muculmanos) e a lingua arabe ja era praticado ha muitos seculos atras, facto que estimula mais a capacidade oral do que a escrita, nas criancas, muitas das quais frequentam as duas escolas ao mesmo tempo.

No quartel, os soldados nao ajudavam muito, as palavras mais usadas eram "c...f...p...m..".

Quando li, ha pouco tempo, num livro de escola oferecido aos meus filhos, a letra do hino portugues, fartei-me de rir, pois, como diz o Manuel, as criancas, na altura, nao conseguiam captar o verdadeiro som, era impossivel. A situacao, em relacao ao novo hino nacional, também, nao melhorou muito.

Continua a por no papel as tuas historias e a tua rica experiancia de vida.

Cherno Baldé

Torcato Mendonca disse...

Diz-me, por favor Manuel Joaquim, uma dúvida que me apareceu por lá. Tentaram ensinar o nome das cores aos putos e serviram-se da bandeira e dos cartazes. Foi difícil senão mesmo impossível, se bem me lembro.

Não recordo com toda a certeza, mas, parece, visto hoje, que ou foi mal ensinado -não falo de professores- ou os putos não tinham a noção do nome das várias cores. Lembro: esta é cor verde, esta é cor encarnada p.ex. Perguntava depois o prof de ocasião. que cor é esta? Resposta-é cor...

Se te lembrares diz-me lá.
O Corão só o vi ser ensinado em Camsamba (Galomaro/Dulombi).

Abraço do T.

Carlos Vinhal disse...

Os meninos da Guiné eram a nossa paixão.
Uma ocasião numa operação mataram (?) a mãe de um menino com cerca de 5 anos. Trouxeram-no para o quartel e ainda conviveu connosco uns tempos. Era o nosso intérprete porque sabia expressar-se mais ou menos em português. Engraçado era quando lhe dávamos um coca-cola gelada para beber, ele abanava as mãozitas aflito e dizia: - Está quente.
Tentámos ensiná-lo a comer de garfo e faca, o que naturalmente para uma criança da idade dele era complicado. De vez em quando fazíamos de conta que olhávamos para o lado e ele num repente metia a comida à boca... com a mão.
Hoje o Salifo (assim se chamava o menino) deverá ter quase 50 anos. Como o tempo passa.
Carlos Vinhal
Leça da Palmeira

Antº Rosinha disse...

Manuel Joaquim, a tua experiência, e aqui vou fazer de "advogado do diabo", era a atitude "colonialista" mais atacada, vilipendiada, ridicularizada e mais mencionada nas Nações Unidas em Nova York, e em todas as capitais, pelo Cabral, Machel, Savimbi etc.

Era o que a classe que já tinha estudado nas Universidades tugas e até usado farda da Mocidade Portuguesa mais detestava, que era a "aculturação" de um povo, diziam eles, embora o pai de alguns tenha crescido a dançar o corridinho ou o vira do minho.

Joaquim, tambem dei aulas durante dois anos na minha guerra em Angola, e tinha por colegas furrieis e comandantes alferes anticolonialistas e o que mais detestavam era ver "uma mulata a dançar o vira e a cantar o fado".

Enfim, colonizou-se o que foi possível.

Fazes um retrato bem feito de uma face da nossa guerra.

Cumprimentos

Manuel Joaquim disse...

rvishoiTorcato amigo:
Essa da memorização das cores ... que hei de dizer?
Não tenho a mínima ideia se ensinei aos alunos os nomes portugueses das cores. O mais certo é não o ter feito. Mas custa-me a crer que aquela miudagem tivesse qualquer dificuldade especial em decorar tais nomes se estes lhes fossem ensinados, à frente de exemplos concretos.

Como digo no "post" fiquei surpreendido com a sua capacidade de memorização. E agora o Cherno Baldé, acima, mostra o porquê dessa capacidade: decorar páginas e páginas do Corão é, sem dúvida, um bom exercício para desenvolver a capacidade de memorização. O melhor para exercitar a memória é forçarmo-nos a decorar coisas, seja lá o que for. Sobre isto fala a minha experiência profissional.

O Cherno trouxe-me à memória as imagens de pequenos grupos de crianças,enquadrados por um adulto à porta de algumas moranças, a entoar monocordicamente versículos do Corão. Lembro-me, na escola primária, de assim aprender a "tabuada" e os rios e as serras e os caminhos de ferro e as preposições e os advérbios e... e tanta coisa mais! (às vezes à estalada!) Diz-se que era uma aprendizagem excessiva. Tenho opinião mas não é para aqui chamada. Tenho uma certeza: esses exercícios mentais melhoravam muito a capacidade de memorização.

Um grande abraço

Manuel Joaquim disse...

Meu caro António Rosinha:

Se entendi, as atitudes "colonialistas" mais atacadas que referes eram aquelas do género da que tomei, ter ensinado aos alunos canções populares portuguesas ou coisas identificativas de atos e costumes da população portuguesa. Porque, quanto ao outro ensino, nunca senti que o PAIGC estivesse oficialmente contra. Aliás, foram os seus ataques (certeiros) ao governo, quanto ao ensino básico na Guiné, que "obrigaram" o poder político-militar a se empenhar organizadamente no desenvolvimento escolar, aproveitando a "mão de obra militar" ou outra que fosse possível contratar, isto a partir de 1966.
É um facto o PAIGC ter-se empenhado a desenvolver o ensino no seio dos seus combatentes e da população que controlava. Eu próprio ouvi bem, numa sua emissão radiofónica, comparar o seu "esforço revolucionário" com o "desprezo colonialista" no que se refere ao ensino básico.
Ainda não esqueci o muito material escolar que retirámos da base de Morés, num golpe de mão em que participei. Entre a grande, enorme quantidade de material de guerra capturado retenho a imagem de caixas de livros de instrução primária de diversas editoras portuguesas (lembro-me de uma delas,Editorial Domingos Barreira, Porto) e caixas de outro material escolar. Nunca compreendi o porquê daquela apreensão, aliás detestei tal facto.
Quanto ao problema de aculturação tão vilipendiado pelos movimentos de libertação, ele pode existir. Por isso é básico, numa luta daquele tipo, evitar qualquer osmose cultural entre as áreas sociológicas dos contendores. Faz parte dos processos de luta.

Quanto a ter ensinado canções populares portuguesas aos miudos da escola, é verdade que senti alguns engulhos na consciência. Optei por tentar agradar à "tropa" (a expressão "ratice!" que aparece no texto indicia algo).
Disse também no texto que comecei por ensaiar uma canção popular local, e agora já me lembro de ela também ter sido cantada na inauguração da escola. Ainda sei um pouco da melodia (linda). E não se cantaram mais porque, ao tomar aquela opção, desisti de aprender mais alguma.
Quanto às canções contribuirem para algum tipo de aculturação, não o nego. Basta vermos a influência que as canções anglo-americanas exercem em muitas sociedades modernas por esse "mundo" fora.

Um grande abraço

Torcato Mendonca disse...

Muito rápido; Manuel Joaquim:

Obrigado pela resposta.Haveria, na língua Fula,palavras a definirem as várias cores?
O gosto por elas era um facto. Vejamos, como exemplo, o garrido do vestuário. Assunto a procurar saber.

O ensino era uma prática do Paigc, junto dos seus militares e populações. Nós procuramos fazer, pelo ensino e diga-se em abono da verdade,também por razões que se prendiam com a transmissão de outros conhecimentos.

Tudo era colonialismo e muito não o era. Eu compreendo o Antº Rosinha. A África que ele viveu é diferente da minha. Dá-nos (me) é elementos que merecem sempre reflexão.

O Corão era ensinado, mais oralmente do que escrito - como toda a transmissão de conhecimentos -,com muita profusão e como principal religião, costumes e prática de vida. Até a Administração Colonial incentivava...até pagava viagens a Meca. Muito a dizer. Bom a parar. Um Abraço do T.

Anónimo disse...

Caro Manuel "Jaquim"

Os meus parabéns pelo teu trabalho.
Também eu ensinei muitos dos meus soldados a ler e escrever com métodos pedagógicos nunca antes aplicados, que de pedagogia não percebia nem percebo nada..mas levei a água ao moinho.
Desde que não fossem daltónicos aprendiam as cores da seguinte forma..apontava-se para um objecto e dizia-se a cor do mesmo e eles decoravam..ponto final.

Um alfa bravo

C.Martins

Cesar Dias disse...

Caro Manuel Joaquim
Também passei um pouco por isso, mas com soldados do meu pelotão, infelizmente havia alguns que não sabiam lêr.
A tua guerra foi bonita, gostei de te lêr.
Um abraço
César Dias