segunda-feira, 2 de abril de 2012

Guiné 63/74 - P9692: Um Professor na guerra (Manuel Joaquim) (1): Analfabetismo, um outro combate

1. Mensagem de Manuel Joaquim* (ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67), com data de 28 de Março de 2012:

Meus caros Luís, Carlos e Eduardo:
Durante a minha vida militar na Guiné, tirando os quatro meses iniciais, sempre dei aulas, melhor dizendo, fiz alfabetização. Guardei sempre uma parte do meu tempo livre para proporcionar a muitos soldados a obtenção da quarta classe e, nos últimos quatro meses, trabalhei a tempo inteiro com soldados e com crianças. A minha "guerra" foi sublimada com este meu trabalho de que me orgulho e ao qual me dediquei. Talvez ingenuamente foi a procura dessa sublimação o que sempre me conduziu na minha atividade como combatente. Precisei desse objetivo mesmo sem saber ou pouco me importar qual o resultado final.

Titulei este trabalho com "Um professor na guerra". Professor e combatente fui de certeza. O título está para o"frouxo". Arranjam-me um melhor para este relato? Vai dividido em quatro partes. Se acharem por bem publicar é possível que prefiram uma outra divisão. Fica ao vosso critério.

Manuel Joaquim


UM PROFESSOR NA GUERRA

I - Analfabetismo, um outro combate 

Por Manuel Joaquim

É um facto que, inicialmente, por atitude dos comandos militares locais e mais tarde por ordem governamental para a generalidade do território, os militares portugueses muito fizeram para combater o analfabetismo reinante na então chamada província da Guiné. Analfabetismo este que era quase geral quando se refere a população local e era muito grande, vergonhosamente grande, no seio dos nossos soldados.

A minha maior surpresa política quando cheguei à Guiné foi constatar que a língua portuguesa era uma coisa residual, praticamente ninguém a falava fora dos círculos da chamada elite social. “Os 500 anos de Portugal no território da Guiné, parte inalienável da pátria portuguesa” (como se dizia na altura) nem sequer tinham conseguido implantar a língua portuguesa como veículo de comunicação global!

Cheguei à Guiné no início de agosto de 1965, tinha 24 anos de vida e 18 meses de “tropa”. Pode-se dizer que, naquelas circunstâncias, era um veterano perante a idade (civil e militar) da quase totalidade dos meus camaradas da companhia. Apesar de ser ideologicamente contra a guerra, assumi até ao “miolo” a situação de combatente, sem subterfúgios, sem resistências, sem manigâncias (havia por lá tantas!) para me escapar à atividade operacional.

No início do ano de 1966, o meu comandante de companhia vem pedir-me que tomasse conta da alfabetização de alguns soldados. O meu “sim” foi imediato e feliz:

Bissorã, 24FEV66 (... ... ...) Há uns tempos para cá tenho a meu inteiro cargo a instrução primária de 44 soldados, o que me ocupa todas as tardes e princípios de noites, precisamente o tempo mais propício ao descanso. Mas eu trabalho com gosto. Até porque é o meu único trabalho oficial válido. E os alunos compreendem e acarinham-me. O que é certo é que o tempo livre voou quase todo.(... ... ...)

E assim, durante mais de um ano, tive mais esta ocupação que me manteve psicologicamente bem à tona. Nos intervalos da minha atividade militar dei aulas a mais de três dezenas de soldados, alguns deles analfabetos, tentando preparar a maior parte deles para o exame da 4ª classe. Profissionalmente, estava na minha “quinta” pois era professor do quadro do ensino primário. Levei esta missão muito a sério, com devoção mesmo. Também os alunos o fizeram e o resultado foi terem completado o ensino primário, aprovados em exame oficial realizado nos termos legais, por um júri presidido pelo diretor provincial do ensino. Aprovados sem qualquer favor especial, bastou terem cumprido os objetivos mínimos (os mesmos que, em Portugal, estavam estabelecidos para o ensino de adultos). Foi um ponto de honra que assumi com os alunos.

Os poucos, à volta da dezena, que o não conseguiram, aprenderam os rudimentos do português escrito e da matemática, permitindo-lhes terem um certificado da 3ª classe que, pelo menos, lhes retirou o estigma de analfabetos. Aqui, confesso, houve alguma condescendência. Foi um dos momentos altos da minha vida pessoal e profissional. Resultado de um trabalho muito gratificante que proporcionou a mais de três dezenas de soldados um diploma escolar muito importante, diploma este que era essencial para um retomar da sua vida civil em condições muitíssimo mais favoráveis. Ter este diploma nas mãos foi para eles também uma grande vitória, deveu-se ao seu esforço e dedicação, à sua coragem para resistirem às tentações dos tempos livres. Senti-me feliz ao ver reconhecido o meu esforço e dedicação:

Mansabá, 10ABRIL67 (... ... ...) Reconheceram-no e ontem à noite organizaram uma festinha muito simples e comovente em minha honra. Senti-me confundido com a sua atitude, o seu reconhecimento por tudo o que fiz por eles, que sem dúvida foi alguma coisa sem outro intuito qualquer que não fosse o de instruí-los. A festinha terminou com razoáveis bebedeiras e eu, por pouco, não apanhei também a “perua”. Senti-me feliz, deveras satisfeito.(... ... ...) 

Sei que outros militares combatentes, como eu, dedicaram muito do seu tempo livre a alfabetizar muitos dos seus camaradas soldados, a combater o miserável analfabetismo que grassava neste país “farol da civilização”(!) como diziam as pancartas do regime político da época. Um país que, no início da 2ª metade do século XX, tinha um exército constituído por mais de um terço de analfabetos e uma outra parte dos soldados desse exército pouco mais sabia que soletrar e escrever o nome e fazer “de cabeça” umas simples continhas!

Quero aqui prestar homenagem aos que, acumulando com as atividades militares para que tinham sido mobilizados, se entregaram ao ensino de alguns seus camaradas e de muitas crianças das povoações onde estavam inseridos. Sem retorno económico ou de descanso, foram “missionários” da civilização, do bem comum. O meu caso não se compara, o trabalho foi mais fácil, exerci a minha profissão, “sabia da poda”. As minhas homenagens a quem o merece!

(Continua)
____________

Nota de CV:

(*) Vd. poste de 2 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9554: Reflexões sobre a Guerra Colonial / Guiné-Bissau (Manuel Joaquim)

10 comentários:

Juvenal Amado disse...

Manuel Joaquim

Muitos camaradas houve que utilizaram na sua comissão os saberes das suas profissões civis. Carpinteiro se pedreiros foram utilizados na reconstrução das aldeias, que foram reordenadas após ataques ou não.
Também havia em 1971 muitos camaradas que não sabiam ler nem escrever, que acabaram as 4ª classes na sua maior parte leccionada por outros camaradas, que não tinham estatuto intelectual nem profissional para o fazer, mas que o acabaram por exercer.
Segundo li à tempos Portugal dispensava 11% do seu produto interno bruto para a guerra e só 2% para o ensino.
Gostei de ler. Acho um assunto que tem muita margem de discussão. Obrigado pela tua chamada de atenção para ele.

Um abraço

Anónimo disse...

Meu caro MJ: Que "inveja" (saudável) sinto de ti!... Que orgulho, ao memso tempo, tenho por ler, no "nosso" blogue depoimentos como o teu!... Sem ser prof, nessa época, tinha uma boa preparação cultural e literária, e também ajudei, nas "horas vagas" de um operacional de "armas pesadas" a quem deram uma G3, alguns camaradas, a começar pelos africanos também o 1º sargento Fragata (candidato à Escola de Águeda)...

Boa(s) santa(s) páscoa(s)... Vou a caminho do norte (sem bússola)..

Luís Graça

Torcato Mendonca disse...

##A educação e o ensino são as mais poderosas armas para mudar o Mundo##
Frase de Nelson Mandela.

(se não estiver como ele a proferiu fica a ideia- partilhei-a e deve estar no meu Face)

Era fundamental e só fizeste bem. Além disso eras Professor.
O Paigc preocupava-se com a instrução das populações e dos guerrilheiros. Em qualquer cartilha sobre guerrilha está plasmada a necessidade da instrução, da leitura como base para o conhecimento e um futuro melhor. Por isso, e nesse tempo, cá no "continente" o grau de analfabetismo era tão grande. Convinha á ditadura vigente. Muitos militares da minha Companhia aprenderam a ler e fizeram exame do Ensino Básico. Nas Tabancas, nas permanências de cerca de um mês nas auto defesas havia a escolinha. Não havia professor diplomado...ficava a boa vontade e a mensagem era passada.

Obrigado Camarada e Amigo,
Um abração do T.

Anónimo disse...

Camaradas,
Quero aproveitar a ocasião para prestar a minha homenagem aos elementos da Companhia a que pertenci (cabos na maioria), que nos abrigos ensinaram outros camaradas alguns rudimentos de ler, escrever e contar.
Aqueles, solicitados para manter a correspondência dos que não tinham luzes, fizeram-no por grande camaradagem durante os intervalos das suas ocupações operacionais, ou de serviços internos.
Fizeram-no com total dedicação, e apraz-me aqui registar, tanto essa entraga amiga, como alguns resultados conseguidos, apesar de nenhum ter sido submetido a exame.
Abraços fraternos
JD

Manuel Reis disse...

Amigo Manuel Joaquim:

Belo trabalho o teu, sinto que gostaria de ter feito um trabalho idêntico, mas os condicionalismos a que estive sujeito impediram-me de o concretizar.

Tal como tu, procurei através da ajuda aos meus soldadados, que não tinham a 4ª classe, uma razão de ser para estar ali.

Tentar conciliar a actividade operacional com o ensino/aprendizagem não era tarefa fácil, mas a necessidade que os soldados sentiam em concluir a 4ª classe, com a finalidade de tirar a carta de condução de pesados, ferramenta de trabalho que trariam para a Metróple.Isto possibilitou-me uma experiência inédita, pois não me imaginava professor e muito menos do ensino básico, para o qual não me sentia com grande aptidão, estava mais direccionado para a engenharia. Mas à falta de melhor avancei.

Ironia do destino: Toda a minha vida profissional foi dedicada ao ensino secundário.

Foram 4 meses de dedidação aos 9 alunos que me apreceram, sem resultados visíveis,por factores exteriores, e com prejuízo para os meus camaradas de bridge, que tinham de aguardar uma hora, após terminado o jantar.

A escola desapareceu completamente logo no 1º dia de bombardeamento, apenas vi a sua localização em 95, graças à amabilidade dos nossos amigos africanos.

Um abraço.

Manuel Reis

Manuel Reis disse...

Onde digo " ferramenta de trabalho que trariam para a Metrópole" leia-se: ferramenta de trabalho que trariam para a Metrópole, sensibilizou-me para essa tarefa.

armando pires disse...

É Professor de um raio, meu Grande Amigo, Camarada.
Apatece-me escrever isto:
- agora percebo porque, chegado a Bissorã em Setembro de 69, havia tantos "putos" a falar português.
abraço
armando pires

Luís Graça disse...

Deixem-me dar uma gabadela à letrinha do senhor professor... mas também ao seu novo visual. Agora, sim, o nosso Manuel Joaquim aparece como ele é (e sempre foi, dizem): um tipo positivo, um camarada de primeira água, um ser humano de excelência... Inté Monte Real!

Anónimo disse...

Os meus Parabéns Sr. Professor!

Segunda ou primeira missão?
Seja qual for a ordem, não tenho dúvida que esta foi a mais válida, e quase, com certeza, a mais gratificante.
Não fossem as letras, o que nos liga ao mundo, o que abre caminhos...os horizontes!

Obrigada Manuel Joaquim!

um beijo.

Felismina

Manuel Joaquim disse...

Um "tipo" (eu) tem que ficar mesmo agradecido quando se vê tão bem tratado por quem o rodeia.
Duas coisas:
- Armando Pires, meu querido amigo, olha que contribuí muito pouco para o linguajar "português" que detetaste na miudagem de Bissorã. Deve-se, com certeza, ao meritório trabalho de outros. Em Bissorã só trabalhei com soldados. Já quanto à miudagem de Mansabá, a coisa foi diferente. Deixei lá um sinalzinho do meu trabalho.

- Nesta 1ª parte deste meu tema pode parecer que "puxei a brasa à minha sardinha" mas a minha principal intenção é a de homenagear aqueles militares (tantos!) que, sem conhecimentos didáticos e pedagógicos, se entregaram de alma e coração à instrução de crianças e de alguns seus camaradas, roubando tempo ao seu lazer e descanso. Eu estava na minha "praia", tecnicamente não me custava nada.

Um abraço a todos