terça-feira, 6 de março de 2012

Guiné 63/74 - P9569: Agenda Cultural (187): Djubi dé... su pui qu'el qui n' contau, na negal tudo! (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Março de 2012, dirigida a toda a tertúlia a propósito do seu próximo livro "Adeus até ao meu regresso", que vai ser apresentado pelo Cor Carlos Matos Gomes no próximo dia 29 de Março na Associação 25 de Abril:

Queridos amigos,
Seria reconfortante para mim ter a vossa companhia no lançamento desta compilação de olhares sobre as escritas dos combatentes da Guiné. 
Tomo a liberdade de vos mostrar a capa e contracapa e a apresentação. 
Conto convosco em 29 de Março, 5.ª feira, pelas 18.30h, na Associação 25 de Abril. 
O Coronel Carlos de Matos Gomes honra-me com os seus comentários sobre o livro. 

Um abraço do 
Mário


Capa do livro de Mário Beja Santos "ADEUS, até ao meu regresso"

Contracapa


DJUBI DÉ… SU PUI QU’EL QUI N’ CONTAU, NA NEGAL TUDO!*

A literatura da guerra colonial, não é novidade para ninguém, tem tido uma evolução surpreendente. Do virar do século à atualidade tem-se escrito muito mais ao ritmo do romance, das memórias e do ensaio que nas décadas anteriores. Parece que quem combateu em Angola, Guiné e Moçambique, hoje pelo menos sexagenário, se sente mais liberto, mais confidente, para contar o que experimentou, entre a ficção e a realidade.

Adicione-se um facto por vezes descurado, mesmo por alguns investigadores: aqueles três teatros de operações onde centenas de milhares de portugueses e africanos combateram entre 1961 e 1974 tiveram características tão diferenciadas, “inimigos” tão específicos e confrontaram-se com um poderio militar e uma capacidade de guerrilha tão singulares que marcaram indelevelmente os registos da escrita, tornando-os praticamente intransitáveis entre Angola, Guiné e Moçambique. Pode argumentar-se que havia a solidão, a angústia, o fragor da mina ou do fornilho, e que essas perceções têm um cunho universal. É verdade, mas é insuficiente: 10 quilómetros na Guiné não são os mesmos 10 quilómetros em Angola ou Moçambique. Os palcos de guerra tinham identidade, as árvores nomes próprios, havia o crioulo, o tornado, o macaréu, a lepra, os ataques com mísseis. Breve, realidades que o contador captou ou procura captar com cores próprias.

Este livro tem uma modesta ambição: repertoriar o que de essencial está escrito desde 1964 sobre a Guiné, os seus teatros de operações e os seus combatentes, em várias manifestações literárias: romance e conto, memórias, ensaios, história, reportagem, poesia e diário. Não é difícil perceber como é que o romance e as memórias superam as outras manifestações. O romance é sempre um confronto ao espelho, são verdadeiros combates corpo a corpo, há uma margem estreita que define o sulco que demarca o épico como testemunho da narrativa de vaidades disfarçadas de heroísmo vivido ou efabulado. A memória é diretamente proporcional à capacidade pronunciada pelo amadurecimento. Se é facto que em termos psicossociológicos se compreende a evolução do romance dos anos 60 à atualidade é manifestamente mais claro entender porque é que os grandes relatos memoriais são bastante recentes e no que toca à Guiné esses relatos atingem grande dimensão nos depoimentos do Comando Amadú Djaló, no Fuzileiro José Talhadas ou no Pára-quedista Moura Calheiros. O que se escreveu nos anos 60, tanto no ensaio, como na reportagem, como na narrativa, comportava compromissos indeclináveis: Manuel Barão da Cunha exalta a gesta dos seus soldados e mostra-se indignado com a indiferença da retaguarda; Amândio César sente-se imbuído pela defesa dos ideais do Império; Hélio Felgas faz um excelente trabalho de casa sem esquecer de promover a sua imagem.

Perto do 25 de Abril emerge uma figura espantosa, hoje de estudo obrigatório, José Martins Garcia, um açoriano que veio pôr as letras em polvorosa, caricaturando até ao derrube dos grandes ícones em que se constroem as mitologias militares. Os anos 80 anunciam outra viragem, os narradores ganharam distância, sentem-se afoitos a descrever relatos mais crus ou a desvendar tabus: basta pensar em José Brás, Álamo Oliveira ou Cristóvão de Aguiar. Na maturidade continuamos a ter surpresas na ficção: basta pensar em grandes parágrafos de Luís Rosa ou António Loja.

Quando chegamos ao virar do século, sentimos claramente quem escreveu para testemunhar e escreveu de uma vez e quem volta ”ao local do crime”. Por exemplo, Álvaro Guerra, no início da sua carreira literária, irá deixar parágrafos soberbos da sua experiência de combatente, depois parece ter encerrado o livro, não mais voltará à Guiné. Em etapas sucessivas, assistimos ao regresso de Armor Pires Mota; aliás, e na minha humilde opinião, além da singularidade de ter sido o único escritor combatente a ter deixado publicado um diário quase em tempo real, ele é autor da gema literária mais preciosa: “Estranha Noiva de Guerra”, um romance único que a crítica praticamente ignora. Coisas indecifráveis da literatura da guerra colonial…

É sobretudo aos sociólogos da literatura que compete apurar o que se passa nas entrelinhas, neste quase meio século de escrita polvilhada por minas e armadilhas, flagelações, atos de coragem, medos e delírios. Estes cientistas serão obrigados a ler peças da mais variada índole: relatos sem qualquer recorte literário com ressentimentos e azedumes, às vezes autênticos ajustes de contas; há depoimentos indispensáveis como os de Otelo Saraiva de Carvalho, Vasco Lourenço ou Salgueiro Maia, graças a eles percebemos melhor o evoluir da guerra, nomeadamente o que se passou na Guiné em meados de 1973 e as suas consequências, diretas e indiretas, nos acontecimentos do 25 de Abril; há prisioneiros do PAIGC, há estudos obrigatórios como os do João Paulo Guerra, há investigações monográficas como a História dos Fuzileiros, há antologias com depoimentos de combatentes, há relatos descritos como diários, há mesmo alguma poesia, alguma dela da autoria de vates da direita radical. Impunha-se, além disso, um pano de fundo para tão vasta boca de cena: é o caso de estudos incontornáveis como os de António Duarte Silva ou os trabalhos clássicos de João de Melo, Rui de Azevedo Teixeira e Margarida Calafate Ribeiro, investigadores com pergaminhos na análise literária na guerra colonial.

Importa insistir que estas recensões são olhares pessoais, são leituras interpretadas e sintetizadas, não podem ser tomadas como uma proposta antológica ou indicadores de qualidade. Durante mais de dois anos, com o apoio incansável de malta do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, amigos como o António Ernesto Duarte Silva, fui tendo acesso a este acervo, na sua maioria inacessível ao grande público. Procura-se acima de tudo ir ao encontro das interrogações do leitor não iniciado que mantém uma grande curiosidade em conhecer o âmbito desta escrita. Não há, nesta perspetiva, ambição mais legítima do que a de preencher uma lacuna: o que nos motivou ou motiva a escrever sobre a Guiné. O que nos reconduz a um dos mais espantosos parágrafos, escrito por Álvaro Guerra em 1973 no seu romance “O Capitão Nemo e Eu”: “Por lá chafurdei na lama das lalas, debati-me no turbilhão dos tornados, derreti-me na fornalha de um sol quase invisível, dissolvi-me na chuva vertical, e amei como um danado aquela terra que me injetou a febre, me secou, me expulsou a tiro. Mas nunca o preço do amor é excessivo, nem a presença da morte o pode aniquilar”.

Agradeço ao Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, uma reserva inesgotável de surpresas para quem quer conhecer a Guiné e a sua literatura, foi aqui que publiquei aos soluços todas estas notas de recensão.

(*) - Olha... se escreveres o que te disse, negarei tudo!

(Negritos e itálicos da responsabilidade do editor)
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 15 de Fevereiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9490: Agenda Cultural (186): Exposição de fotografia do nosso camarada Renato Monteiro: Megastore Colorfoto, Av da Igreja, 30, D/E, Lisboa, até meados de Março de 2012

3 comentários:

Anónimo disse...

Caro Beja Santos

Um reparo meu. No criolo da Guine o "olha" da traducao da frase (Djudi de...su pui qu"el qui ncontau, na negal tudo-Olha... se escreveres o que te disse, negarei tudo)..deveria ser "DJUBI" e nao "Djudi" !!!

Nelson Herbert

Mário Beja Santos disse...

Nelson, Obrigado pela tua leitura atenta. Tu tens razão, aliás no manuscrito ia Djubi, fiz vista grossa na revisão. Aliás, já apanhei algumas outras besteiras, devia ser obrigatório um autor rever as provas 3 vezes... o leitor paga o seu exemplar e tem direito a um produto fiável. Aproveito para te dizer que fizeste bem em propor a leitura do Jorge Querido, o livro é muitíssimo bom e rasga horizontes para a compreensão de vários diferendos no PAIGC, durante e após a luta de libertação. Mantenhas do Mário

Luís Graça disse...

Está corrigido..., "djubi"!