segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Guiné 63/74 - P9451: Nós da memória (Torcato Mendonça) (9): Os Putos de Candamã - Fotos falantes IV

Candamã - Putos fazendo ginástica






1. Texto do nosso camarada Torcato Mendonça (ex-Alf Mil da CART 2339 Mansambo, 1968/69) para integrar os seus "Nós da memória", ilustrado com fotos falantes da sua IV série.





NÓS DA MEMÓRIA - 9
(…desatemos, aos poucos, alguns…)

5 - OS PUTOS

Parecem bandos de pardais os Putos… os Putos…

Não, estes não eram esses putos. Estes viviam nas Tabancas de Candamã e Afiá, como em muitas outras por essa Guiné fora.
Alegres, brincalhões, bem dispostos, sorrisos francos e abertos os destes putos.
Felizes? Penso que sim, dentro das limitações impostas.

Tinham pouco, tão pouco e, mesmo assim, nada pediam talvez pela sua timidez e educação. Os olhos esses tudo diziam, olhares iguais a de outros miúdos, aos dos putos do fado ou dos putos de nossas vilas e aldeias que nesse tempo, a maioria, pouco mais tinham que esses putos de Candamã ou das Tabancas.

Aos poucos fomos conquistando a sua confiança. Dava-se algo, tratava-se de uma ferida infectada, pedia-se para executarem uma simples tarefa. A sua curiosidade, a alegria espontânea levava-os a de pronto ajudar.
Para eles éramos pessoas diferentes, não só na cor, mas no vestir, nos hábitos, na comida. As armas eram o poder da força que parecíamos ter.

Andavam à nossa volta timidamente e sem incomodar, aproximando-se mais na hora das refeições mas sem nada pedir. Fomos nós a oferecer do pouco que tínhamos. Talvez pareça estranho mas não abundava a nossa comida e, de quando em vez, havia “rotura de stock”.

Acabamos, não recordo de quem foi a ideia, por fazer uma Escola para os putos. Não privilegiámos o ensino do 1, 2, 3… ou do a, e, i, o, u. Procurámos, dentro das nossas possibilidades, transmitir conhecimentos diversos como regras de higiene, tratar dos pequenos problemas de saúde e outros, onde também se inseriam o ensino das letras e números e, talvez mais importante, fazendo deles os elos de ligação entre nós e a comunidade onde nos inseríamos. Seria fundamental esta interligação entre as duas culturas. Já tínhamos algum tempo de Guiné e sabíamos quanto isso era importante. A Escola foi o local onde eles iam aprendendo e apreendendo muito bem tudo o que lhes ensinado e, ao mesmo tempo, o local de integração mutuo.

Eram outros saberes e procurávamos nunca violentar os deles antes apreende-los e assim melhor entender como ali se devia viver. Desse modo creio, mesmo hoje, que todos beneficiaram.

Pouco podíamos fazer pela melhoria da saúde ou higiene deles. Os nossos recursos e conhecimentos eram muito limitados. Pedíamos à sede da Companhia e geralmente apareciam. A sarna era debelada com Thiosan, a pele era melhorada com sabonetes Lifeboy (seriam estes os nomes?) e as pomadas e líquidos L.M. para tudo davam.

Depois das “aulas”, pouco tempo sentados para não aborrecer, tínhamos a ginástica, o jogo com a bola de trapos e outros jogos simples.

Tudo a passar-se no largo das moranças do Régulo e com a bandeira de Portugal no mastro. Era diariamente hasteada e arreada pelos homens das Tabancas. Muitas vezes assistíamos. Afazeres diversos, que se prendiam com a nossa vida militar, não permitiam a assiduidade que devíamos ter. Era uma vida em que as horas, e muito mais, eram limitativas dessa e de outras disponibilidades. Eram sempre os homens da tabanca a tratar daquela sua bandeira. O Régulo, quando estava, assistia sempre. Um homem extraordinário o António Bonco Baldé.

Voltando aos putos, depois das aulas e dos jogos vinha o banho, os saltos para a água, a lavagem com o sabão e sabonete.

Ressalvo um ponto: nas Tabancas era praticada a higiene. As famílias tinham instalações próprias. Não falamos dela pois sairíamos do tema: - os putos.

Os risos deles, a alegria eram contagiantes para nós, talvez, porque não, sentíssemos, nesses curtos momentos, estar num mundo diferente.

Depois cada um ia à sua vida. À hora do almoço, muitos deles apareciam e da parte da tarde iam para a bolanha tentar apanhar uns pequenos peixes que nós comíamos depois de fritos e polvilhados com piri-piri.
Esta troca, - este “partir” – estes peixes minúsculos por comida e outros géneros, eram o gesto da troca, da não dádiva, da dignidade da permuta. Dou e recebo.

Eram felizes os putos? Eram!

Além disso faziam de nós mais humanos, mais despreocupados e a guerra naqueles momentos devia parar. Os putos parecíamos nós. Por pouco tempo é certo. Não eram permitidos descuidos ou desatenções, imperdoáveis quaisquer desatenções.

Desdramatizemos e pensemos antes que todos, nós e os putos eram, naqueles momentos, bandos de pardais à solta… como os do fado…

A guerra, essa besta, estava logo ali. Mesmo hoje, ao escrever isto, sinto-a ao alcance da mão.

Esqueçamo-la e desaparece.

O que será feito dos putos?
Cinquentões hoje ou a caminho disso.

Sinto saudades daquela gente. Das Gentes das Tabancas, dos que comigo andavam no mato, dos que connosco combatiam ou, como dizia alguém, talvez tenha também saudades da juventude que passou…
De tudo e tanto há para recordar.

Dou-vos as fotos. Elas dizem mais do que as palavras de um velho e ex-soldado.
Recordem. Vidas… lá ou cá…
Adeus!

Candamã - Escola dos Putos

Candamã - Futuros craques ou yankies

Limpeza colectiva em Candamã

Texto e fotos ©: Torcato Mendonça (Fotos Falantes IV) 2012. Direitos reservados
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 3 de Fevereiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9440: Nós da memória (Torcato Mendonça) (8): Segundo dia em Bissau - Fotos falantes IV

16 comentários:

Luís Dias disse...

Camarada Torcato

Excelentes fotos, em especial a da escola (a diferença para a do Dulombi, uns anos depois). A riqueza da escrita a que nos habituaste. Gostei imenso.

Um abraço.

Luís Dias

Anónimo disse...

Fotos lindas...posso "roubar" uma para o background do meu laptop
( a dos putos no riacho) ?

Nelson Herbert

Torcato Mendonca disse...

Podes Caríssimo Nelson Herbert. Foram tiradas em 1968...têm 44 anos!!

Foram agora digitalizadas, como anteriormente, foram as Fotos Falantes I,II,III...estes são slides e aguentam mais do que as fotos em papel.

Estas fotos são, depois de publicadas,do Blogue.

Abraço T.

Hélder Valério disse...

Caro Torcato

Abençoada hora que passaste em Bissau e compraste a máquina fotográfica.

Já começa a ser redundante dizer que estão boas. Mas estão, de facto!
A qualidade da 'paisagem' mas também o conteúdo de cada uma delas é muito forte.
Destaco essencialmente aquelas em que estão os putos. A primeira, com a grande roda e a sessão de ginástica, tudo perfeitamente alinhado e sincronizado, e a outra, a última, com 'tudo ao molhe' e ao molho...

Abraço
Hélder S.

manuelmaia disse...

Caro Torcato,

Ainda hoje ,a cada passo, me recordo dos putos e trago-os à lembrança.
Infelizmente alguns terão sido fuzilados aquando da independência...
Crianças que apenas teimavam em vencer a fome a troco de pequenos trabalhos no quartel.
abraço
manuelmaia

Manuel Joaquim disse...

Lindo!

Anónimo disse...

Sabonetes Lifebuoy...

" Lifebuoy is a famous and distinctive brand of soap that was created by the Lever Brothers soap factory in 1894. It was the first soap to use carbolic acid, which gave it a red color and strong, medicinal scent. Lifebuoy is still manufactured today and is the leading brand of soap in many developing countries."

Se nao me falha a memoria havia um painel publicitario deste sabonete, com a imagem do Eusebio !!! Estou certo ?

Ainda se pode encontrar a venda nessas "mercearias etnicas"... (de comunidades africanas) tipicas aqui nos Estados Unidos !!!

Nelson Herbert
USA

Antº Rosinha disse...

Ora fazendo as contas, estarão pelos 50 anos esses garotos que o Torcato tão bem retratou fazendo a média de 8 anos em 1969.

Ora fazendo as contas estariam pelos14 ou 15 anos em 1974 e viram hastear a bandeira do PAIGC.

Ora estariam pelos 35 anos quando alguns que não foram estudar para o leste, alguns poderiam ser impedidos de chegar a Portugal, por uma cortina marítima que se formou desde as Canárias e Caboverde contornando a África entrando pelo Mediterrâneo até à ponta da bota italiana.

Alguns teriam naufragado naquelas canôas que saiam das praias para os lados de Varela?

Foi nos anos 90 que essa cortina europeia "anti-alérgica" se criou.

Alguns terão sido recambiados no aeroporto da Portela por indocumentação.

Desculpa Torcato estes comentários meus no teu post, mas conheci e trabalhei com gente que até em contentores fechados embarcou em Bissau e foram apanhados em Cadis.

Portugal estava numa de imigração de todo o lado e, lembrando o que aqui recentemente leste, Torcato, , de facto notava-se uma certa simpatia por gente de "olhos azuis" vinda do leste.

Mas estou convencido que não era em detrimento de gente de outras origens.

Tambem já rejeitámos dentistas brasileiros e prostitutas.

Tambem estou convencido que não foi por preferência de dentistas de outras origens.

Oxalá que esses putos elejam bem o próximo presidente da Guiné.

Cumprimentos

Rui Silva disse...

Que nó tão bem desatado!
Bonito, pertinente, delicioso! Lembrar os putos da Guiné!
"...e as crianças, Senhor?"
Nunca esquecerei a esfuziante alegria, o seu sorriso largo e natural daqueles djubinhos do Olossato e também de Bissorã.
Alheios à guerra (o que é isso?)brincavam, corriam atrás de uma mal amanhada bola de trapos.
Com todo o direito que tinham, aqueles inocentes.

Parabéns T. pela tua oportunidade e digamos pela tua homenagem aos putos da Guiné.

Rui Silva
p.s. Um àparte: Os putos, alinhadinhos, de braços abertos e em roda, fez-me lembrar os primeiros tempos de escola primária em que dobrávamos um tira mais ou menos comprida de papel várias vezes e depois recortávamos à tesoura um boneco; desdobrávamos e depois aparecia uma série deles todos iguais; uniam-se as pontas e tínhamos um roda deles, certinhos, direitinhos... como os putos da Guiné, que tu nos mostras na 1.ª foto.
Recebe um abraço também de estima e consideração.

Anónimo disse...

Camarada Torcato Mendonça
Começo por te dar os parabéns pelo testo em que recordas com saudade os "putos" que gravitavam á volta da tropa na Guiné.Claro que o teu testo nos trás lembranças a todos nós,pois que muita das vezes o contacto que tinha-mos com eles e algumas coisas que lhes ensinamos era de certo modo o carinho que nos faltava da nossa própria família e assim transportava-mos para eles esse mesmo carinho.
Lembro aqui em especial o principal miúdo que era o Inhatna Biofa.
Mas camarada Torcato o que me tocou muito no teu testo,foi o ultimo paragrafo em que dizes:"Dou-vos as fotos.Elas dizem mais do que as palavras de um velho e "ex soldado"
Não concordo com o "velho"mas tal como eu somos "Ex soldados" e gostei muito dessa tua frase.
Um abraço deste também Ex.Soldado Henrique Cerqueira

Henrique Cerqueira disse...

Errata:
No comentário anterior escrevi (testo) e deve ser texto.
Henrique Cerqueira

Anónimo disse...

Creio que,sem devermos esquecer "tudo o resto",são estes os momentos (tão bem captados nas fotos) aqueles que a maioria de nós recordará com nostalgias várias.Quero crer(!) que,para os que por lá ainda se recordarão de nós,também o seja por estes momentos e situacöes.Obrigado por os teres trazido "para a frente" com as tuas felizes fotos. Um abraço.

Cherno Balde disse...

Caro amigo Torcato,

A tabanca de Candama, fundada em finais do sec.XVIII por Daman Baldé e um seu amigo intimo, os dois eram cacadores profissionais e como era normal na altura, também guerreiros dos clas Fulas vindos do Forrea. Can ou Gan (em lingua mandinga/soninque)significa local, tabanca o mesmo que o Sintcha da lingua fula.

Fonte: Programa radio Bombolom.


Um abraco amigo,


Cherno Baldé

Cherno Baldé disse...

Perdao,
No comentario em cima queria dizer finais do sec. XIX, periodo eivado de guerras intrafulas, Beafadas e exercitos de Futa -Djalon.

Mário Beja Santos disse...

Torcatal Figura, Confesso que me atiraste às redes, tal a emoção que pões no que escreves. A hierarquia das imagens não está a concurso, mas aquela aula de ginástica fará parte da antologia da nossa guerra. Não estejas desfalecido e nem te trates por velho. Quando lá formos os dois, talvez para o ano, em Janeiro, vais ver que quando te tratarem por velho será com respeito e muito carinho. Com este acervo de imagens, e a gradual clareza que estás a imprimir às tuas lembranças, tens estrita obrigação de te disciplinares e pores ordem nos escaninhos da memória. Muito obrigado pelo afeto que transmites, é um dos primores do teu caráter. Um abraço do Mário

António Duarte disse...

Meu Amigo
Que saudades de Candamâ e Afiá. Passei lá a Páscoa de 1972, já que estava sempre destacada uma secção de pelotão da companhia de Mansambo (Cart 3493), com reforço de um transmissões e de um enfermeiro e nessa altura calhou-me a mim.Tenho ideia de ser boa gente, recordo-me bem do chefe da tabanca. Nessa época existia um pelotão de milícias que garantia a auto-defesa da tabanca. A escola já tinha era um pouco melhor e havia outra em Afiá. A parte lúdica da estadia, era o banho ao fim da tarde no estilo fula. Acabava-se sempre a ouvir "...furriel parte sabonete....
1 abraço e obrigado pelo post.
António Duarte
Ex-Fur Mil Cart 3493 / Ccaç 12