segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Guiné 63/74 - P9423: (In)citações (37): Mutilação Genital Feminina e Eurocentrismo (Cherno Baldé)

1. Comentário, ao poste P9410, aposto pelo Cherno Baldé [, foto à direita, com os seus quatros filhos, rapazes]:

 Amigo José Saúde,

O tema que hoje trazes à estampa, [a Mutilação Genital Feminina,]  é muito importante e oxalá tivesse eco junto dos demais, em especial da nossa população e assim contribuir para ajudar a neutralizar esta prática em África.

A necessidade de acabar com a pratica da Mutilacao Genital Feminina, devido às consequências negativas na saúde da mulher, é hoje tão consensual que deveria ser automaticamente aceite e aplicada por todos, de forma generalizada.

Mas, se isto nao se verifica é porque existem razões internas, profundas, enraizadas na cultura ancestral (social e religiosamente falando), é verdade, mas também, existem outros motivos e um deles é o facto de esta campanha mundial ser de iniciativa europeia, mais uma e logo suspeita!!! E porquê?

Há um proverbio africano que diz: "Quem já teve um encontro com um 'kancuran' de certeza que terá medo do bagabaga", que o é mesmo que dizer: "Gato escaldado, de água fria tem medo".

Depois de tudo o que (de bom e de mau) aconteceu no encontro entre europeus e africanos,  o que garante que as ideias vindas da Europa são completamente isentas, humanistas e desprovidas de "arrière pensée"?

Sem necessidade de voltar muito atrás na histária, lembro simplesmente que na Nigéria, e provavelmente em toda a África, já se viram campanhas de vacina (para a saúde das crianças!?) transformar-se em campanha para servir-se de cobaias humanas.

A África deve acreditar?!...

A África deve acreditar na Europa e na ciência!?.. Então não é essa mesma Europa e a sua Ciência que, em tempos, considerava o africano ligeiramente superior ao macaco das florestas tropicais e digno de ser obrigado a trabalhar!?..

A África deve mudar?!...

Para que sentido!? Norte, sul, leste...ao capricho e gosto dos europeus?!

Apesar de tudo, ainda há pessoas que ficam admiradas pelo facto de os africanos resistirem e não aceitarem factos cientificamente comprovados. Mais que uma simples teimosia de caráter cultural das nossas populações, na minha opinião, é a confusão e o desnorteamento que criam a resistência à mudanca e não ajudam os voluntários das boas intenções (atencao, de boas intenções...)

Um grande abraço,

Cherno Baldé

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Nota do editor:

Último poste da série > 30 de novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9117: (In)citações (36): Para melhor compreendermos a África... (Artur Augusto Silva, 1963)

8 comentários:

Anónimo disse...

Sem dúvida que Cherno Baldé levanta perguntas sérias e importantes.Mas,se a África deve,ou não, mudar por influência cultural europeia só os africanos o poderão decidir.Hoje terão a independência para o fazer.Mas chegarão ao Continente maiores,e mais profundos, valores humanistas vindos de outras civilizacöes?Dos contactos entre o mundo Muçulmano do norte de África com as populacöes de áreas mais ao sul no Continente?Neste caso específico verifica-se que a escravatura não será de "invencäo" europeia,nem sequer foi introduzida em África pelos europeus.Já por lá existia,e, tragicamente existe ainda nos nossos dias.Cobaias humanas para pseudo estudos científicos,(e, mais uma vez tragicamente),não será exclusivo africano.Não só no Oriental Japão,como na Alemanha nazi dos anos 30/40,assim como (pasme-se!)na tão idealista Suécia.E citando:"As ideias isentas,humanistas e desprovidas de arriére pensée" poderão não chegar da Europa.Mas chegarão de outras civilizacöes e culturas?Dos Estados Unidos?Do Mundo Árabe?Ou mesmo de um Oriente actualmente representado pelos "Humanismos" da nova China em África? Muitas as perguntas a serem ponderadas pelos africanos. Um abraço.

Anónimo disse...

...a resistencia sociologica das populacoes africanas , neste caso as da nossa Guine,acrecente-se a hipocresia dos Estados, politicos, parlamentares e partidos... e porque nao... da propria colonizacao portuguesa...que preferiu assobiar pro lado por razoes obvias e de "aliciamento" das etnias onde essa tradicao era praticavel..quando e sempre se vira confrontrado com uma tal pratica apesar de ancestral, nefasta !!!

E mais...o ordenamento juridico e constitucional dos paises africanos,hoje independentes e ditos soberanos,preveem normas condenatorias e proibitivas de tais praticas mutilatorias...

Esta patente na maior parte das constituicoes africanas...

No caso da nossa Guine, de ha muito identificado com uma das praticas nefastas a saude das mulheres e criancas, um projecto de lei banindo a Mutilacao Genital femenina, por razoes meramente eleitoralistas ( com o voto do leste do pais nao se brinca- confessou-me em tempos um parlamentar guineense) foi vendo a sua aprovacao sendo, sine die, adiado !

E mais ...o sucesso destes projectos de lei,depende na maior parte dos paises africanos onde ela existe, da propria conscientizacao das mulheres locais e da sua afirmacao, com voz propria, na politica.

Tomemos o caso da Guine e do Quenia como exemplos... paises onde na linha da frente dessa "cruzada" contra tal pratica, estiveram por sinal mulheres e deputadas...por sinal vitimas dessa mutilacao quando criancas!!!

Nelson Herbert
USA

Luís Graça disse...

Há mais de 4 anos atrás (e o nosso blogue vai fazer oito,se lá chegar, a 23 de Abril de 2012!), eu escrevi o seguinte sobre este tema recorrente:

(...)" Não é vocação nem propósito deste blogue reflectir, analisar e debater, por sistema, a actualidade sociopolítica da Guiné-Bissau. Há, no entanto, um problema que persiste, e que afecta uma parte significativa das guineenses: a Mutilação Genital Feminina, a nossa (mal) conhecida festa do fanado, uma prática que tem milhares de anos e que viola os direitos humanos das mulheres, adolescentes e crianças.

"Não podemos ficar indiferentes ao 'Holocausto Silencioso das Mulheres a quem Continuam Extrair o Clitóris' (Sofia Branco, Público, 4/8/2002), na Guiné-Bissau ou noutros países de África e do Próximo Oriente. No nosso tempo, quando passámos por lá, convivemos superficialmente com este fenómeno. Por falta de sensibilidade cultural, de informação e de formação de nós, jovens tugas, e sobretudo por cinismo e hipocrisia das autoridades portuguesas, a MFG foi um problema que nos passou ao lado, até mesmo na cama (na tarimba que servia de cama para as nossas episódicas conquistas...). Dificilmente falávamos sobre isto, com as bajudas e muito menos com as mulheres grandes, sobre as consequências do fanado para a saúde reprodutiva, sexual, psicológica e mental da mulher guineense, em especial das que pertencia aos grupos islamizados (fulas, mandingas e outros).

"Também não creio que o Amílcar Cabral e outros dirigentes do PAIGC alguma vez tenham tocado no problema. Calculo que fosse tabu durante a guerra de libertação. Hoje as coisas mudaram, felizmente. E há mulheres (homens, poucos) guineenses a lutarem pelos seus direitos... Sem defender o relativismo cultural, devo no entanto acrescentar que não podemos ver estes e outros complexos que têm ver com valores, de uma perspectiva etnocêntrica e eurocêntrica...

"Segundo dados da OMS - Organização Mundial de Saúde, a taxa de prevalência da MGF na Guiné-Bissau seria da ordem dos 50%, atingindo maior percentagm entre as mulheres fulas e mandingas (70% a 80%). A modalidade MGF mais praticada é de tipo II - Excisão do clitóris com parcial ou total excisão dos lábios menores"...


[ Vd. poste de 10 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1580: Fanado ou Mutilação Genital Feminina: Mulher e direitos humanos: ontem e hoje (Luís Graça / Jorge Cabral)]

... Devemos continuar a falar aqui da MGF. Embora objeto de condenação moral (e cada vez mais criminalizada enquanto prática), na comunidade internacional e nos nossos dois países, não deve no entanto ser uma "pedra no sapato" nas nossas relações de amizade e de cooperação com o(s) povo(s) da Guiné-Bissau...

Por que não se muda simplesmente por decreto, eu estou mais interessado em apoiar, aplaudir e divulgar os progressos que, nesta como noutras áreas da saúde e dos direitos humanos, na Guiné-Bissau e em Portugal - consigamos em conjunto alcançar - nós, homens e mulheres de boa vontade, de todo o mundo... LG

Anónimo disse...

Quanto a "não podermos ver estes e outros complexos problemas desde uma perspectiva etnocêntrica e eurocêntrica" não será difícil concordar.Será mais difícil de compreender a relacäo (aparentemente procurada no poste) entre o Humanismo Europeu e a mutilacäo genital feminina entre alguns grupos de Muçulmanos em África.Será talvez tempo de não se sentirem aparentes complexos quando outras gentes,e outras culturas,falam do Humanismo Europeu com aparentes condescendências. Um abraço.

Anónimo disse...

Lamentavelmente...grandes e fundamentadas verdades.
E ao Zé Belo, se tivesse aqui de cor, citava, mas como a idade já me não permite grande e organizado armazém de dados, por aproximação direi palavras de uma cantiga brasileira -"...um Brasiu maisss dicentche, um Brasiu indipendentche...dipendentche..."

José Brás

Antº Rosinha disse...

(T)Cherno, era pronunciado com letra T que parecia soar aos ouvidos estranhos a pronuncia do teu nome.

Não tinha lido este teu comentário nem a que propósito.

Esperio que esteja na forja o tal best seller.

Como conheci africanos que nunca chegaram a ser aculturados, colonozados, escravizados, não vestiam camisa nem sabiam o que era futebol nem religião de europeu e árabe,e nunca soube o que é que pensavam quando me olharam, espero um dia ouvir da boca de um filho deles, o relato do que se passou.

O que o europeu pensa já todos sabemos, brancos e pretos.

Cumprimentos

Anónimo disse...

Concordo plenamente com alguns pontos de vista aqui expressos.

A problematica da Mutilacao Genital femenina, sobrepoe-se e extravaza qualquer rotulo, que se entenda dar, a quem por uma questao de moral ou consciencia, independentemente da raca ou credo religioso...a entenda abordar ou condenar de forma frontal !!!

Que seja uma visao eurocentrista, europeista ou nativista... pouco importa ! O certo e que o problema existe...e aqui citando a Sofia Branco "Não podemos ficar indiferentes ao 'Holocausto Silencioso das Mulheres a quem Continuam Extrair o Clitóris'na Guiné-Bissau ou noutros países de África e do Próximo Oriente"...pelo que todo o engajamento no sentido da dissuasao de uma tal pratica ou in extremis, o seu proprio banimento...conta !!!

Cabral nas suas reflexoes abordou de forma aberta um conjunto de praticas socio-culturais que considerava contraproducentes a dinamica da luta e ao proprio emergente "novo homem" guineense, que idealizara...

Nesse particular,tanto a mutilacao genital, como o proprio "obscurantismo"... a do tipo dos guerrilheiros nao participarem numa determinada missao...num dado mato possesso supostamente por endemoniados Irans...qual Demostenes...munidos de uma espada...mereceram reflexoes daquele lider nacionalista ...

...mas infelizmente a historia recente da nossa Guine tem sido fertil em momentos de "glamour" do obscurantismo !!!

Nelson Herbert
USA

Anónimo disse...

Caro Cherno

Parece que (dizem)o homnis erectus teve inicio em África e depois emigrou para os restantes continentes.
Deste derivaram o sapiens e o neanderthal e parece(dizem)que o neanderthal se extinguiu ali para os lados de Gibralter.
Por isso o primeiro colonizador teve origem em África...ehh..ehhh.
Daí a desconfiança (teoria minha)dos africanos em relação aos europeus..ahh.ahh.
Os valores (humanistas)é que são importantes independentemente da origem.
Que os europeus não têm autoridade moral..é verdade..mas olha que os africanos também não..neste campo estamos empatados..
Proponho um desempate.

Um abraço

C.Martins