segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Guiné 63/74 - P9361: Notas de leitura (323): Malhas que os Impérios Tecem (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Dezembro de 2011:

Queridos amigos,
Estou sinceramente em crer que esta antologia cobrindo um século de pensamento anticolonial, apesar da diversidade de propostas, nalguns casos contraditórias, destacam o militantismo anticolonial na sua coerência possível, a partir a emergência dos direitos cívicos, da descoberta da negritude e como esta influenciou decisivamente a cultura ocidental, as respostas às exigências de uma luta de libertação que requeria abordagens teóricas especificamente nacionais e onde os valores da cultura foram exaltados como porta-estandarte da resposta armada.

Um abraço do
Mário


Malhas que os impérios tecem:
Quando os pensadores anticoloniais se envolveram nas guerras de libertação
(Continuação)

Beja Santos

Se os anos 50 se caracterizam pelo chamamento à identidade nacional, à denúncia do racismo e da exploração colonial, no início dos anos 60 a luta pela libertação e a renovação da cultura nacional entraram na ordem do dia. Em 1961, Frantz Fanon escreve “Os Condenados da Terra”, uma obra de referência para todos aqueles que já estavam ou que em breve se envolveram nos movimentos de libertação. Manuela Ribeiro Sanches, organizadora da antologia “Malhas que os Impérios Tecem” (Edições 70, 2011) chama justamente à atenção para o interesse desta obra que recebeu os maiores encómios de Jean-Paul Sartre em “Orfeu Negro”. É já nesta linha de pensamento que deve ser encarado o contributo de Kwame Nkruhmah que a antologia acolhe um texto exemplar. Sopram por toda a África ventos de unidade, a década verá a implementação de experiências falhadas na constituição de federações e de agrupamentos regionais. Os valores da cultura começam a pesar nos diferentes registos, personalidades como Mondlane ou Cabral irão dizer que a luta armada para além de um instrumento de unificação deve conduzir ao progresso cultural, o esteio mais sólido contra o colonialismo e o neocolonialismo.

No texto anterior, houve a preocupação de pôr em sequência as afiliações múltiplas do pensamento anticolonial, com peso especial nos EUA e na região das Caraíbas, que se veio cruzar com o fenómeno da negritude desenvolvido por intelectuais negros que se impuseram nas metrópoles coloniais, caso de Césaire e Senghor. Destacou-se o périplo de um conjunto de escritores americanos que percorreram África e que foram extremamente críticos quanto à condução do processo colonial, anotando as diferenças entre as comunidades negras assimiladas nos EUA e nas Caraíbas e aquelas que estavam a sair ou se preparavam para sair do estado colonial. É este arco histórico e cultural que permite perceber como o pensamento colonial não nasceu espontaneamente no fim da II Guerra Mundial, teve antecedentes no pan-africanismo que conduziram as novas potências, sobretudo os EUA e a URSS a usá-las no tabuleiro da Guerra Fria. Mas só se pode entender Mário Pinto de Andrade e o incitamento à revolta contra a dominação colonialista no contexto específico de uma revisão apressada da doutrina colonial proposta por Salazar, quando se apercebeu que as independências na Ásia e na África iam inevitavelmente conduzir aos conflitos armados.

O pensamento colonial procurara através da etnografia e da etnologia algumas justificações de índole científica para a menoridade do negro, para a obrigação de o civilizar. O pós-guerra suscitou a urgência e a importância do problema colonial na sua totalidade. É aqui útil recordar a viagem científica do antropólogo Mendes Corrêa à Guiné em 1947. Estamos a falar do mesmo cientista que dirá com a maior das naturalidades o seguinte sobre o mulato: “Como seres humanos, ligados à nossa raça pelos sagrados laços de origem, os mulatos têm direito à nossa simpatia e ajuda. Mas as razões que propusemos não permitem que o papel político dos mestiços vá além dos limites da vida local. Por mais brilhante e eficiente que seja a sua acção no sector profissional, económico, agrícola ou industrial, eles nunca devem – tal como os estrangeiros naturalizados – ocupar lugares de destaque nos assuntos públicos do país, excepto talvez em casos de completa e comprovada identificação connosco em temperamento, vontade, sentimentos e ideias, o que é excepcional e improvável”. A detecção deste racismo fora já obra da geração de Aimé Césaire, a que não faltou a visão crítica de que estava em curso o espectro da extinção das formas de civilização das sociedades colonizadas. Césaire dirá mesmo que a ordem colonialista nunca inspirou qualquer poeta e que nunca um hino de reconhecimento ressoou aos ouvidos dos colonialistas modernos. Ele pediu a palavra aos povos para se pôr termo ao caos cultural dos colonizados. Com base nesse apelo procedeu-se à revisão de como o racismo e o colonialismo tinham despojado as culturas nacionais, reorientando-as para um serviço dócil ao colono. Os compromissos entre as nações independentes e as antigas colónias também se saldaram em fracassos quando esses compromissos obedeceram às tácticas. O texto antológico “O neocolonialismo em África” de Kwame Nkruhmah é de uma importância fundamental para se entender o apelo à unidade africana que em muito sensibilizou Amílcar Cabral.

A antologia privilegia peças incontornáveis de Mondlane e Cabral. Falando de um movimento nacional em Moçambique, Mondlane volta a pôr em equação resistência e cultura: “O desejo dos portugueses de impor a sua cultura em todo o território, mesmo se bem-intencionado, era completamente irrealista devido ao tamanho da população. Constituindo menos de 2 % da população, os portugueses não podiam sequer esperar que todos os africanos tivessem a oportunidade de observar o modo de vida português. A maioria dos africanos só se encontrava com os portugueses na altura do pagamento do imposto, quando eram contratados para o trabalho forçado ou quando as suas terras eram confiscadas”. Dá depois exemplos da revolta dos intelectuais com destaque para a poesia de José Craveirinha com a sua estrutura musical bem demarcada:

Eu sou carvão!
E tu arrancas-me brutalmente do chão
e fazes-me tua mina, patrão.

Eu sou carvão
e tu acendes-me, patrão
para te servir eternamente como força motriz
mas eternamente não, patrão.

Eu sou carvão
e tenho que arder, sim
e queimar tudo com a força da minha combustão.

Eu sou carvão
tenho que arder na exploração
arder vivo como alcatrão, meu irmão
até não ser mais a tua mina, patrão.

Eu sou carvão
tenho que arder
queimar tudo com o fogo da minha combustão.

Sim! Eu serei o teu carvão, patrão!

A peça de Amílcar Cabral intitula-se “Libertação Nacional e Cultura”, foi uma conferência proferida na Universidade de Siracusa (EUA) em Fevereiro de 1970, à memória de Eduardo Mondlane. O movimento de libertação aparece como sinónimo de expressão política da cultura do povo em luta. Explana sobre as experiências de domínio colonial e o imperativo de uma cultura nacional para derrotar de vez o colonialismo. Insiste na sua tese de que os dirigentes do movimento de libertação, originários da pequena burguesia devem estar implicados em conhecer o povo, descobrindo nele a fonte dos valores culturais, isto a par da prática da democracia, da crítica e da autocrítica e da responsabilização crescente das populações na gestão da sua vida.

Esta antologia contempla um século de pensamento anticolonial e desmonta a lenda de que os movimentos de libertação tiveram a sua origem em razões conjunturais da ganância das superpotências ou em ideologias marcadamente marxistas.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 13 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9349: Notas de leitura (322): Malhas que os Impérios Tecem (Mário Beja Santos)

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