quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Guiné 63/74 - P9279: Fragmentos da minha passagem pela tropa (Carlos Rios) (3): Fragmentos Genuínos - 1


1. Em mensagem do dia 22 de Dezembro de 2011 o nosso camarada Carlos Rios (ex-Fur Mil da CCAÇ 1420/BCAÇ 1857, Mansoa e Bissorã, 1965/66), enviou-nos um extenso trabalho a que chamou "Fragmentos Genuínos" que começamos hoje a publicar, integrado na sua série Fragmentos da minha passagem pela tropa.



FRAGMENTOS GENUÍNOS - 1

O Singular acto de escrever nunca pode ser um esforço solitário e, sempre que possível, para mim um incipiente e ineficiente transmissor de factos e actos praticados, ou que me chegaram ao conhecimento verbalmente ou através de escritos, rocambolescos alguns, pungentes outros e ainda demonstrativos de verdadeiras iniquidades praticados por alguém e agora passados à prosa e dos quais com a devida vénia aos seus autores bem como textos e fotografias que me tornam extremamente grato ao Arquivo Histórico Ultramarino e outra instituições, ouso transcrever.

Há muitas pessoas que embora ausentes fisicamente aqui permanecem no meu sub-consciente estruturando e moldando a minha maneira de ser e pensar e a quem devo agradecer por ter conseguido reunir a energia, vontade e capacidade para levar a bom termo a tarefa a que me propus. Existem como é óbvio inúmeras e variadas formas de homenagear a intervenção e omnipresença dessas pessoas, pelo que imaginei mostrar-lhe o meu agradecimento e gratidão tão só pelo facto de existirem no meu Universo.

No topo da lista esta é claro a minha grande mulher, Fernanda, uma ribatejana dos sete costados (teimosa, resmungona, exigente, obstinada), mas a companheira de eleição para qualquer homem e que me mantém atento e concentrado em todos os aspectos realmente importantes da vida.

O meu filho, a minha nora, disponível e amiga que me presentearam com as maiores riquezas que um homem pode sonhar, as minhas adoráveis netas. E ainda os meus caros camaradas e amigos que tiveram que ao longo dos anos sofrer e participar numa horrenda guerra, prestando a mais sentida homenagem aos mortos e feridos daquele malfadado teatro de horrores, não esquecendo de daqui mandar um abraço de solidariedade aos sofredores de traumas e stress pós traumático com um desejo de incentivo nas suas vidas.

Também aos amigos da área da literatura e cultura pelos conselhos e apoio que me souberam transmitir.
A todos o muito obrigado!



As recordações dos momentos de rigidez, maus tratos e prepotências que eram coisa corrente, e marcaram primordialmente o período de cumprimento do serviço militar na metrópole, porquanto do que se tratava era de preparar, “homens para defender a pátria” no entender e dizer dos “instrutores”; elementos esses de que vim a fazer parte; fui colocado como monitor em Tavira na CISMI; (durante a recruta em Santarém morreu afogado no Tejo um camarada de outro pelotão), fazem aumentar o sentimento de desânimo e tristeza que alastra na despedida e adeus aos entes familiares e à terra que agora fazemos de bordo do Niassa a caminho da barra e no meu caso, começando já a sentir uma profunda nostalgia ao avistar no horizonte os locais da minha vivência; Caxias, Paço de Arcos etc…

No cais da Rocha do Conde de Óbidos

A partida era um momento tormentoso e tão emotivo que muitos sucumbiam em transes dramáticos. Para quantos não era um adeus definitivo aos melhores de todos nós, os jovens.
Quase todo o pessoal se encontrava na amurada do lado direito do barco e empoleirada em tudo quanto era sitio para um emotivo doloroso e incerto adeus. É indescritível o ambiente de ansiedade e inconformismo que quase se tornava palpável no ar. Não suportei a angústia que se instalou em mim e fui postar-me sorumbático e silencioso no Bar e remoer recordações.

Já em pleno oceano sentado no exterior na área da popa do navio espraiando o olhar pelo horizonte rememorei o período de tempo que passei na bonita agradável e acolhedora cidade de Tavira, onde para além de ter tirado a especialidade, me mantive como monitor do CISMI, o que me ocupou de Abril de 1964 até Junho de 1965, de tal maneira que já comentávamos eu e os meus companheiros que não iríamos para as colónias. Sonhos de jovens incipientes e desconhecedores dos mecanismos da instituição para onde tínhamos sido arrancados do seio das famílias. A população era afável e hospitaleira, principalmente em relação aos que se mantinham depois de terminados os obrigatórios cursos. O único senão encontrava-se nas degradadas e exíguas instalações do CISMI e na qualidade da alimentação. O problema era de tal ordem que espalhados por toda a cidade, haviam quartos alugados em casas particulares onde dormia e fazia a sua vida uma percentagem elevada de militares. Havia uma espécie de osmose entre um determinado estrato da população e os militares. Não me lembro durante este largo espaço de tempo de ter havido por parte dos comandos uma negativa aos pedidos de pernoita no exterior a qualquer militar. Creio que no pequeno quartel não haveria espaço minimamente decente para os cerca de seiscentos homens que ali chegaram a estar colocados.
A cidade vivia muito social e economicamente do meio militar

Paisagem da Cidade de Tavira

Havia uma notória falta de emprego e concomitantemente naquela época, entre parte da população a ilusória ideia de que os milicianos eram gente de posses, ideia que recolhi das prolongadas e agradáveis conversas que tive com a minha hospedeira e suas jovens auxiliares, dado que a senhora onde aluguei o quarto e passei a maior parte dos tempos livres, tinha um atelier de costura. Aqui passei bons e felizes dias que compensavam todas as agruras e passagens mais difíceis, no quartel. Poucas vezes me desloquei a casa, pudera; tinham que se pagar as viagens, o que se tornava assaz difícil depois de ter de pagar o aluguer do quarto. Num intervalo entre os dois cursos de que fui monitor e que coincidiu com a Páscoa (aproximadamente quinze dias), aqui me mantive, sendo tratado por todos como um filho e não só. Aqui, neste agradável ambiente externo alguns acontecimentos no quartel ajudaram, a que se fosse começando a moldar o cérebro deste jovem que julga hoje no ocaso da vida ser uma criatura que pretende ter como principal factor estruturante um profundo sentido de humanidade e solidariedade.

A minha pátria é o Mundo. A minha nacionalidade é a humanidade.

Uma das actividades de Tavira – As salinas

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 19 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9235: Fragmentos da minha passagem pela tropa (Carlos Rios) (2): Miniautocarro civil detona mina anticarro em Encheia

2 comentários:

Hélder Valério disse...

Caro camarigo Carlos Rios

Fico a aguardar a continuação destes teus "Fragmentos".
Serão certamente recheados de episódios interessantes, muitos comuns a todos nós, alguns inéditos, uns cómicos, outros dramáticos porque, como sabemos, houve lugar para tudo poder acontecer.
Assim houvessem olhos e sentidos para observar e apreender.

Falas de Tavira. Não conheci da tropa, essa foi em Santarém, Lisboa, Tancos e Porto. Mas conheço-a de ir e estar lá e é sempre com gosto, com sentido de tranquilidade, de repouso que nela percorro ruas ou estou em esplanadas. Gostei da foto do Gilão e da ponte romana.

Falaste também do momento do embarque. O meu não foi assim. Fui em rendição individual e não te vou maçar com o relato da mesma, coisa que já o fiz, salvo erro no meu primeiro contributo após a 'apresentação'.
No entanto talvez tenha 'assistido' ao teu embarque já que 'assisti' a vários. Por essa época eu era ainda 'estudante profissional' e às vezes, manhã cedo, antes das 8 horas, estava num jardim sobranceiro à Praça D. Luís I e aquando da partida desse navios com tropas impressionava-me o clamor, os gritos perfeitamente audíveis àquela distância, das pessoas que no cais faziam as últimas despedidas, em desespero, sempre acompanhadas pelo sinistros silvos das sirenes do barco. Podes crer que se no barco era impressionante não o era menos 'lá em cima', onde estava, ligeiramente abafado pela distância mas ampliado pela imaginação.
Às vezes vejo escrito pelos patrioteiros algum enfado, algum fastio, sobre esses sentimentos do povo que via partir os seus filhos para um regresso incerto e fico a pensar com que legitimidade o fazem.
Mas isso são contas de outro rosário.

Abraço
Hélder S.

Anónimo disse...

Carlos Rios,

Bonita prosa com uma abertura excelente de Paul Valery.

Fico a aguardar mais.

Um abraço
BSardinha