sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Guiné 63/74 - P9258: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (19): Recordações de um colega cego

1. Em mensagem do dia 21 de Dezembro de 2011, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), enviou-nos mais uma das suas histórias e memórias, desta vez relembrando um colega, de faculdade, cego.

HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES (19)

O Colega Cego

Em pleno Outono de 1961 iniciei os estudos em Coimbra. Matriculei-me no curso de Filologia Germânica; éramos mais de 250 alunos naquele curso, mas menos de 20 eram do sexo masculino. Em determinadas aulas havia 600 alunos numa sala a ouvir um professor lá na frente porque havia “cadeiras” comuns a três cursos: Germânicas, Românicas, e Clássicas.
Imaginem hoje um professor ministrar uma aula com 600 alunos dentro duma sala! Seria interessante se um professor nos dias de hoje conseguisse dar a aula.

No meu curso havia um rapaz que era cego. A mãe acompanhava-o diariamente até à Faculdade; no fim das aulas lá estava ela a esperar pacientemente pelo filho generoso para o conduzir, a pé, até casa.
Naquela época os carros eram raros... o dinheiro não abundava mas ninguém “comia fiado”. E hoje só se fala em crise! O que seria aquilo?!

Apercebi-me que o Fausto, o companheiro cego, vivia para as minhas bandas.
Eu vinha diariamente da Conchada,... ele da Nicolau Chantrene, ali perto.
Combinei com aquela mãe maravilhosa que trouxesse o filho até à Antero de Quental; dali para a Faculdade e volta eu seria a sua muleta.

Na vida já fiz muitas coisas... extra: já fui engenheiro, empreiteiro de pontes e aprendiz de moço de cego (prestei provas e passei a moço). Sem pretender molestar ninguém... penso que desempenhei adequadamente esse cargo... voluntário; nunca houve atrasos nem faltas de comparência.

O Fausto era um colega interessantíssimo, muito paciente e muito inteligente; todos os colegas adoravam conversar com ele e ajudá-lo; era um óptimo conversador. Em cada intervalo, um montão de malta (colegas) rodeava-o para conversar, saber como escrevia manualmente (Breille) o que o professor ía relatando, como “lia” as horas no seu relógio... para cegos etc.

Em casa tinha um gravador de bobines onde o irmão – estudante de medicina – “gravava” as sebentas. A ouvir a gravação o Fausto aprendia a matéria.

No nosso percurso de e para as aulas conversei muito com ele; contou-me como tudo tinha acontecido com pormenores surpreendentes.

Nasceu com uma deficiência que lhe afectou a visão; passou a ver cada vez menos; a partir dos cinco já via pouco mas passou a ter dores horríveis. Estas dores abrandavam se estivesse em local absolutamente escuro. Apareceu um médico americano que prometeu debelar as dores... porém “levou-lhe” também a pouca visão que lhe restava.
Naquela época ele apercebia-se apenas dum obstáculo – um muro, por exemplo – à sua frente; um buraco, por maior que fosse, não era perceptível.

Nos exames escrevia à máquina; o Fausto era um bom aluno. Conhecia todos os colegas... pela voz; era muito vivo, muito perspicaz.
Um dia perguntei-lhe se ele gostaria de vêr. Ele estacou no meio das escadas monumentais; depois de pensar calmamente por uns instantes e respondeu:
- Nunca me fizeram tal pergunta; daí a minha demora em responder; sinceramente penso que ter vista agora seria uma desilusão para mim... o mundo talvez não seja como eu o imagino... não será mesmo... calculo que a minha decepção seria enorme!

No ano lectivo seguinte tínhamos horários diferentes; eu já não podia auxiliá-lo. Outro colega ocupou o meu lugar; “víamo-nos” e falávamos de vez em quando... raramente.

Findo o ano lectivo de 1962/63 mandaram-me para Mafra, EPI; ainda me matriculei em duas cadeiras... apenas para poder exercer a praxe. Aos fins de semana, de vez em quando, ia até Coimbra e lá tomava parte numa “trupe”... para caçar caloiros. Seria até uma boa preparação para mais tarde... caçar “turras”. Como só actuava de noite nunca encontrei o Fausto.

Em Janeiro de 1964, como aspirante, fui para Évora; em Maio no mesmo ano, como alferes, parti para a Guiné.

Um ano depois, em Abril/Maio de 1965, vim de férias; ia muitas vezes a Coimbra visitar a garota (que veio a ser e ainda é a minha mulher) e assistir à queima das fitas.
Numa das idas a Coimbra, numa rua bastante inclinada que desemboca no Largo da Portagem – Conraça de Lisboa, creio) vi o Fausto no meio da multidão amparado por uma ex-colega minha.

A uns metros de distância gritei:
- Oh Fausto! Estás bom, pá?!
Corri logo para junto dele.
O Fausto retorquiu:
- Fala mais alguma coisa! Estou a reconhecer a tua vez!
Mais duas ou três palavras e o Fausto exclamou contente:
- Tu és o Belmiro! Que foi feito de ti, rapaz? Dá cá um abraço, meu grande amigo! Deixa-me chamar-te... meu guia!

Iniciámos logo um longo desfiar de recordações; conversámos longamente.
A certa altura, o Fausto informou:
- A minha guia agora é esta! (e acarinhou amorosamente a nossa ex-colega) lembras-te dela? Casámos há quatro meses... é uma grande companheira! Uma excelente amiga!

Uns anos mais tarde soube que ele era professor de inglês num liceu de Coimbra; A esposa leccionava na mesma escola; os alunos adoravam-no!
Quando em fins dos anos 70 pretendi saber o que era feito dele... fui informado que tinha falecido em consequência da doença congénita que lhe provocou a cegueira.

Aquele encontro em Maio de 65 ficou gravado na minha memória, para sempre. Mais de 46 anos passados ainda recordo aquele dia com alegria e emoção: o Fausto reconheceu-me depois duma separação forçada de 3 anos. Que rica queima das Fitas!

Lisboa, 19 de Dezembro de 2012
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 18 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9228: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (18): Uma mina anticarro e as suas consequências

3 comentários:

Luís Graça disse...

Uma história de vida, uma história de solidariedade... Um gandre Alfa Bravo para o Belmiro!

José Marcelino Martins disse...

Caro Belmiro

Não há dúvida que, amigo é sempre amigo.

Um abraço

JD disse...

Camaradas,
O Belmiro traz-nos aqui perante a dicotomia da vida e da morte, da alegria e da tristeza, da relatividade da vida, e do modo como podemos enfrentá-la.
A maior capacidade do homem, parece, é a de adaptação. E são tantos os casos em que certas pessoas apesar de limitadas nas suas capacidades situam-se perante a vida com a clarividência para dela tirarem e partilharem prazer e proveito, que os restantes cidadãos deviam ter sempre presente não criar mais dificuldades ou obstáculos, à prossecução das actividades e expectativas de quem é afectado por uma qualquer deficiência.
Não sei se será uma história de Natal, mas, certamente, é uma narrativa para nos manter atentos e solidários. Se calhar, nos curriculos escolares devia haver disciplinas sobre solidariedade.
JD
JD