sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Guiné 63/74 - P9128: Notas de leitura (307): Dois Anos de Guiné - Diário da Companhia de Caçadores 675, por Fur Mil Oliveira (4) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Novembro de 2011:

Queridos amigos,
Cumpri o gostoso dever de pôr em recensão o diário de JERO, primeiro volume.
Devo esta honra ao confrade Belmiro Tavares que me passou para as mãos o seu exemplar. É indubitavelmente um documento histórico, no mínimo uma cópia devia ir para o Arquivo Histórico-Militar, talvez mesmo para a Biblioteca do Exército.
Naquele tempo ninguém imprimia em tipografias documentação classificada como secreta e que aparece neste volume com a chancela de “Confidencial”.
Perguntei ao Belmiro Tavares por onde andava o segundo volume. Não terá sido escrito, o JERO guardou apontamentos que estão na base do seu livro de que aqui já se fez referência “Golpe de Mão(s)”.
Sinto-me honrado por este serviço prestado ao blogue e à literatura da guerra da Guiné.

Um abraço do
Mário


Um documento histórico, o diário da CCAÇ 675, o diário de JERO (4)

Beja Santos

O diário de JERO, como vimos anteriormente, iniciou-se em Maio de 1964, quando a CCAÇ 675 partiu de Évora para embarcar. No seu precioso documento, nunca se percebe as motivações que o levaram a compendiar os seus apontamentos pessoais e o seu olhar sobre o historial da Companhia. No final deste primeiro volume ele anota minuciosamente citações e referências elogiosas (foram muito abundantes), textos de relatórios, louvores, com especial destaque para o louvor dado à Companhia pelo Comandante Militar em Julho de 1965 e que tem o seguinte teor: “A CCAÇ 675, pela notável eficiência, entusiasmo e bravura como tem cumprido a sua missão. Tendo entrado em sector numa fase em que o IN, fortemente moralizado e aguerrido, se considerava absolutamente senhor da situação, conseguiu mercê do ritmo impressionante e forte determinação em que actuou, modificar completamente o aspecto operacional da sua zona de responsabilidade. Batendo contínua e sistematicamente todas as regiões do sector, procurando infatigavelmente o contacto com o IN, destruindo-lhe as suas bases, instalações e reabastecimentos, fazendo nomadizações prolongadas, etc., desorganizou-o e desmoralizou-o e este foi a pouco e pouco perdendo a iniciativa que passou toda praticamente para as NT (…) Como consequência lógica da sua brilhante actuação adquiriu enorme prestígio e inspirou confiança às populações, de princípio, devido à actividade inimiga, se tinham refugiado no mato e no país vizinho e que principalmente a partir de Março de 1965 começaram a apresentar-se às NT. É digno de maior elogio a organização, método, esforço e carinho, com que quase só à custa dos seus meios e disponibilidades materiais, tem procurado criar condições de vida aos nativos apresentados”.

Espírito atento, caracteriza perfis, conta anedotas, explora o humor na guerra, regista as baixas e o material perdido. Mas também os actos de bravura, como descreve no final do ano de 1964, vale a pena transcrever o que ele anotou: “Foi notável e a todos os títulos digna de louvor a acção do 1.º Cabo indígena n.º 8/64-A, Manuel Gonçalves, que embora ligeiramente ferido e combalido, pois seguia na viatura sob a qual rebentou a mina, respondeu rapidamente ao fogo inimigo. Sendo projectado do Unimog onde seguia, não largou a sua metralhadora Madsen, abrindo fogo logo que caiu no chão. Também o Soldado indígena Mamadu Bangorá se portou valentemente demonstrando uma coragem e sangue frio dignos do maior elogio, pois conseguiu em circunstâncias particularmente difíceis e com risco da própria vida, retirar todos os seus camaradas feridos do local do rebentamento da mina. Depois de transportar os feridos para um local mais seguro, teve a preocupação de voltar junto da viatura que ardia e que podia explodir de um momento para o outro, para recolher todo o material de guerra disperso pelo chão, evitando assim que pudesse ficar nas mãos do inimigo. É também digno dos maiores elogios o comportamento do 1.º Cabo 2231/63, Craveiro, que embora imobilizado por ferimentos graves, não deixou de comandar os seus camaradas, recomendando-lhes serenidade. Apesar de ser dos feridos de maior gravidade, nunca soltou um queixume, pedindo para que os restantes camaradas fossem primeiramente tratados, revelando assim um espírito de sacrifício e abnegação aliado a um sentimento de cumprir, verdadeiramente excepcionais”.

Estamos em Março, JERO regista ao pormenor os acontecimentos do dia 21, a festa da CCAÇ 675, foi enorme a alegria da população, quer a de Guidage quer a de Binta, esse júbilo fazia apagar muito sofrimento. Em 24, há uma batida na região de Faer, verificaram com alguma surpresa que a bolanha de Alabato estava cultivada, na progressão, junto de capim queimado encontrar um caminho, cedo começou a reacção do inimigo que foi rechaçado, prosseguem em quadrado, indiferentes ao tiroteio, houve a registar quatro acções de fogo em curto espaço de tempo, foram destruídas nesta acção quatro casas de mato recentemente abandonadas. Em 31 de Março vem no diário: “Binta repovoou-se lenta mas firmemente e a sua tabanca, há longos meses abandonados e invadida pelos tentáculos da floresta próxima, sofreu uma “aragem de limpeza” que lhe dá um aspecto rejuvenescido ao fim de poucos dias. Brancos e negros, trabalham lado a lado entusiasticamente. A população de Binta cifrava-se em 170 indivíduos”.

Há a registar no dia 10 de Março o rebentamento de uma mina no cruzamento da estrada Bigene-Guidage, o Unimog ficou inutilizado. Dias antes, na região de Ujeque, um grupo inimigo foi emboscado pelo Grupo de Combate da guarnição de Guidage tendo sido abatidos dois inimigos e capturada mais uma pistola-metralhadora Thompson. O inimigo não dorme, depois de uma segunda visita que a CCAÇ 675 faz a Sambuiá, onde houve novamente destruição de casas de mato e se procedeu à apreensão de algum armamento e documentos, no dia 11, uma coluna que se dirigia a Guidage, teve no Cufeu uma mina comandada, houve uma explosão violentíssima, resultou um ferido sem gravidade.

Estamos a caminho de um ano de comissão. JERO elabora o retrato de algumas das figuras mais curiosas da Companhia, destaque para o soldado atirador número 2226/63, António Machado de seu nome, mais conhecido por Nhaca. Ele regista: “O seu retrato físico descreve-se com meia dúzia de palavras: alto, muito magro, rosto ossudo de traços mongóis (também lhe chamam Chu-en-Lai por causa disso), óculos na ponta do nariz, cabelo liso pouco assente, e umas longas pernas, muito finas e algo tortas”. Ao que parece, o Machado era cliente assíduo da enfermaria, mordido pela curiosidade, passou de doente profissional a curioso de enfermagem, quis praticar como ajudante de enfermeiro. No posto de socorros, em Guidage, repetia com frequência aos nativos que era o enfermeiro Machado, passou a ser conhecido pelo doutor e por troca de uma injecção os doentes do Senegal traziam-lhe uma galinha. Acontece que um dia até se esqueceu de uma agulha intramuscular e foi a correr atrás da bajuda, levantou-lhe o pano desabridamente e tirou-lhe a agulha.

Nesse mês de Maio saiu um número especial de “O Sabre” com artigos do capitão Tomé Pinto, do alferes Belmiro Tavares, do soldado Perfeito. Todos convergem para o mesmo ponto: missão cumprida. Agora já não se esconde que a tropa acusa o esforço desenvolvido depois de um ano de Guiné. Embora com elevado moral e um nível sanitário razoável, já se fazem actualmente com dificuldade patrulhamentos apeados superiores a 15km, quando inicialmente se faziam 30 a 40km com um certo à vontade, regista JERO que também anota a seguinte observação: tendo sido exposto pelo nosso Comandante de Companhia a necessidade das Praças gozarem períodos de licença semelhantes aos dos quadros, não se conseguiu até agora solução para o problema que seria, além de tudo mais, um justo prémio para aqueles que em todas as circunstâncias correspondem com valentia e generosidade a tudo o que lhes é pedido. Caracterizando o inimigo, esclarece que o seu reduto principal continua a ser a região de Sambuiá, infelizmente não se dera continuidade à acção de 5 de Janeiro passado.

Foi neste local onde durante cerca de um ano - Julho de 64 a Julho de 65 - foi escrito o nosso "Diário".
Já não me lembro da "marca" da máquina de escrever. Sei que o teclado era "hcesar". Ao fundo, decorando a parede, estão uns calções e amuletos diversos de alguém que teve um "mau encontro" com a tropa do "Capitão de Binta". As letras que sumidamente completam a decoração dizem: "Nem com mezinhos se safam".

E este diário termina com uma frase que está em cima da secretária do Comandante de Companhia: “Vitória é sinónimo de vontade”.

Gostei muito do diário de JERO, pela autenticidade e pela camuflagem da escrita. Afinal, as surpresas continuam nesta literatura que durante décadas jazeu nos arquivos dos protagonistas.
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Nota de CV:

Vd. postes da série de:

21 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9071: Notas de leitura (304): Dois Anos de Guiné - Diário da Companhia de Caçadores 675, por Fur Mil Oliveira (1) (Mário Beja Santos)

25 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9094: Notas de leitura (305): Dois Anos de Guiné - Diário da Companhia de Caçadores 675, por Fur Mil Oliveira (2) (Mário Beja Santos)
e
28 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9107: Notas de leitura (306): Dois Anos de Guiné - Diário da Companhia de Caçadores 675, por Fur Mil Oliveira (3) (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Manuel Joaquim disse...

Camarada Beja Santos,

Porque conheço bem o livro, venho felicitar-te por esta recensão que considero muito boa.

Um abraço