quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Guiné 63/74 - P9092: (Ex)citações (158): Homenagem aos nossos mortos não tem data! É quando um homem quiser! (António Matos)


1. O nosso camarada António Matos, ex-Alf Mil Minas e Armadilhas da CCAÇ 2790, Bula, 1970/72, enviou-nos a seguinte mensagem:

Homenagem aos nossos mortos não tem data! É quando um homem quiser!

Camaradas,

Para lá duma forte comoção que me invadiu o coração em dia de greve geral a qual me permitiu dedicar o tempo "à limpeza" de muito lixo acumulado no computador, descubro inadvertidamente este texto nos meus arquivos que me sobressaltou pela saudade, pela dor e pela juventude passada...

Fiquei confuso sobre a oportunidade de uma re-publicação mas isso deixo ao critério dos editores e o que decidirem está bem decidido.

Dizia eu em 2008 :

Cá volto eu outra vez nestes primeiros contactos de Tabanca, recordando outras tabancas lá por terras de poucas saudades, onde deixei muita da pureza da minha meninice, alguns dos amigos que fiz desde os Arrifes em Ponta Delgada e que tinha jurado trazê-los de volta ao colo das suas Mães, aos abraços enternecedores dos Pais, aos beijos das namoradas...

Tal não se concretizou e hoje, ao ver os rostos daqueles que eram meninos, confrange-me o sofrimento incalculável de quem tenha recebido um telegrama a anunciar uma morte por actos de bravura em defesa da Pátria !!!!

Caramba, muitos dos nossos camaradas morreram tão simplesmente por serem os homens errados, no sítio errado à hora errada!

Muitos de nós não tinham tido sequer tempo de interiorizarem o quanto essa Pátria ( que hoje os esquece em favor de outros que seguem para missões de meia dúzia de meses e a troco de belas fortunas ), lhes pediu, de borla, para que fossem heróis na medida das suas forças!

Caramba, eu vi miúdos a chorar na caserna com saudades dos seus familiares !

Caramba, eu vi miúdos a baterem-se com uma heroicidade contagiante pela defesa do camarada em apuros que lhe estava ao lado!

Caramba, eu vi miúdos a fazerem frente a um contingente de guerrilheiros liderados pelo Nino Vieira!

Caramba, eu vi miúdos a caírem nas minas e a ficarem decepados!

Caramba, meus caros, eu vejo, todos vemos, o abandono a que esta Pátria nos relegou!

Não, não faço parte de qualquer associação de apoio aos ex-combatentes; nunca me disponibilizei a engordar as filas de manifestantes que se propõem zelar pelos interesses de todos nós; nunca expus publicamente o meu desencanto com os sucessivos (des)governantes que têm passado pelos corredores dos Passos Perdidos numa atitude de vil desrespeito por esta geração que é a minha; mas agora, do alto da palhota da minha Tabanca, tento compreender o meu tempo e as novas gerações onde já pontuam os meus filhos, os meus netos, e os filhos e os netos dos meus camaradas de armas.

Os tempos deram uma grande cambalhota e os valores alteraram a sua ordem hierárquica.

Hoje pertencemos a uma geração que sendo sobrevivente a uma guerra, assiste à transformação do paradigma da vida.

Hoje há filhos a morrer antes dos pais pelas mais diversas razões: droga, uso indevido de armas, acidentes viários, gangsterismo, AVC's, stress, incertezas profissionais, etc., etc., etc.

Duvido que esta juventude tenha alguma simpatia pelo conhecimento desta aventura africana na qual os seus pais se envolveram.

Têm tanto com que se preocupar...

Enfim, em dia de todos os mortos, rendo-me à memória de todos aqueles que partiram dirigindo às respectivas famílias o meu sentido silêncio já que as palavras teimam em não sair pelo nó que se forma na garganta.

Voltarei mais tarde para me dedicar também às ocasiões que nos faziam rir.

E foram muitas...

Abraços,
António Matos
Alf Mil Minas e Armadilhas da CCAÇ 2790
__________
Notas de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

15 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9046: (Ex)citações (156): A recensão a Pami Na Dondo foi feita não ao livro mas à pessoa do autor (Mário Fitas)


7 comentários:

Luís Dias disse...

Camarada António Matos

Num texto que dizes ter sido escrito em 2008, mas podia muito bem ter sido escrito em data anterior, ou mesmo nos dias de hoje. É muito actual. Os tempos que vivemos naquela guerra estão a ficar longe e a juventude, como também referes, tem mais em que se preocupar. São tempos difíceis que nos esperam e aquilo que todos lá passámos irá, infelizmente, morrer connosco.
Um abraço.
Luís Dias

Anónimo disse...

António Matos,

Bonita prosa acerca daqueles que o não podem fazer e deixaram para nós essa obrigação, lembrá-los, é o mínimo que podemos dar-lhes, a continuação da nossa lembrança.

Um abraço,
BSardinha

José Marcelino Martins disse...

Tens razão António

Mas, infelismente, não somos os únicos "esquecidos desta guerra".

Repara que os últimos combates que tioveram lugar em território nacional, que mereçam esse nome, foram as Invasões Franceses entre 1807/1811, num âmbito internacional, e as Lutas Liberais Liberais, entre 1828/1834, a nivel interno.

Desde então, Portugal e os Portugueses estiveram sempre em guerra, mais ou menos acesa, nas suas possessões em África e na Ásia, uma vez que o Brasil já era independente.

Também estivemos em França, mas todos estes cenários eram LÁ LONGE.

Todas, melhor, quase todas as familias, tiveram um militar no seu seio, por isso somos um país de militares, mas reservaram para sí as dores e as saudades.

Os mortos eram chorados em silência e havia, quase, uma "vergonha" de os deixar ter partido para a guerra.

Nós próprios, os combatentes, calamos durante décadas o nosso combate, porque fomos ostracisados pelos que, por "sorte" não foram sequer cumprir o serviço militar.

Mesmo os politicos, os que foram à guerra, calam essa verdade, para que as suas carreiras não sejam "afcetadas por este facto" e só se lembram dissso, que em troca tiverem dividendos.

A própria Liga dos Combatentes, criada por milicianos "aposta", agora nos "contratados a prazo", os voluntários da actualidade, que fazem um contrato com inicio e termo, mas depois queixam-se que "a tropa" os descartou, e há quem lhe dê audiência a nivel nacional na VV, onde contam os seus actos épicos nas missões humanitárias.

Bem, caro António e demais camaradas.
Já calamos durante muito tempo. É hora de, mesmo que neste espaço restricto em relação ao universo da comunicação, debitemos (e apresentemos a factura) aqueles que hoje governem e/ou estão nos cargos de chefia e/ou decisão.

Ao falarmos ALTO, estamos a defender os que tombaram e a chamar a atenção para com aqueles que, tendo voltado, sofrem no corpo e na alma os tempos de guerra.

José Marcelino Martins disse...

O comentário anterior tem em alguns erros, mas o que nmais necessita de correcção é:

"a nivel nacional na TV, onde contam os seus "actos épicos" nas..."

manuelmaia disse...

Caro António,

Antes de mais quero saudar este teu regresso que espero tenha um carácter duradouro.
A tua verticalidade faz falta no blog.
Depois para reiterar as palavras dos meus antecessores; do Luis Dias,quando reporta à actualidade do tema que aponta a vida prenhe de dificuldades para os jovens para quem o sofrimento da nossa geração quase nada diz,assoberbados que estão com a instabilidade do momento em que se movimentam,sem vislumbrarem futuro;
do Belarmino que referencia a necessidade de darmos voz aà queles que partiram; e finalmente para ter em atenção as palavras do Zé Martins, carregadas de razão, quando brada à premência de dizer basta ao silêncio a que nos remetemos e remeteram durante todos este anos.
È tempo de dizer ÀQUELES QUE DETÊM O PODER que esta geração sofrida que foi a nossa, exige respeito pelos sacrificios que em nome da Pátria nos foram impostos e a que nunca viramos costas, ao contrário de alguns papagaios da política,traidores e desertores que se encheram de prebendas e teêm vindo a ocupar as cadeiras do poder de há trinta e sete anos a esta parte...
HOMENAGEM AOS NOSSOS MORTOS NÃO TEM DATA ! É QUANDO UM HOMEM QUISER!
Oxalá queiramos todos fazê-lo,fora do circuito das ligas,das federações,associações e "ofícios correlativos" e encontremos uma data que não a utilizada por estas organizações( umas de cariz governamental, e outras ...nem por isso) e consigamos aqui neste blogue traçar caminhos conducentes ao acerto do dia do ex-combatente,onde nos possamos reunir com boina,descabelados,com farda ou completamente à civil, mas imbuídos todos desse mesmo querer. Oxalá...

Anónimo disse...

António, regozijo-me com o teu reaparecimento, mas quando o fazes, vens sempre a propósito.Nada é mais actual do que escreveste em 2008, como diria um camarada nosso contemporâneo, que combateu em Angola,(a minha terra). País que esquece aqueles que morreram ou ficaram estropiados, ao seu serviço, não é um País de bem...Nada me é mais importante que relembrar quem lá ficou.Na Guiné, os meninos que connosco foram, em Angola, quem lá deixei ficar.
Aquele abraço amigo de quem como tu lutou pelo seu País, sem motivos politiqueiros...

Jorge Fontinha

Anónimo disse...

Grande texto amigo a camarada António Matos, com verdades enormes que o tempo não apaga. A evocação que fazes dos telegramas a dar a terrível notícia aos Pais ainda hoje me transtorna e doi. Porque os meus Pais por causa de um boato de uma coscuvilheira ,que teria ouvido na rádio a minha morte, andaram uma semana a caminhar para a Câmara Municipal para verem se o "tal" telegrama tinha chegado...Só soube desta história anos depois e ainda não a esqueci. Embora a minha juventude, como a de todos nós ex-combatentes, esteja cada vez mais longínqua.Mas, felizmente, que temos os nossos valores.Termino como comecei. Gostei muito do teu texto, que é anterior à minha admissão do nosso blog.E o reconhecimento ao que é bom e tem valor...não tem data.
Um abraço de Alcobaça,
JERO