sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Guiné 63/74 - P8933: Memória dos lugares (158): Cufar e o porto do rio Manterunga, extensão do inferno na terra : 2 de Março de 1974 (António Graça de Abreu)



Guiné > Região de Tombali > Cufar >   Sábado, dia 2 de Março de 1974, "dia do diabo"   

Entre Cufar e o porto do rio Manterunga, afluente do Rio Cumbijã, numa picada que não teria mais de cem metros, batida milhares de vezes pelos jipes e demais viaturas militares,  o IN deixou lá  uma potente brinquedo de morte: uma vulgar mina anti-carro, reforçada por uma bomba de um Fiat que não tinha explodido...

Um jipe do pelotão da Intendência, o PINT 9288, anteriormente comandado pelo Alf Mil João Lourenço (membro da nossa Tabanca Grande), acionou o engenho, a meio da tarde. Os cinco ocupantes, dois militares, brancos (o Fur Mil Pita e o Sold Santos, de alcunha O Jeová), e três civis, estivadores, guineenses, encontraram aqui a morte...

Mais à frente, outra mina, enterrada no lodo do rio, provocou ao fim da tarde a explosão, em cadeia, de batelões atracados ao cais e carregados de bidões de gasolina... 

Mais dezasseis estivadores guineenses,  civis, perderam a vida, num cenário dantesco de horror..."Vi coisas nunca vistas e que nunca mais quero ver", escreveu o António Graça de Abreu no seu Diário da Guiné...

(...) "O rio Cumbijã passa a dois quilómetros de Cufar, mas existe o rio Manterunga, um pequeno afluente, melhor um braço de rio que chega quase até à nossa povoação. A quinhentos metros daqui construiu-se um pequeno pontão, um cais de abicagem noManterunga.

"É aquilo a que chamamos o 'porto interior', utilizado por barcos de pouco calado que chegam carregados de Bissau e descarregam neste porto. Quando a maré está cheia, os batelões sobem o rio e ficam ancorados lá em baixo. A maré desce e os barcos pousam em cima do lodo do leito do rio que é mole e não lhes danifica o casco. Voltam a aproveitar uma maré-cheia para regressar a Bissau. São batelões pequenos, uma espécie de barcaças com motor que trazem para aqui muitos produtos de que necessitamos todos os dias, sobretudo gasolina para abastecer os aviões e helicópteros.

"Entre Cufar e o porto do rio Manterunga existe uma picada de terra batida com umas centenas de metros. Até ontem circulava-se nessa estradinha com o maior à vontade, considerava-se a estrada como fazendo parte dos caminhos de Cufar. Já passei por lá dezenas de vezes conduzindo os jipes e é um dos trajectos que costumo utilizar nos meus crosses" (...).


Fotos: © António Graça de Abreu (2011). Todos os direitos reservados.
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Nota do editor:

Último poste da série > 19 de Outubro de 2011 >  Guiné 63/74 - P8925: Memória dos lugares (157): Empada, região de Quínara, by air (António Graça de Abreu)

15 comentários:

Henrique Cerqueira disse...

É Incrível...
Momentos atrás estamos a recordar velhos tempos de gloriosa música que nos ajudava a esquecer as agruras de uma guerra estúpida e sem fundamento final para os Portugueses.
Agora Vêm publicar fotos de cadáveres de nossos antigos camaradas ...Francamente um mau dia e até á próxima.
Henrique Cerqueira

Luís Graça disse...

Henrique:

Peço desculpa, em meu nome, como editor, e em nome do António Graça de Abreu, se estas fotos te feriram a tua suscetibilidade.

Estas e outras fotos, tiradas pelo António, em "slides" (entretanto digitalizados), já tinham sido, aliás, publicadas há 2 anos atrás no nosso blogue (*).

A nossa intenção não é "chocar" ninguém, e muito menos gratuitamente. Tu, eu, o António, todos nós, estivemos numa guerra. Todos matámos e todos morremos, direta ou indiretamente. O horror não nos era servido à mesa, em família, como notícia-espetáculo, como acontece hoje, à hora do jantar, às 20h00, nos telejornais de todo o mundo, com as nossas criancinhas à volta da mesa, a comer o pudim instantâneo...

O horror-faz-de-conta não vinha nos jogos de vídeo que não tínhamos nos anos 60.

O horror-horror fazia parte do nosso quotidiano no TO da Guiné. Do meu, do teu, do António.

O António nunca mais esqueceu (nem poderá esquecer) estas imagens. Eu não esqueci (nem nunca poderei esquecer) os cadáveres, retalhados pelos "rockets", que trazíamos do mato, na zona leste... Tu também não poderás esquecer... Nenhum de nós poderá esquecer...

Claro, tens todo o direito de esquecer, ou de tentar esquecer. Concordo contigo: se calhar hoje foi mau dia para abrir o raio do blogue...

Com amizade e camaradagem, Luís Graça.

Anónimo disse...

Senhor Alferes.Momentos dramáticos.Infelizmente vividos com regularidade macabra por militares com especialidades,e posicionamentos no terreno,menos resguardadas,o que Infelizmente limitava as possibilidades de crosses de desanuviamento a todos necessários. Carlos Nunes

Anónimo disse...

Podia deixar passar sem nada dizer,fazer como certamente a maioria fará, cada um terá as suas razões. Por mim, considero que não podemos ignorar e esquecer só por não falarmos das coisas, elas aconteceram e temos de viver com elas, lembrá-las é alertar outros para os perigos de qualquer guerra. Tendo esta sido vivida por nós, se as imagens chocam tanto melhor, pode ajudar a evitar que volte a acontecer.
Por outro lado, não somos apenas nós que por aqui vimos espreitar, muitos outros que colocam em dúvida tudo o que aquilo foi também o fazem, outros, devido à sua juventude podem esquecer ou até desconhecer, é bom que tirem as suas conclusões pela verdade e não por ilusões vendidas.
Sempre que se fala ou recordamos, independentemente da forma, qualquer camarada caído, estamos a evitar deixar esquecê-lo.
Esta a minha opinião franca e aberta sobre estes temas.
Um abraço para todos,
BSardinha

José Marcelino Martins disse...

Caro Belarmino Sardinha

Com a tua permissão, assino por baixo o teu comentário e, permite-me, acrescentar, em estilo de pergunta:

Todos estes casos, com maior ou menor destaque, foi o quotidiano das Nossa Tropas, em qualquer das três frentes que tiveram combates.
Devíamos ter falado "DISTO" desde o seu inicio, mas tal não aconteceu.

Primeiro porque "não se devia falar" e comentava-se "à boca pequena" o que se tinha vivido.

Depois, por "falso pudor" (digo eu), não se contou, até porque "éramos/somos" indivíduos que, na opinião de muitos, ajudamos o colonialismo, e hoje somos aquilo que somos, não o que queremos.

Agora que falamos, "pedem-nos" para não falar/mostrar, porque aquilo que vimos "não foi nada", nem sequer nos afectou.

Aos 20 anos fizemos o que nos pediram/mandaram!

Aos 30 anos já trabalhávamos no duro, por amor à família.

Aos 65 anos recebemos a recompensa, pois estamos em Outubro que é o "MÊS DA ESMOLA", pelos SERVIÇOS PRESTADOS À PÁTRIA.

Carlos Vinhal disse...

Caso para dizer: - E o fotógrafo estava lá.
Carlos Vinhal
Leça da Palmeira

Henrique Cerqueira disse...

Caro Luís Graça e restantes camaradas da Guiné.
Não é o facto de chocar ou não as imagens,pois que na realidade hoje em dia é o nosso almoço,jantar,lanche,etc...é que as televisões têm que vender e nada melhor que desgraças,mortes,roubos e restantes desgraças.
Creio eu que em grande parte a "Desumanização" em que se vai vivendo é culpa dessa impressa fatalista e comercial.
Agora o que me magoa é que 40 anos depois se ande a ilustrar artigos com os corpos dos nossos ex camaradas mortos.Peço perdão, mas eu acho uma falta de respeito e sensibilidade para com esses camaradas que morreram e pior ainda para seus familiares.
Desculpem camaradas mas eu não estou mesmo de acordo com a publicação destas imagens,mas os editores é que sabem ,são soberanos na escolha dos artigos e suas imagens.
Um abraço muito sentido ao Luís Graça e restantes Tertulianos desta Tabanca Grande.
Henrique Cerqueira

Torcato Mendonca disse...

Caros Camaradas
São imagens que HOJE já chocam os antigos operacionais. Outrora talvez não, outrora revoltavam.
Ontem vi matarem um Presidente de um País e chocou-me. Era um ser humano.

A GUERRA é uma brutalidade que devia desaparecer. Talvez imagens destas, mesmos revistas por quem fez a guerra, contribuam para que haja mais paz.

Claro que os militares de ontem não vinham com stresse...p.t...

Pela Paz no Mundo e um Ab T.

Luís Graça disse...

A leitura do diário do AGA, relativa a esta tragédia ocorrida em Cufar, no dia 2 de Março de 1974, onde terá havido um total de 19 mortos nas duas minas (2 militares e 17 civis, todos da Intendência), leva-me a fazer as seguintes observações:


(i) nesse dia, e de acordo com a lista dos mortos no TO da Guiné, consultada na página da Liga dos Combatentes, só houve 2 mortos, entre eles o Sold Santos. O Fur Mil Pita não consta... Certamente, por lapso.

(ii) os estivadores. civis, todos guineenses, ao serviço da Intendência, também não foram contabilizados, já que não eram militares;

(iii) por outro lado, nesses 19 (2 militares e 17 civis), não estão incluídos os civis que vieram a morrer no hospital (cerca de um dezena foi evacuada nessa noite por Nordatlas; e sete tinham um prognóstico muito reservado, segundo o AGA).

Pergunta-se:

Saberemos algum dia o número (aproximado) de vítimas daquela guerra ? De um lado e do outro... Militares e civis...

Julgo que na "contabilidade dos mortos" das NT também não entravam as milícias... Muito menos os civis...

Do lado do PAIGC, então ainda pior: não temos mesmo números nenhuns. Nem sequer uma estimativa... Ou alguém tem ?

Anónimo disse...

Cada um é livre de ter as susceptibilidades que quiser.

Caro Torcato é chocante ver aquilo que se passou com o kadafhi..mas como não vimos a barbárie que ele mandou fazer..!!!

Os cadáveres queimados ficam assim ou ainda em pior estado.

Caro Luís Graça

Não sabemos o número de baixas do paigc ?
Claro que não sabemos nem nunca saberemos..esperavam ..o quê.

Não tiveram nenhuma, tal e qual como a proclamação da independência foi em lugadjole.

Desculpem o desabafo,mas parece-me que vocês, às vezes, são um bocadinho ingénuos...o mundo real é feio, porco e mau e ..bárbaro.

Lamento dizê-lo, mas infelizmente já vi tanta barbárie que penso que o ser humano é intrinsecamente mau..só, às vezes, de vez em quando,dá-lhe para ser "bonzinho".

O DESENCANTADO COM O MUNDO

C.MARTINS

Luís Graça disse...

Segundo apurou o nosso co-editor Carlos Vinhal, um dos dois militares que foram vitimas mortais da 1ª mina foi o Carlos Alberto Pita da Silva,
Fur Mil do Pel Int 9288, o Furriel Pita.

Morreu duas semanas depois, a 17 de Março de 1974, no HM de Bissau

Obrigado, Carlos V!

LG

Anónimo disse...

"Não sabemos o número de baixas do paigc ? Claro que não sabemos nem nunca saberemos..esperavam ..o quê.
Não tiveram nenhuma,(...)"-

Meu caro C Martins...

... independentemente da "conveniencia" das estatisticas de um e outro lado da trincheira, a guerra (colonial, do ultramar ou de libertacao) fazendo jus a infamia propria das guerras,aos povos apenas legou a morte e a dor !!!

E eh pois no culto desses seus mortos que as sociedades humanas, procuram tradicionalmente os mais delicados símbolos da sua coesão e identidade.

Era assim entre os antigos gregos.Pratica identica encontramos ainda hoje nas sociedades tradicionais africanas e em particular, nessa nossa Guine !!

Dai que...honremos os mortos (baixas)dessa guerra , de um e outro lado, abdicando de evoca-los em vao !!!

Mantenhas

Nelson Herbert

Anónimo disse...

Caro Nelson

Certamente não vais à Guiné há muito tempo.
Vai lá ver em que estado estão os monumentos, e tudo o resto.
Vi o busto de Amílcar Cabral, em Bafatá,completamente ao abandono, e crianças a urinar na sua base.
Onde estão os cemitérios dos combatentes do paigc ?
Não invoquei nenhuns mortos em vão.
Foi apenas uma metáfora.
Se há alguém que não mostrou e mostra qualquer reconhecimento para com os mortos e os ainda vivos combatentes do paigc, foram e são todos aqueles detentores do poder político pós-independência.
Lá na Guiné, como até aqui em Portugal, tem sido apenas palavreado de circunstância.

C.Martins

Anónimo disse...

PS
Quando disse "invoquei" queria dizer "evoquei"
As minhas desculpas

C.martins

Anónimo disse...

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