sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Guiné 63/74 - P8785: Notas de leitura (274): Nha Bijagó, de António Estácio (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Agosto de 2011:

Queridos amigos,
António Estácio, um dos nossos confrades luso-guineenses, puxa pelos galões e descreve-nos Bissau e a sua mudança de vila obscura para buliçosa capital da província. Há que lhe fazer justiça, ele tinha que gravar a cinzel a Bissau da sua infância e adolescência. Escolhe muito bem o ambiente em que se moveu uma figura prestigiada de negociante influente da sociedade crioula, uma das últimas sinharas que os mais velhos ainda hoje recordam. Estácio foi feliz no delineamento desta sua viagem ao centro das memórias que guarda de Bissau, ficamos-lhe a dever mais esta incursão cultural e outras que seguramente nos dará, sempre com agradável surpresa.


Um abraço do
Mário


Nha Bijagó

Beja Santos

O nosso confrade António Estácio já nos tinha dado uma agradável surpresa, em 2010, quando escreveu “Nha Carlota”, uma distinta sinhara de Nhacra. Temos agora a “Nha Bijagó”, nome pela qual ficou conhecida outra sinhara, de seu nome Leopoldina Ferreira. O prefaciador avança as suas convicções para a atracção que move António Estácio para este tipo de estudos. Porque estamos diante de personalidades influentes, matriarcas que vêm na esteira das grandes figuras femininas que deram contributos decisivos para moldar a sociedade guineense, ao longo dos séculos.

Como escreve Eduardo J. R. Fernandes: “Essas mulheres eram na sua maioria crioulas, geriam com enorme maestria os negócios dos seus maridos europeus ou eurodescendentes, resolviam conflitos, realizavam pactos com as autoridades locais. A sua condição de crioula, dava à sinhara uma capacidade negocial ímpar, pois sendo detentora de uma dupla identidade cultural, era com facilidade que fazia a ponte entre as populações locais e os alógenos, nomeadamente os europeus. Algumas dessas sinharas ficaram famosas, como a Bibiana Vaz, a Aurélia Correia conhecida por mamé Aurélia, a Júlia Silva Cardoso também conhecida por mamé Júlia e a Rosa Carvalho Alvarenga, mãe de Honório Pereira Barreto, entre muitas outras”.

“Nha Bijagó, respeitada personalidade da sociedade guineense (1871-1959) ” é uma edição de autor de António Estácio (citassi@yahoo.com.br).

António Estácio esmerou-se: consultou livros, boletins oficiais, documentos, entrevistou contemporâneos da sinhara e seus descendentes. Quando a sinhara veio ao mundo, as ruas de Bissau começaram a ser iluminadas a petróleo, a sede do Governo fora transferida para Bolama. Tornou-se tão influente que quando teve lugar o seu funeral, em 27 de Maio de 1959, nele tomaram parte centenas de pessoas que em marcha lenta se dirigiram para a zona de Tchada de Burro, na cidade velha, ficou sepultada no cemitério municipal de Bissau.

Era uma crioula austera, ter três ligações matrimoniais e um rancho de filhos. António Estácio procede a laborioso levantamento desta genealogia e até ao levantamento dos seus bens. Tudo isto é um bom pretexto para uma incursão do autor sobre a família Ledo Pontes, originária de Cabo Verde.

O autor aprimora-se no registo que faz sobre o ambiente urbano em que se moveu Nha Bijagó. E dá-nos logo um fresco de uma das maiores autoridades da época, o padre Marcelino Marques de Barros, que descreve assim Bissau no final de 1884: “… a vila de Bissau… tem uma vista agradável, e muito mais o seria se precipitassem do alto dos seus baluartes aqueles pilões medonhos, que se chamam onças. As casas descem num plano inclinado até às águas do Geba, e a praia é orlada de uma fileira de acácias, de mafumeiras e outras árvores. São baixas e umas 20 sobradas, postas em alinhamento menos que regular, olham todas para o porto e para as bandas do Sul e de Este, d‘onde sopram os ventos ardentes do deserto e os famosos tornados que fazem tanto mal às embarcações… Edifícios públicos que mereçam tal nome, nenhuns. No extremo esquerdo vê-se o baluarte de Pidjiquiti… à direita o primeiro sobrado… de portão ao centro e duas janelas no alto, pertence ao sr. César Gomes Barbosa e à esquerda, na rua de S. José, o do sr. Álvaro Ledo Pontes…”.

Trata-se de uma descrição minuciosa de quem é quem no que pode ser designado por Bissau Velho. A coroar a descrição, o padre Marcelino refere o cemitério murado por detrás da fortaleza, e refere o mausoléu que Tomás Ribeiro mandou erigir para honrar as cinzas de Honório Pereira Barreto, “enérgico e incorruptível, um misto reflexo do Marquês de Pombal e de D. João de Castro, no estilo e nas obras. Era um preto a quem Portugal deve muito”.

António Estácio é minucioso na toponímia do Bissau velho. Convém recordar que o concelho de Bissau foi criado em 1877, viviam 573 habitantes na área murada, uma população composta por 361 nativos, 166 cabo-verdianos e 16 europeus. Tinha a Nha Bijagó 12 anos quando a província da Guiné foi dividida em 4 circunscrições (Bolama, Bissau, Cacheu e Bolola). Ao chegar a adulta, a Nha Bijagó presenciou incidentes graves no interior da fortaleza de S. José da Amura, a vila sofreu um grande cerco movido por elementos da etnia Papel a que se juntaram os Balantas de Nhacra. Bissau parece cercada por hordas selvagens.

Na sequência das campanhas de Teixeira Pinto, Bissau é alvo de um plano de urbanização. A Avenida da República, que todos nós conhecemos (hoje Avenida Amílcar Cabral) data desse tempo. Tinha a Nha Bijagó 65 anos quando a comarca judicial da Guiné passou de Bolama para Bissau. Nha Bijagó assiste, pois, ao desenvolvimento urbanístico, ao aparecimento de monumentos, edifícios emblemáticos, à construção das moradias do Bairro Portugal, Bairro de S. Luzia, Catedral, Museu e Biblioteca, conclusão na nova ponte cais, aeroporto de Bissalanca, edifício da Associação Comercial e Industrial da Guiné, etc.

O que havia de incomum em Nha Bijagó? Filha de um comerciante branco e de uma Bijagó, D. Leopoldina tinha uma personalidade muito forte, era constantemente ouvida pelas autoridades locais que apreciam a sua capacidade organizadora e força mobilizadora. Era madrinha de meio mundo, uma das características de qualquer mulher influente. Viam-na a atravessar Bissau para ir à missa, se bem que severa pelava-se por organizar festas, ficaram célebres os bailes que organizava em casa. Presava a comemoração de eventos e encomendava pratos típicos quando juntava a família, como o brindge (à base de carne de pato, galinha ou porco, temperado, cozido e frito), servindo-se com mandioca ou batata cozida, o arroz é obrigatório.
António Estácio recolhe inúmeros depoimentos, é uma ternura o enlevo que ele põe neste testemunhos que atravessam décadas e que parece pôr Bissau a falar. A cidade é uma constante neste exercício monográfico sobre D. Leopoldina: a identificação dos negociantes, a listagem da gente famosa do tempo, a visita ao património da sinhara, o conteúdo dos testamentos.

No seu inconsciente, António Estácio, que nasceu em Bissau em 1947 e que aqui viveu até à sua adolescência, salvaguarda a memória de uma cidade que ele conheceu a palmo, vai do passado até à sua juventude, é uma viagem de afectos a pretexto de iluminar talvez aquela que tenha sido a última sinhara de uma Bissau que é hoje fantasmática. Percebe-se a saudade de António Estácio e ficamos devedores de este retrato de uma mulher de prestígio no contexto do desenvolvimento de Bissau, uma Bissau que todos nós conhecemos e que, sob muitos aspectos, se descaracterizou e profundamente decaiu.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 13 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8769: Notas de leitura (273): Dezoito anos em África, notas e documentos para a biografia do Conselheiro José D'Almeida (Mário Beja Santos / António José Pereira da Costa)

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