segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Guiné 63/74 - P8673: Outras Guerras (José Ferreira da Silva) (1): O Herói de Maiombe

1. Em mensagem do dia 12 de Agosto de 2011, o nosso camarada José Ferreira da Silva* (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos esta homenagem ao um bravo da guerra colonial que lutou nas longínquas terras de Maiombe (Cabinda / Angola):


OUTRAS GUERRAS

O herói do Maiombe

Quando o Quim da Ponte engravidou uma jovem conquista, sua vizinha, de nome Belinha, não imaginava a cruz que teria que carregar pela vida fora. Com 16 anos apenas, a Belinha era efectivamente muito jovem e, ao casar, iria ficar eternamente acriançada. Ele, o Quim, de 41 anos, com o cadastro de” D. Juan de aldeia”, viu-se obrigado a aceitar para sua mulher, aquela que ele menos esperava. Valeu-lhe o apoio da sogra, sua antiga namorada, nesses primeiros anos 40, que muito os apoiou. Apesar das privações próprias deste período da II Guerra Mundial, o fruto daquele “lapso amoroso”, foi criado com todo o mimo da jovem mãe, o apego da avó, que enviuvara e a… tolerância do pai.

Para a mãe e para a avó, o Joãozinho era o” brinquedinho” mais bonito e o mais inteligente do mundo. Tinham desculpas permanentes para as suas limitações e guloseimas contínuas a premiá-lo por tudo e por nada. Para o pai, ele foi sempre um miúdo exageradamente mimado, dolente, gorducho e atrasado.

Efectivamente, o Joãozinho, além de mau aluno, tornou-se rapidamente num “menino da mamã”, convencido e mentiroso. O insucesso escolar chegava a ser justificado pela própria mãe, como “inveja da professora, perante tanta inteligência”. Ela aparecia em todo o lado para defender o menino, até durante o período do recreio escolar. Por mais que o pai Quim tentasse interferir na educação do rapaz, era logo contrariado pela família. Esta promovia-o a reizinho, enquanto entre os jovens da sua idade, o baptizavam de João Bolachinha, João Morcão, João Cagarolas, Joãozinho Morte Lenta, etc.

O tempo corria rapidamente, contrariamente à evolução do Joãozinho. Sem nunca ter trabalhado, o rapaz foi à inspecção militar, apresentando-se como “Estudante” e dando, como habilitações literárias, a frequência no 1º Ciclo do Ensino Secundário (sendo, há três anos, repetente do 2º ano).

Caído na tropa, cedo se apercebeu que por lá andavam outros morcões, mesmo entre os graduados.

Também “inchou” quando verificou que a grande parte dos militares eram analfabetos e do mundo rural.

Nesses primeiros anos de terrorismo em África, os nossos militares eram muito acarinhados pela população. Eram autênticos heróis, considerados como os continuadores das lutas patrióticas de Afonso Henriques e de Nuno Alvares Pereira. Ainda hoje tenho presentes as imagens de admiração e veneração dos primeiros militares, participantes na guerra do ultramar.

O Joãozinho tirou a recruta em Espinho e foi para Gaia, de onde seguiu para o norte de Cabinda… defender a Pátria.

O norte de Cabinda, destacava-se pela intensa mata do Maiombe, de onde se extraíam madeiras valiosas e onde viviam Gorilas. Sim, Gorilas, aqueles enormes e temíveis primatas negros, de feições quase humanas.

Cabinda está, territorialmente, desligada de Angola. Foi no Tratado de Simulambuco que a população, representada pelo chefe legal do N´Goyo, Príncipes e demais personalidades ligadas ao poder, escolheu o protectorado de Portugal (1.Fev.1885). Trata-se, afinal, do chamado Congo Português, reconhecido na Conferência de Berlim, quando também atribuíram um Congo aos Belgas (Zaire), hoje República Democrática do Congo e o outro, o de Brazaville, aos Franceses (hoje Republica do Congo). Por isso os Cabindas não se consideram angolanos. Tiveram sempre um tratamento diferente (até Bispado próprio). Pode dizer-se que, talvez graças ao trabalho profícuo dos missionários, os seus nativos se evidenciavam, com nível superior à generalidade dos africanos. Tudo estaria bem não fora a cobiça resultante da descoberta dos fortes jazigos de petróleo, naquele pequeno território. Com a guerra dos movimentos de libertação de Angola (FNLA e MPLA e, mais tarde, a UNITA), nenhum desistiu de Cabinda, mesmo sabendo que já lá existia o movimento FLEC- Frente de Libertação do Enclave de Cabinda. Com os americanos lá posicionados em força, não havia terrorismo que preocupasse. Os americanos pagavam as parcas percentagens da extracção do petróleo ao governo português, mas também alimentavam e controlavam os movimentos de libertação. Porém, de vez em quando, alguém publicitava que estava em luta. Desta forma, valorizava a sua importância nas negociações (ou comparticipações) para a sua activa continuidade revolucionária.

Naquele tempo, era, assim, importante que se mantivesse uma certa fama de que em Cabinda eram muito importantes e perigosas quaisquer missões militares.

É neste ambiente de guerra quase fictícia, na zona de Buco-Zau, que o Joãozinho, agora conhecido por Morcãozinho, vê a possibilidade de se promover junto dos seus familiares e vizinhos. As suas cartas eram autênticos relatos de… bravura. A mãe contava a toda a gente, incluindo prolongadas descrições na tasca do Mário da Loja. Não havia carta em que não fizesse referência a centenas de terroristas mortos, aos quais lhes cortavam a cabeça, mãos, orelhas e dedos, para prolongarem o valor das suas façanhas e evitarem a consumação de possíveis vinganças. Também falava na caça às pacaças, leões, hienas, elefantes e gorilas. Coisas de heróis, já exibidas em cinema e em banda desenhada. Quando escreveu que também tinham apanhado dois chefes dos turras, logo a mãe fez constar que o seu filho tinha capturado mais de 20 Gungunhanas. Chegou a falar com o padre Inácio, sobre os possíveis benefícios divinos, alcançados naquelas lutas contra os” infiéis”.

 Panorâmica de Maiombe - Cabinda - Angola
Com a devida vénia a Pensar e Falar Angola

Embora o pai Quim da Ponte não estivesse muito entusiasmado, mulher e sogra encarregaram-se de organizar uma festa de recepção ao Joãozinho, o “Herói do Maiombe”. Reservada a matança do porco para a sua vinda, o Quim ainda alvitrou que deveria ser o filho a matá-lo, mas a Belinha, lembrando a conhecida sensibilidade do filho, optou por chamar o Pardal, das Vendas de Cima, um especialista nesta arte de matador. Até porque o Pardal andava sempre com necessidade de renovar o seu sangue, alcoolizado há vários anos. Bebia como uma esponja, mesmo antes da matança. E como, nesta tarefa, normalmente, havia sempre vinho em abundância, necessário para ser aplicado nas carnes do falecido bicho, ele não se escondia de “matar a sede” de forma continuada.

Por outro lado, o Heroi do Maiombe, ponto de referência de toda a gente na festa, alegou que seria um perigo ser ele a matar o porco, pois, caso avistasse sangue, poderia fazer saltar a sua descontrolada agressividade e bravura. Assim, optou por ajudar a segurar o animal, nas patas traseiras.

O Pardal teve que esfregar os olhos para ver onde devia apontar a faca. Todavia, fê-lo com tal maestria que o porco parou imediatamente de berrar. Todos os ajudantes e assistentes soltaram um OH!!! de admiração. E disseram:
- Parece que sufocou!

Agarrando na malga de vinho mais próxima, o Pardal passou a manga da camisa pelos bigodes e emborcou mais umas goladas e exclamou (apontando para o seu peito):
- Tenho pena de não matar terroristas como o Joãozinho, mas para matar porcos não há como o este senhor Pardal!

Estendido o animal no chão, colocaram caruma de pinheiro ao longo do corpo. Nessa altura, o Joãozinho lá se mostrou valente a incendiar o porco. Eis que este, sentindo o calor a queimar-lhe o lombo, arranca de repelão, a arder, roça pelas pernas do Joãozinho e vai esfregar-se numa meda de palha. Entre gritos de:
-É bruxedo, ele tem o diabo no corpo, acudam o fogo, chamem os bombeiros, etc.

O velho Quim da Ponte” agarrou numa bacia que estava cheia de água, e apagou o incêndio, enquanto o porco caía definitivamente.

A Belinha ainda agarrou num garrafão para ajudar a apagar o fogo, mas o Pardal, que estava atento, lançou mão ao “catraio”, gritando: - Esse não vai, caralho, porque não podemos morrer à sede.

Quando tudo voltou à normalidade, o Quim da Ponte não viu o filho e perguntou à Bélinha:
- Então, mulher, onde anda o nosso Heroi do Maiombe?

A mulher puxou-o de lado e segredou-lhe, ao ouvido:
- Ele foi mudar de calças. Coitadinho, borrou-se todo!

Silva da Cart 1689
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 29 de Julho de 2011 > Guiné 63/74 - P8617: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (20): Uma Grande Mulher (ou uma imagem de uma geração)

8 comentários:

Anónimo disse...

Caro Silva:

F...-se...não há igual.Se é criação tua, és um grande criador. Se é uma história real adornada por ti, és um grande adornador. Até um garrafão do vinho ia servir para apagar o lume, não fora o borrachão estar atento...

Um abraço e continua.
Carvalho de Mampatá

Henrique Cerqueira disse...

Amigo silva
A tua história é do melhor que tenho lido ultimamente aqui neste blog,por tal vê lá se contas mais partes da vida do Joãozinho Cagão,morte lenta.É que a história alem de bem humorada tem o seu quê de retrato de muitos "Joãozinhos" que há por aí.
Um abraço e manda sempre
Henrique Cerqueira

Anónimo disse...

Gostei. Verdade ou mentira que interessa, não se confundem por vezes?

Uma (hi)(e)stória bem esgalhada.

Uma peça literária de bom humor.
BSardinha

Hélder Valério disse...

Caro camarigo J. Ferreira da Silva

Relato interessante.
Dá para relembrar os vários 'básicos' com que nos cruzámos e com que tivemos que lidar.
E pensar como estava desenvolvida a sociedade contemporânea. E comparar com o que se evoluiu, ou não.

Quanto às bravatas e às fotos que sempre enalteciam as felizes estadias em terras africanas não tenho observado muitas referências às famosas fotos 'do leão do sargento', aquelas em que aparecia morto um animal desses e vários bravos com pose de caçadores, rodeando o bicho ou com um pé em cima do dorso. Vi algumas e quase jurava que era sempre o mesmo bicho. Infalivelmente tinha sido morto pelo 'sargento' e todos comungavam do êxito.

Abraço
Hélder S.

JD disse...

Caro Silva,
Parabéns!
Que belíssima estória, queiroziana na construção e na conclusão.
Do melhor que aqui tenho lido.
Mas... aqui há marosca!
E ainda bem.
Um abraço
JD

Juvenal Amado disse...

Caro José F. Silva

Eram uns invejosos por isso o Joãozinho não progredia nem aprendia, qual falta de inteligência qual o quê.
Na verdade com o nível de analfabetismo da época, fácil seria terem feito de um oficial superior.
Lembrar-me eu, que para integrar certas forças só era preciso ter alguém na família, que soubesse ler e escrever.
Com algum exagero mas era quase assim.

Grande estória bem contada como aliás é teu costume.
Um abraço

José Marcelino Martins disse...

Caro José Silva

Não sei como "passei ao lado" deste post.

É fabuloso, quer pelo texto, quer pela "heroicidade" quer pelo enquadramento histórico, falando do Tratado de Simulanbuco.

Recorda, também, a "aura de heróis" atribuída aos Expedicionários a Angola, como lhes chamavam.

Desmistifica, igualmente, o "exagero" de alguma correspondência da época que, passados 14 anos, se havia de virar contra nós, que de heróis passamos a colonialistas. Alguém tinha de pagar a factura da queda do Império.

É um texto que merece fazer parte duma antologia.

Parabéns

Silva da Cart 1689 disse...

Caros amigos
Que me perdoem todos os camaradas João, por ter usado o seu nome, tão honrado como os outros, neste nosso Portugal. Como é lógico, os nomes desta história verídica, terão que ser fictícios.
Aos que aqui registaram o seu comentário, confesso-lhes que não me sinto à vontade, perante tanta lisonja. Todavia, seria um ingrato se não lhes manifestasse a minha simpatia.
Um abraço