segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Guiné 63/74 - P8648: O Regresso dos Heróis (Domingos Gonçalves) (1): Muitos anos depois



O Regresso dos Heróis*

Por

Domingos Gonçalves**
(Ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887)


DEDICATÓRIA
A todos os colegas da CCAÇ 1546 do BCaç 1887



I - MUITOS ANOS DEPOIS

Agora já só resta o sonho.
A aldeia acorda, cada manhã, envolta num lençol de paz, e eu deixo-me penetrar da calma que domina as coisas que, tranquilamente, descansam à minha volta.

Pelo dia além, muito leve, a aragem sopra do pinhal e traz para junto de mim um cheiro agradável, cheio de serenidade e de saúde.
De quando em quando os pardais esvoaçam em frente da minha janela, muito alegres e pequenos, curiosos, talvez, de saber em que estou a pensar. E o Sol ilumina-lhes a penugem escura, enquanto se movem no espaço.
Todavia, este ambiente tranquilo que num passado cada vez mais distante tanto desejei, ainda me não parece verdadeiro. O meu sono é perturbado ainda muitas vezes por sinistras recordações de um passado não de todo esquecido, imagens quase vivas de tantas situações macabras em que me encontrei.

Depois, quando acordo, não posso deixar de sorrir das imagens balofas do meu sonho. E porque compreendo as causas mais profundas desse sonhar, continuo sossegado... Consigo mesmo adormecer de novo tranquilamente...
Eu sei muito bem que, agora, já só resta mesmo o sonho.
Eu sei que essa realidade passou por mim, qual sombra fugidia, se deteve à minha frente durante breves momentos, só para que eu a contemplasse, e foi depois, despedaçar-se, ingloriamente, nos abismos pedregosos do passado, desse passado amargo e doloroso, mas, apesar de tudo, feito de muita saudade.

Hoje eu posso dizer que todo o sofrimento humano é passageiro. Posso, até, afirmar que me dá uma certa alegria o facto de poder recordar alguns desses momentos passados no meio da ansiedade e do perigo.
Ainda bem que tudo assim aconteceu... Amanhã talvez consiga sonhar tranquilamente.
Foram tortuosos e difíceis, é certo, os caminhos então trilhados.

Eu, e aqueles que lutaram a meu lado, fazemos parte de uma geração sacrificada no altar da guerra colonial, para uns, profano e iníquo, para outros, algo de sagrado, quase divino e transcendente.

O sangue dos que morreram, ou o sacrifício dos que tiveram a sorte de regressar, em qualquer dos casos, nada mais representam do que a inutilidade. Sim, porque a guerra foi uma realidade inútil. Ela não serviu os interesses de ninguém, muito menos os de uma população que sofreu, e contínua ainda a sofrer, embora de formas distintas, as suas tenebrosas consequências.
Mas, apesar de tudo, os que a viveram, acabam por recordá-la com saudade. Os humanos somos assim... Até do sofrimento, quando ultrapassado sem traumas e sem mágoas, acabamos por ter saudade... Tudo o que passa nos deixa sempre pena... Às vezes mesmo muita pena.


E hoje, a Guiné permanece muito longe de nós, lá na distância do esquecimento, entregue ao seu atraso e à sua pobreza, lembrando talvez uma guerra que não lhe deu nada, e uma paz que lhe roubou quase tudo.
Mas a Guiné permanece, também, muito perto de nós, no mais íntimo de nós mesmos, porque representa um pouco das nossas vidas e do nosso sofrimento. E o mais sagrado que nós temos são as nossas vidas, feitas da lembrança do ontem e do hoje, e da esperança no amanhã.

Todos nós, os que fizemos a guerra, assim como não esqueceremos as nossas vidas, também não esqueceremos, por fazer parte delas, a Guiné.
E essa lembrança vai continuar, para além de nós próprios, no imaginário colectivo das gerações que nos sucederem.

Hoje, mergulhada na suave neblina do atraso social, no esquecimento a que os pobres, sejam eles pessoas ou países são votados, a Guiné, onde tanto se lutou e sofreu, é uma nação de que ninguém fala, e de que nenhum país, pelo menos dos mais ricos, cobiça seja o que for.
É que ninguém faz nada, muito menos uma guerra durante tão longos anos, por causa de uma terra pobre. Nós, portugueses, fomos a excepção.

Hoje, por incrível que pareça, o país quase se envergonha dos seus mortos, dos mortos que tombaram numa guerra quase sem fim, que ele, país, numa fase menos iluminada da sua história recente, quis fazer.
Existe mesmo uma certa vergonha em assumir um passado onde, por uma causa que, naquele espaço temporal, já não tinha razão de ser, foram sacrificadas muitas vidas em honra de um deus em que já ninguém acreditava. Mas, toda essa percepção deturpada, todo esse aparente esquecimento, que não passa de uma quase cobardia colectiva, será um sentimento transitório, que o tempo se encarregará de corrigir.

Todo esse passado, na crueza da sua realidade e na força que o sofrimento humano empresta à vida, permanece indelével no inconsciente do país real, que não se compadece com hiatos na sua história, que sempre soube assumir, e ressurgirá com naturalidade e sem traumas, quando a história se fizer, a da nação que lutou, e a da nação que, envergonhada, finge esquecer o sangue dos mortos e o sofrimento de muitos vivos.
E então, tudo será reposto no respectivo lugar.

É que, o sangue dos tantos mortos, ou o sofrimento dos muitos que ainda estão vivos, nada teve a ver, na sua quase totalidade, com o erro dos políticos que, ignorando ostensivamente as mudanças sociais e políticas que o mundo da época atravessava, não souberam tomar as decisões mais acertadas que a evolução do país, e das colónias, aconselhavam que se tomassem.
Mas nada disso justifica esta vergonha, que parece haver, desse passado recente, como que se estivéssemos perante algo que teve a ver com outro povo e se viveu num outro mundo.
O nosso passado teve a cor que teve. Serão, por isso, infrutíferas, todas as tentativas de o pintar de qualquer outra cor.

Os gestos que se façam para lhe mudar a tonalidade, para além de inúteis, serão quixotescos e ridículos. O passado foi o que foi. Ninguém o pode mudar, ou alterar.
Mas o passado é nosso. Pertence-nos. Não o podemos dar, ou alienar, seja a que pretexto, ou a que preço for.
Resta-nos, pois, e apenas, assumi-lo com toda a dignidade.

“O esquecimento é o fim da capacidade de sonhar e o reverso da vida.” Por isso, mesmo que às vezes ele seja escuro, não devemos deixar que se apague o nosso passado. O passado das pessoas apaga-se quando elas se apagam. O passado de um país só se apaga quando ele se apagar.

Este pequeno livro pretende ser uma promoção da memória, um pequeno contributo na luta contra o esquecimento intencional, ou não, de uma pequena parte do nosso passado de país e de povo.

O passado das pessoas é, quase sempre, construído de luzes e de sombras. Tem coisas boas e coisas más.
Com o passado dos países e das nações acontece algo de semelhante.
Mas, assim como as pessoas não se podem desfazer das sombras que lhes enfeitam o passado, também os países, por mais que o tentem fazer, não conseguirão apagar as tonalidades mais escuras, ou mais claras, que serviram para dar cor ao seu passado, seja ele recente ou distante.

Um dia virá em que o país, finalmente, se reconciliará com o seu passado e com a sua história, com dignidade e sem complexos de culpa. Sim, porque hoje, existe ainda um certo inconsciente colectivo, doentio e com laivos de frustração, onde predomina uma cultura de intolerância, incapaz de ao menos admitir que se entenda a história, muito embora reprovando alguns dos que foram seus actores. Mesmo sendo construídas com o sacrifício de milhares de escravos, as grandes obras da humanidade não deixaram de ter a beleza que todos hoje admiramos. E a história é, de longe e no seu todo, a mais bela de todas as obras que a humanidade construiu.

Hoje, as pessoas de bom senso todas reconhecem que a guerra foi um erro. Mas esse erro só foi possível porque a existência do regime político então vigente foi um erro muito maior. Mas, que se olhe, enfim, para o passado, mesmo que ainda bastante próximo, sem complexos e sem traumas.

(Continua)
__________

Notas de CV:

(*) O Regresso dos Heróis é um livro do nosso camarada Domingos Gonçalves (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68), edição de autor, que hoje começamos a publicar no nosso Blogue por sua gentileza.

(**) Vd. poste de 3 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8633: Tabanca Grande (295): Domingos Gonçalves, ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887 (Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68)

2 comentários:

Hélder Valério disse...

Caro camarigo Domingos Gonçalves

Este é o primeiro dos vários episódios que estão prometidos seguirem-se.

Será então prematuro emitir opinião mas gostei desta espécie de introdução. Da caracterização dos meios, dos locais, dos ambientes e até também das reflexões que a acompanham.

Para mim é um trabalho que promete e que desde já me agrada.

Abraço
Hélder S.

Anónimo disse...

Meu caro camarada D.Gonçalves

gosto, confesso,da tua prosa límpida e transparente,mas que mergulha nas profundezas da utopia.
Somos trespassados por múltiplos sentimentos ao ver o sofrimento daquele povo, que entretanto se desvanecem e só fica a revolta ao verificar a realidade de comportamentos de pequenos e mesquinhos politicozecos.
O que senti ao ver uma aventesma que dizia ser ministro, pavonear-se num jeep topo de gama com os pulsos adornados com braceletes supostamente de ouro e os dedos das mãos com anéis do mesmo,quando à sua volta a única coisa que existia era a mais completa miséria.

Nota--acção passada em Gabú em 98 durante guerra civil.

C.Martins