sábado, 30 de julho de 2011

Guiné 63/74 - P8619: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (13): O chefe ganhava pouco

1. Mensagem do nosso camarada Belmiro Tavares, (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), datada de 27 de Julho de 2011 com mais uma das suas histórias e memórias:

HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES (13)

O “chefe” ganhava pouco

No dia 10 de Abril de 1974 (quinze dias antes da bronca) comecei a trabalhar no Hotel Jorge V, um 3*** muito simpático no centro da grande Lisboa. Já conhecia esta unidade hoteleira, embora muito superficialmente, pois já tinha trabalhado lá, durante uns meses e a tempo parcial.

Ainda não tinha aquecido bem a cadeira, quando um empregado de mesa veio ao meu gabinete perguntar quando poderia atendê-lo.
- Pode ser já, respondi; qual é o assunto?
- Sabe! Eu sou escanção, um cargo de muita responsabilidade, e ganho apenas como chefe de turno; acho que devia ser aumentado.

Mais umas palavras ditas de circunstância, comentei:
- Tanto quanto sei tu não és escanção; mas sim encarregado ou controlador das vendas de bebidas. Mas isso não é assunto que mereça ser tratado, pelo menos agora. Não me surpreende que tu queiras ganhar mais; espantar-me-ia se tu me pedisses para reduzir o teu salário. Vamos lá ver se nos entendemos.

O teu pai é um vitivinicultor em pequena escala; estou certo?
- Está certíssimo! Ele vende uns almudes de vinho por ano além de trabalhar também como pedreiro.

Vinhas do Dão

Eu sabia que o rapaz era natural de São Pedro do Sul; o pai sendo pedreiro, conseguia tempo para tratar das suas terras. Na província quase toda a gente tinha “dupla” ocupação; ou antes: trabalhava de sol a sol.

- A última colheita foi boa?
- Foi! Boa em qualidade e quantidade e proporcionou uma receita razoável ao meu pai.

- Qual foi o preço de venda?
- Seis escudos por litro; é um preço simpático para a zona; lá não há grandes produtores de vinho.

- Muito bem! Como sabes o teu pai começa a tratar da vinha logo em Janeiro: cava, adubação, poda, curas e mais curas até final de Junho; não é verdade?
- É sim senhor! A vinha dá muito trabalho mas vai compensando; é um dinheiro que vem junto!

- No princípio do Verão, frequentemente ocorrem trovoadas violentas, por vezes acompanhadas de granizo; se tal acontecer na tua zona, o teu pai pode perder toda a colheita ou boa parte dela; não é assim?
- Isso acontece muitas vezes! A agricultura é sempre um grande risco!

- Vamos partir do principio que tal não acontece. O teu pai continua a tratar cuidadosamente da vinha e, em Setembro/Outubro faz a festa da vindima; as uvas são esmagadas. Se durante a noite, uma pedra do lagar se quebrar, pela manhã o teu pai vai ver se o vinho está em fermentação e... só encontra “bagaço” no lagar. Isto pode acontecer ou não?
- Pode! Embora não seja vulgar! Hoje muitos lagares já são de cimento; mas ainda há muitos em pedra!

- Tal não vai acontecer certamente; o teu pai coloca o vinho na pipa; durante a noite, um arco pode quebrar-se e, pela manhã, a pipa estará vazia. O teu pai perdeu logo ali todo o fruto do seu enorme trabalho assiduo de um ano!
- Pode muito bem acontecer! O trabalho agricola tem muitos imprevistos!

- Não vamos ser maus para com o teu pai; ele não merece tanta maldade! Não havendo azar o teu pai venderá o vinho a 6$00 cada litro que, como disseste, não é mau preço.
- É como o senhor diz! Lá na zona é considerado um bom preço!

- Se um cliente te pedir uma garrafa de vinho para acompanhar o almoço ou o jantar, tu vais à garrafeira e tiras de lá a tal garrafa; se escorregares e a quebrares, não tens a responsabilidade de a pagar. Não é assim?
- É sim senhor! Tal e qual!

- Os vinhos que temos cá são vendidos em média a 100$00 cada garrafa de 0,75l. Deste montante, além do teu ordenado, tu recebes 10$00. É assim ou não?
- É assim mesmo!

O rapaz não se apercebeu do meu subterfúgio ou truque; os tais 10% não eram só para ele! Os empregados que “lidavam” directamente com os clientes recebiam quinzenalmente 10% da receita – a então chamada taxa de serviço. Ele já se sentia “manietado”. Creio bem que já estava arrependido de se ter metido naquela alhada.

- Afinal quem ganha pouco?: serás tu que recebes 10$00 por uma garrafa de 0,75l além do teu ordenado e sem qualquer responsabilidade ou contigência ou é o teu pai que depois dum longo ano de trabalho intenso e duro, vende um litro de vinho por uns miseros 6$00, além dos perigos enormes que corre permanentemente?

Não houve resposta. Assunto encerrado!

Quanto anos mais tarde foi “embrulhado” num despedimento colectivo. Claro que não foi por pedir aumento! O restaurante e a cozinha foram encerrados por inviabilidade! Era a única saída!

Julho de 2011
Belmiro Tavares
Ten. Mil. Inf.
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Notas de CV:

Foto retirada do Blogue Pingas no Copo, com a devida vénia.

Vd. último poste da série de 28 de Julho de 2011 > Guiné 63/74 - P8612: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (12): Louvores e condecorações

1 comentário:

Hélder Valério disse...

Caro Belmiro Tavares

Com que então a 'dar a volta' ao jovem....
Como agora se vai dizendo, eram já "muitos anos a virar frangos" e com experiência acrescida em terra da Guiné...

Para além de se fazerem conjecturas sobre a justeza ou não do desenrolar da conversa havida, fica registado um belo relato sobre as actividades, dificuldades e angústias sobre paret do mundo rural, o relacionado com o ciclo do vinho.
É bom para que os que o conhecem o possam recordar e para os outros para que possam conhecer as voltas que o vinho dá, em termos de trabalhos e canseiras, até chegar às suas mesas.

Abraço
Hélder S.