quarta-feira, 6 de julho de 2011

Guiné 63/74 - P8520: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (28): Guiné - Tempo de Verão

1. Mensagem de Torcato Mendonça* (ex-Alf Mil da CART 2339 (Mansambo, 1968/69), com data de 3 de Julho de 2011:

Caríssimo Carlos Vinhal
Vim aqui, em tarde de fica ou sai, li um ou outro texto e comentário e meditei um pouco. Ia responder. Desisti. Para quê dizer que todos, quase todos, os militares desembarcados em Bissau deviam ter feito, (mesmo curta ou muito, muito curta... uma semana com viagens e alimentação incluídas) uma passagem pelo mato. Norte, Sul ou Leste. Viam, ouviam e regressavam mais confortados com uma realidade... bem, ponto final.
Assim, nada comentei e "farejei", encontrando, um escrito de outro tempo.
Passagem de olhos, cortes em demasia talvez e aí vai.
Repara que, ao viver assim nós éramos, disso tínhamos consciência, uns privilegiados.

Bom resto de Domingo.
Eu irei fazer por isso, agora que o Sol se começa a aquietar...

Abração amigo do
Torcato


ESTÓRIAS DE MANSAMBO II - 28

GUINÉ - TEMPO DE VERÃO

Para avivar a memória abri a Agenda de 1969.

Escolhi, essa a intenção, os meses de Julho e Agosto. Folheei a amarelecida Agenda. Apelei fortemente à memória, sobre essa parte de minha vida, quase o quotidiano do 2.º Grupo, o “meu Grupo”. Ali estavam, em breves notas, demasiado telegráficas, o bom senso de então assim aconselhava, o nosso viver colectivo.

Relembro agora. Há sempre um certo receio, uma dúvida quanto ao relato hoje, de acontecimentos há tanto tempo vividos. São o que em verdade, na minha verdade, recordo e transcrevo então.

Picada Afiá / Candamã

Assim:

- Em 13 de Julho, saída de Candamã e Afiá, depois de atribulada estadia de cerca de um mês.

Passagem e pernoita em Bambadinca.

Aí estava o desejado duche, depois de um mês sem o tomar, a roupa limpa, a cama com lençóis, o jantar servido em pratos sobre mesa coberta por toalha, talheres e copos. Um luxo, uma alegria.

No dia seguinte seria o regresso a Mansambo, a nossa base, o campo fortificado como estupidamente o Paigc o apelidava.

Tínhamos assim breves horas para respirar ar puro entre paredes, beber conteúdos frescos em copos de vidro, rir, ver revistas de nosso País e conversar descansadamente. Podíamos, se para isso tivéssemos tempo, melhor se para isso tivesse tempo, fazer uma passagem, em local certo, para passar um bocado com mulher de ocasião. Em Mansambo a única população eram os picadores e famílias. O respeito era a norma, claro.

No dia seguinte afivelávamos vestes e cinturões e partiríamos para fazer aqueles vinte ou trinta quilómetros de picada.

Voltávamos a picar a estrada, aos automatismos, às rotinas, aos olhos na nuca, a carícias às armas. Voltávamos a ser nós ou no que queriam que fossemos. Ali, na picada, na mata um segundo valia muito, o descuido era quase crime. O segundo de distracção podia custar uma vida.

Em Mansambo tratamos do correio, de roupas e relatórios, das novidades e do abraço aos camaradas.

- A 15, dois ou um dia depois, a ordem:

- Amanhã seguem para Bambadinca e depois recebem ordens. Devem ir reforçar, em Galomaro, a 2405 e o COP 7.

E assim foi.

Galomaro era um lugar simpático. Camaradas impecáveis, Posto de Administração Colonial, alguns comerciantes e muita tranquilidade.

Fomos para um aquartelamento em construção. Ao lado, uma pequena pista de aviação de onde, em operações relâmpago saiam os Pára-quedistas. Nós assistíamos, guardávamos as instalações e sabíamos como o In andava furioso. Natural depois da nossa saída do Boé e o termos deixado toda uma imensa zona desguarnecida. O Administrador de Bafatá não entendia assim. Como ele, outros, e, nesses outros é que estava o mal. As nossas Info militares eram pobres, mais do que pobres. As Informações fidedignas tinham outros autores. Para depois…

- A 22 estávamos em Madina Xaquili. Lugar nada agradável.

Galomaro > Torcato Mendonça à esquerda

Regressamos a Galomaro e, em 1 de Agosto, devido ao comportamento do IN fomos para Nova-Cansamba. Tabanca em pretensa autodefesa, mas estava, isso sim, desordenada, sem qualquer plano de defesa e a sofrer ataques com certa frequência. O Grupo que lá estava e fomos render, rapidamente se eclipsou a caminho de destino mais calmo. Ficamos gratos.

Nessa noite fomos logo atacados. Tínhamos montado, no pouco tempo que ali estávamos, uma defesa ainda incipiente. Estavam lá, ao serviço da tal autodefesa, uma Degtaryev, um morteiro 82 IN, muitas munições e bastante armamento entregue à população. Preparamos o nosso material e distribuímos o Grupo. Com um bidão fizemos a nossa “pesada”. Ou seja, cortava-se totalmente uma tampa e, no outro lado só metade. Lá dentro em rajada curta, mais longa de quando em vez, funcionava uma G3. O barulho era brutal. Certo é que a resposta ao ataque, depois de dezoito ou dezanove meses de comissão, foi o suficiente - forte e feio - para não mais, nos quinze dias que lá estivemos, aparecerem. Apareceu mais um ataque de paludismo para mim.

Só.

No dia seguinte, certamente pelo ruído dos rebentamentos e tiros. Não tínhamos rádio mas tínhamos operador, não tínhamos enfermeiro mas tínhamos bolsa, apareceu um Major Pára-quedista. Fizemos breve relatório verbal, pedimos material para a autodefesa e pouco mais. Tinha condições o local e aos poucos iria melhorar. Além disso a população era simpática.

A 15 de Agosto, para desgosto nosso, aí estava a ordem de regresso a Galomaro, em trânsito para Bambadinca.

Em Bambadinca, já com o nosso Comandante de Companhia, breve “briefing” e recebida a ordem. Partida imediata para Candamã. Missão: Encontrar o acampamento do Mamadu Indjai. Informações recebidas sobre esta personagem, breve troca de palavras e uma chamada à parte, feita por alguém, a mim:

- Só sais de lá quando o encontrarem. Depois têm um fim-de-semana em Bafatá. Não tivemos, não havia tempo… falhou… está esquecido e tudo bem.

Saímos, comandados pelo nosso Comandante de Companhia e outro Grupo.

Fizemos uma breve paragem em Afiá para convencer o Lhavo (o melhor Guia que conheci) a acompanhar-nos. A contragosto acedeu.

No dia seguinte lá fomos, com saída de Afiá onde se dera o ultimo ataque IN.

O Lhavo, bem protegido, seguia à frente na habitual progressão tão nossa conhecida. Foi detectado um local onde o IN tinha pernoitado. Apanhado, cuidadosamente claro, algum material perdido e vistas as coberturas feitas com ramos de palmeira (era época de chuvas). Tivemos então consciência de que era um grande e bem armado grupo. Com mais cautelas ainda prosseguimos. Ao final do dia detectamos e confirmamos o local do acampamento.

Regressamos a Candamã e o Batalhão foi informado.

Dois dias depois, em madrugada com chuva miudinha, se a memória me não atraiçoa, os Pára-quedistas, heli-transportados claro, assaltaram o acampamento, destruíram tudo e todo o grupo reforçado do Cmdt do Paigc, Mamadu Indjai, se pôs em fuga. Nós ali emboscados, ajudados por outros não os detectamos.

Caíram numa emboscada, muitos quilómetros depois na estrada de Mansambo para o Xitole, montada pelo 3.º Grupo da “nossa 2339”. Baixas confirmadas e ferimentos graves no Mamadu Indjai.

Regressamos, ainda nesse dia a Mansambo com passagem e, nesse caso, talvez tenhamos pernoitado em Bambadinca.

- Em 24 de Agosto estávamos a fazer parte das tropas que faziam a primeira Operação Pato Rufia. Guiava as NT um elemento do Paigc, aprisionado aquando da destruição do acampamento do Mamadu Indjai.
Borregou a operação e regressamos.

Foi feita a versão dois da Pato Rufia e já não participamos.

Dias depois, já não o esperava, fomos para Afiá e Candamã. Seria uma estadia de um mês, com vinte meses de Comissão. O In desta vez não atacou.

Entre as breves notas e os “flashes” da memória fica muito por relatar.
Digam lá, mesmo assim, se não era divertido fazer tanta viagem, ver e conviver com tanta e variada gente, ter tanto desconforto e algum conforto.
Boa e saudável vida.

Que mais desejaria um jovem de vinte e quatro anos (quase a fazer vinte e cinco), acompanhado de outros, a maioria mais novos, alguns já casados e pais de filhos?

Era agradável?

Se pensar, com a mente a regredir para esse tempo, nem sei ao certo.
Hoje não sei ou, melhor, não quero saber. Prefiro assim.

Regressamos um dia ao nosso País. Diferentes, como que vindos de um mundo irreal… ou teríamos desembarcado num mundo, esse sim, irreal…?

Ninguém me ou nos perguntou. Ninguém estava interessado. Ninguém, ao menos nos interrogou…

- Quem és tu (Romeiro)? Ou sois vós…

- Ninguém… responderia ou responderíamos…

(frase, adulterada, do Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett)
____________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 4 de Julho de 2011 > Guiné 63/74 - P8503: Os nossos regressos (25): Tempo de partida, há tanto tempo... tanto (Torcato Mendonça)

Vd. último poste da série de 11 de Março de 2011 > Guiné 63/74 - P7927: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (27): O absurdo do monólogo a dois

8 comentários:

Fernando Gouveia disse...

Torcato Mendonça:

Com que então estiveste em Madina Xaquili? Ou nunca tinhas dito ou eu nunca me apercebi disso. Lamento que para ti não tenha sido agradável a estadia lá. Para mim foi o que já deves saber, através dos meus escritos. Dizes que estavas lá em 22/Julho/69. E no dia 24/Julho, que penso que foi o dia do 1º ataque, estavas lá? se sim, então gostava de saber mais algumas coisas. Fico a aguardar que digas se realmente estavas lá nesse dia.

Um abraço.
Fernando Gouveia

Luís Dias disse...

Camarigo Torcato Mendonça

Excelente relato, feito com a rapidez com que se moviam ou eram movidos de um lado para o outro. Uma automatização humana feita a contra gosto, mas que naquela realidade imperava. "Passeaste" por zonas onde eu iria andar em 1972 e 1973. (Galomaro e Mansambo). Gostei imenso.
Um abraço
Luís Dias

Luís Graça disse...

Vd. também o poste:

7 de Setembro de 2010
Guiné 63/74 - P6948: A minha CCAÇ 12 (6): Agosto de 1969: As desventuras de Malan Mané e de Mamadu Indjai nas matas do Rio Biesse... (Luís Graça)

http://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2010/09/guine-6374-p6948-minha-ccac-12-6-agosto.html

Vários de nós, que escrevem em (ou lêem este blogue) andaram por estes sítios, na mesma altura, nas mesmas operações, desconhecendo-se uns aos outros... Também por isso este blogue tem sido lugar de (re)encontro(s)...


Vd. também:

8 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P6953: Estórias avulsas (94): A captura do incaracterístico guerrilheiro Malan Mané, no decurso da Op Nada Consta (Salvador Nogueira)

http://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2010/09/guine-6374-p6953-estorias-avulsas-94.html


PS - Meu querido amigo e camarada Torcato: quando me dás o prazer de ir ao Fundão ao lançamento do "teu" livro ? Estou com saudades da A23...

Luís Graça disse...

Vd. também o poste:

7 de Setembro de 2010
Guiné 63/74 - P6948: A minha CCAÇ 12 (6): Agosto de 1969: As desventuras de Malan Mané e de Mamadu Indjai nas matas do Rio Biesse... (Luís Graça)

http://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2010/09/guine-6374-p6948-minha-ccac-12-6-agosto.html

Vários de nós, que escrevem em (ou lêem) este blogue, andaram por estes sítios (subsectores de Mansambo e Galomaro), na mesma altura, nas mesmas operações, desconhecendo-se uns aos outros...
Também por isso este blogue tem sido um lugar de (re)encontro(s)...

Vd. também:

8 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P6953: Estórias avulsas (94): A captura do incaracterístico guerrilheiro Malan Mané, no decurso da Op Nada Consta (Salvador Nogueira)

http://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2010/09/guine-6374-p6953-estorias-avulsas-94.html


PS - Meu querido amigo e camarada Torcato: quando me dás o prazer de ir ao Fundão ao lançamento do "teu" livro ? Estou com saudades da A23... E sobretudo da vossa afabilidade, tua e da Ana. Um xicoração apertado.

Juvenal Amado disse...

Caro Torcato

Para mim que andei também por algumas das paragens que tu relatas neste texto bem como noutros, estes teus escritos são duplamente interessantes. Os nomes são os mesmos mas a «paisagem» no que diz respeito à importância dos lugares, muda como se tempestades de areia de tempos a tempos alterassem o ambiente circundante.
Nota-se como a guerra foi alterando a importância estratégica de muitos dos lugares. Nova Cansamba penso que será o mesmo local do meu tempo. Ficou lá um pelotão do Saltinho junto com um pelotão do 2912 mais milícias. Foi atacada duas ou três noites depois de chegarmos a Galomaro quando eu estava no posto avançado do lado da bolanha.
De notar como o sector operacional na zona de Galomaro a partir de final de 1972, se tornou mais parecido com o do teu tempo, com operações e envolvimento dos para quedistas nas mesmas.
Embora nós bem as companhias operacionais todas as noites sai-se-mos para o mato em emboscadas, a zona foi-se deteriorante progressivamente.

Conta mais e um abraço

Torcato Mendonca disse...

Resposta de dois em um.Ou seja, Caros Fernando Nogueira (1) e Luís Graça(2)

1-Estive, mais do que uma vez em Madina. Vagueava por ali. Depois do abandono de parte do Boé, assunto a ser tratado um dia,(talvez não)aquela zona ficou "aberta". A 24 de Julho quem lá devia estar era a CCAÇ 12 do Luís Graça. Eu saí e eles entraram. Avisei que era local para ter cuidados e não dar folgas. Tinha muito tempo de Guiné e boa gente comigo a informar e combater.
Se leres os links que o LG anota nos comentários talvez encontres. Em qualquer caso sempre pronto a satisfazer a tua curiosidade, desde que saiba claro. Estavas junto do meu Comandante máximo, no local. Era bom "pessoal"....

2- Caríssimo Luís. fiz filhos, plantei árvores (parece que sim) mas Livro não. para se escrever um livro devem ler-se umas dezenas , centenas, de metros de lombadas ( o conteúdo) claro...eu nem 1/4 disso...além disso o que escrevi aqiu está no blogue. Onde? Não sei.
Abraço-te amigo e nem sei como me fizeste falar da guerra...terminou ...dizia eu...

Abraço ao Luis Dias i Juvenal Amado.
Terminou o tempo.
AB a Todos do T.

Joaquim Mexia Alves disse...

Meu camarigo Torcato

Brilhante relato!

Simples, conciso, preciso e sem floreados, (que eu tantas vezes utilizo para preencher a falta de meória).

E ao lermos percebemos as "inverdades" com que nos querem atingir com as "zonas libertadas", os domínios territoriais do paigc, etc., etc.

Enfim, "cala-te boca"!!!

Um grande abraço

Anónimo disse...

Camarigo Torcato;
Ontem (dia 8/7), li este teu post e não é que durante a noite passada me fartei de sonhar com os banhos do sistema do bidão , com as granadas de óbus, com os tiros e com a GUINÉ. Tal foi a forma como a tua escrita me impressionou.
Obrigado Torcato e um abraço do
Joaquim Sabido
Évora