terça-feira, 28 de junho de 2011

Guiné 63/74 - P8479: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (25): Abençoada chuva que tanto tardaste

1. Mensagem de José da Câmara* (ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73), com data de 27 de Junho de 2011:

Meu caro amigo Carlos Vinhal,
Junto encontrarás mais uma pequena história minha.
Na província da Guiné os fenómenos da natureza, as chuvas e as trovoadas, marcaram-nos pela sua beleza e pelo perigo que ofereciam.
Esta história acompanha o deflagrar de reacções humanas provocadas por uma tempestade na Mata dos Madeiros.

Esta noite de 26 para 27 de Junho, em 1971, marca o início da operação "Sempre Alerta" e, com ela, o fim da nossa presença na Mata dos Madeiros.
A história ficará para uma próxima visita às minhas memórias.

Para ti e para os nossos camaradas um abraço imenso,
José Câmara


Memórias e histórias minhas (25)

Abençoada chuva que tanto tardaste!

No início do mês de Junho de 1971 recebemos a confirmação de que o próximo destino da CCaç 3327 seria os chamados destacamentos de Teixeira Pinto.

O começo da monção ditaria a nossa libertação daquela prisão infernal chamada Mata dos Madeiros. Os muros, os arames farpados e as algemas que ali nos detinham eram as condições de sobrevivência e o trabalho insano a que continuávamos dotados.

Nesse ambiente horrífico, agora com mais uma luzinha de esperança a alumiar a nossa moral, as árvores, ajudadas pelas catanas afiadas dos capinadores, continuavam a saltar dos seus pedestais e, com gritos alucinantes, ajoelhavam-se no barro vermelho que lhes tinha servido de alimento. Os seus ramos, num último apego à vida, estremeciam de dor.

Finalmente inertes, os seus troncos até então fortes e viçosos abraçavam num último beijo o solo que lhes serviria de mortalha e em pó se tornariam. Jamais seriam testemunhas cúmplices e coniventes do flagelo humano que, tantas vezes, se desenrolaram debaixo das suas copas, a guerra. Para elas a guerra chegara ao fim.

Muito atrás do corte frontal das árvores, o rufar dos motores das potentes máquinas eram a garantia do prolongamento daquela língua negra, túrgida, rectilínea a penetrar a virgindade daquela mata imensa, sedenta das nossas vidas.

A nós, militares da CCaç 3327, estava reservado garantir a segurança possível ao estupro daquela linda donzela, a Mata dos Madeiros. Tudo feito em nome de um futuro desenvolvimento sócio e económico daquela zona, e de uma estratégia militar bem visível aos nossos olhos: cortar as linhas de penetração ao PAIGC entre as míticas matas da Caboiana e do Balenguerez , o acesso à rica zona de gado e arroz que ficava para além do rio Costa Pelundo e um acesso rápido e mais seguro entre Teixeira Pinto e Cacheu.

Naqueles troncos, agora voltados ao pó, víamos os nomes inscritos de muitas vidas ceifadas pela morte. Os bagos de suor e as lágrimas anónimas derramadas e a derramar por muitos outros mais continuaram a alimentar aquele rio caudaloso, a estrada Teixeira Pinto/Cacheu.
Tínhamos a consciência de que aquele lugar nunca mais seria como dantes.
Hoje, tal como ontem, o futuro da Guiné, uma Guiné Melhor, continua a passar por aquela estrada e por aquela mata.

A certeza da nossa ida para os Destacamentos de Teixeira Pinto trouxe um salto qualitativo na moral de todos os nossos militares que, em abono da verdade, nem era mau a partir da nossa saída de Bissau. Saímos à vontade para o mato, mas com cautelas redobradas. Tínhamos a certeza que o inimigo andava por perto. Cada um sentia-se responsável pelo grupo e este por cada um. A disciplina nos patrulhamentos e nas emboscadas tinha atingido níveis de grande qualidade. Pessoalmente, sentia-me orgulhoso dos meus comandados e tenho a certeza de que os meus camaradas sentiam o mesmo.

A CCAÇ 3327 era uma Companhia altamente disciplinada no mato. A salientar o homem do morteiro carregando um cinturão de granadas. (Foto cedida pelo 1.° Cabo J. M. Sousa, do 3.° GComb)

Éramos uma excelente Companhia, comandados por um homem bom e generoso.
Foi numa saída de 24 horas que aconteceu aquilo que tanto ansiávamos: a chegada das chuvas, melhor dizendo, a chegada de um dilúvio.

Foi assim que o descrevi à minha madrinha de guerra:

Mata dos Madeiros, 26 de Maio de 1971

“….. Os capinadores vão embora no próximo dia 29, sábado. Nós vamos ficar por aqui mais uns dias. Por bem ou por mal não sabemos quando, mas não estamos receosos.
As chuvas deram ontem o primeiro sinal. Foi pouca, mas o suficiente para regressarmos ao acampamento. Os relâmpagos e os trovões completavam o quadro. Estava escuro como o carvão e, como se costuma dizer, não se via um palmo à frente do nariz. A arma numa mão e a outra apegada ao camarada que ia na frente. Éramos 51 homens a andar dessa maneira. Eu vinha na frente. Foi uma experiência nova para mim, nada aconteceu e fui dar direitinho ao acampamento.”

Capinadores na Mata dos Madeiros preparam-se para regressar às suas casas.

A chegada dessas chuvas precipitou a necessidade dos civis em abandonar os trabalhos da estrada. Afinal, eles também eram gente e tinham que atender à sementeira do arroz, aproveitando as primeiras chuvas.

Hoje a essa distância no tempo não tenho a certeza dos capinadores terem regressado às suas moranças no referido dia 29 de Junho. Não fiz mais nenhuma referência sobre o assunto. Sei que saíram bastante mais cedo que os operadores das máquinas.

O nosso regresso ao acampamento tinha sido ordenado pelo Comandante da Companhia. Para ele não fazia sentido tamanho sacrifício da nossa parte. Entendeu que se nós não podíamos, naquelas circunstâncias, progredir ou emboscar em segurança e que o inimigo também teria as mesmas dificuldades.

Tudo teria seguido o seu curso normal se, no dia a seguir a essa noite de chuva, o Comandante da Companhia não tivesse ido ao quartel do Bachile, sede da CCaç 16 e onde estava instalada a secretaria da nossa Companhia. Também era ali que nos abastecíamos de água, cozíamos o nosso pão e recolhíamos o correio.

Secretariava a Companhia o 1.° Sargento João Augusto Fonseca, um senhor já com alguma idade. Era um homem pouco sociável, introvertido. Como qualidade indesmentível, era um profissional extremamente dedicado ao seu trabalho. Devido à minha maneira de ser dava-me razoavelmente bem com ele. Talvez por isso, o Cap. Rogério Alves várias vezes me pediu para o ajudar na secretaria. O que fazia com gosto.

Ao entrar na secretaria o Capitão Alves foi saudado pelo Sargento Fonseca com palavras mais ou menos assim:

- Com que então mandou regressar os grupos do mato a noite passada…!!!

Perante a surpresa desta saudação o Capitão Alves apercebeu-se que as notícias corriam depressa, na verdade depressa demais. Através das Transmissões, com inocência ou não, alguém dera conhecimento ao Sargento Fonseca. De algo que não lhe dizia respeito.

O Capitão Rogério Alves apercebendo-se de imediato que o 1.° Sarg Fonseca, pela sua atitude, podia representar um perigo para a disciplina institucional da Companhia, retorquiu:

- Senhor Primeiro Sargento Fonseca, agradeço que, de imediato, faça requerimento para ser transferido de Unidade.

Foi o que aconteceu. No mês de Novembro, o Sargento Fonseca era transferido para a Companhia Terminal, em Bissau.

José Câmara
____________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 13 de Junho de 2011 > Guiné 63/74 - P8413: O dia de Portugal em Taunton, MA (José da Câmara)

Vd. último poste da série de 11 de Junho de 2011 > Guiné 63/74 - P8402: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (24): Perdendo a plumagem

4 comentários:

Anónimo disse...

Caro José Câmara

Gostei deste teu texto escrito de forma poética na descrição do abate das árvores do “teu” Mato dos Madeiros, e na forma descritiva em noite de temporal, nas saídas para o mato onde era obrigatório segurar o cinto do camarada que nos precedia, não evitando mesmo assim alguns tombos, passei pelo mesmo sei o que significa.

Quanto ao teu Cmdt, apenas refiro que os “tinha no sítio”, e poucos agiriam assim, o meu seguramente nunca o faria, por isso era fraco.

Um grande abraço

Manuel Marinho

Anónimo disse...

Meu caro amigo

Esta tua extraordinária descrição fez-me retroceder 40 anos no tempo! Tenho ainda bem presente os medonhos temporais que vivi nas profundezas dessas matas, integrado na C. Caç 16.
Reconheço o valoroso trabalho da da C.Caç. 3327 na construção da estrada Teixeira Pinto - Cacheu, que eu já encontrei concluída em 1972, e que foi dinamizar toda aquela região.
Sobre o teu Comandante, Capitão Rogério Alves, meu conterrâneo, posso afirmar que, daquilo que conheço, é um excelente ser humano e um profissional exemplar, de que Faro se pode orgulhar.

Um grande abraço

B. Parreira

Luis Faria disse...

Amigo José da Camara

Esta tua estória,de que gostei,levou-me de novo a tropeções naquelas matas,ensopados em inesquecíveis e longas noites diluvianas, onde o dançar fantasmagórico da vegetação encenado sob a luz dos relampejos estonteantes , se me traduziam em espectáculo de respeito e de beleza tambem.

Ao ver a 1ª foto,reparei no 60. Os que usavamos tinha uma pequena base abaulada incorporada,de diâmetro um pouco maior que o do cano, que evitava enterrar-se nos dispáros em terreno macio.Eram óptimos e prácticos no transporte.

Um abraço
Luis Faria

Anónimo disse...

Caro José Câmara

Mais uma bela representação da tua arte para contares algumas passagens da tua "bela vida" naquelas paragens.

Poesia, já comentada, naquela descrição da desmatação, para desanuviar o que aquilo significava, não o abate propriamente das frondosas e vestutas árvores, mas dos perigos pessoais de quem tinha de velar pela segurança de tal tarefa.

Quanto ao acto do 1.º sargento, não compreendo bem aquela forma de se dirigir ao seu superior. Ficam-me muitas dúvidas quanto à sua pessoa...

Abraço

Jorge Picado