sexta-feira, 27 de maio de 2011

Guiné 63/74 - P8335: Notas de leitura (242): O Meu Testemunho, uma luta, um partido, dois países, por Aristides Pereira (6) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Maio de 2011:

Queridos amigos,
Se dúvidas subsistissem sobre a grande importância dos depoimentos dos entrevistados, terá ficado esclarecido, com estas recensões, como é complexo esperar que se publique nos próximos anos uma história do PAIGC, há inúmeros pontos de encontro sob a génese do movimento de emancipação, múltiplas são as interpretações de eventos sucessivos, há silêncios inabaláveis, registos desaguados em autênticos labirintos.
Posso imaginar o pesadelo do trabalho com que os historiadores se irão confrontar para atinar com uma linha interpretativa largamente consensual… serão trabalhos de Hércules.

Um abraço do
Mário


O testemunho de Aristides Pereira* (6):
Rafael Barbosa, Silvino da Luz, Vítor Robalo e Elisée Turpin

Beja Santos

Conclui-se hoje um ciclo de recensões em torno de um vasto acervo de entrevistas que acompanham o tomo monumental “O Meu Testemunho” de Aristides Pereira, Editorial Notícias, 2003. Não é de mais salientar que se recomenda a leitura do testemunho de Aristides Pereira mas o fundamental da obra, por paradoxal que pareça, reside em entrevistas da maior importância e no próprio apenso documental, como mais tarde se fará referência.

Rafael Barbosa é uma personalidade que cabe perfeitamente num romance de John Le Carré, tal a riqueza da sua complexidade. Amado e odiado ao extremo, aquele que foi presidente do Comité Central do PAIGC e o herói sem reservas dos primeiros e decisivos recrutamentos para a luta armada, Barbosa soube cultivar o mito, deixou na bruma e no labirinto dos equívocos uma gama de atitudes que podem constituir a grandeza e a miséria do combatente que viveu à beira do vulcão o emaranhado das dúvidas e das certezas.

A entrevista que concedeu a Leopoldo Amado em Maio de 1995 é aliciante. Fala com autoridade dos diferentes movimentos para a independência que antecederam o PAIGC (PAI), com todos os nomes. Descreve as circunstâncias em que foi criado o PAI, como ele igualmente foi fundador do MLG, como surgiram as desavenças entre os dois movimentos, como ele aderiu sem tibiezas ao PAI e se tornou no mais estrénuo activista e recrutador. Conta a sua prisão em 1962. Enuncia os nomes de todos aqueles que enviou para a luta. Quando lhe perguntam o número de pessoas que enviou, ele responde com simplicidade: “Quase toda a malta que saiu aqui de Bissau fui eu que a mandei. E mesmo depois que saí da segunda prisão – já depois do célebre discurso que provocou o meu afastamento do cargo de presidente do Comité Central – mandei mais de 50 ex-presos, de um total de 93 que foram postos em liberdade”.

A sua versão quanto aos motivos que foi afastado do altíssimo cargo que tinha no PAIGC é mirabolante: terá ingerido droga através da mancarra, ficou com a cabeça baralhada, foi aliciado a ler um discurso em que repudiava todo o seu passado político. E declara: “Perguntem ao Malam N´Djai, locutor de língua mandinga, ele assistiu a tudo. Eu, a metade do discurso, perdi o sentido. Foi obrigado a repetir a leitura… Mas não parei com a luta. Escrevi uma carta para Amílcar Cabral em que lhe dizia que estava disposto, no dia em que eu conseguisse sair da Guiné, a apresentar-me no tribunal militar para ser julgado, tive aquela falha. Ele escreveu-me uma carta, tenho-a no meu processo”.

Durante a entrevista, Barbosa revela-se indignado com o comportamento dos dirigentes do PAIGC para com ele. Diz não ter recebido nenhum dinheiro do Spínola, só materiais para a construção da sua casa que também não aceitou. Foi adepto da guerrilha urbana. Quando rebentaram bombas em Bissau, voltou a ser chamado à PIDE. Em todas as circunstâncias é peremptório, identifica-se sempre como militante do PAIGC. Especula sobre o que esteve por detrás da morte de Amílcar Cabral, não hesita na importância do conflito entre cabo-verdianos e guineenses e exonera qualquer responsabilidade pessoal no assassínio, mesmo quaisquer ligações com os executores do crime. É um documento espantoso, fica-se a perceber que o lutador não morreu no político esquecido e abandonado.

Silvino Manuel da Luz faz um depoimento de alto quilate. Descreve o seu percurso de iniciação na política, na ilha de S. Vicente, como desertou na Nigéria, ele que era oficial em Angola. Oferece-nos um quadro de grande valia sobre a preparação teórica dos quadros do PAIGC de extracção cabo-verdiana. O que salta à vista é a coerência das atitudes, a força das convicções, a luminosidade dos ideais. Silvino da Luz irá com Vitor Saúde Maria às conversações secretas que tiveram lugar em Londres em Março de 1974. Dá-nos um quadro do que era o PAIGC em finais de 1973, princípios de 1974: “Cabral já pensava numa aviação. Ele mandou gente para se formar na aviação. Esses jovens dos helicópteros e dos MIG na Guiné-Bissau saíram da escola piloto durante a luta armada. Cabral estava a pensar num tipo de aviões que foram utilizados na guerra do Biafra. Aviões pequenos, capazes de voar a baixa altitude e difíceis de detectar pelos radares (…) Com Cabral, fiz uma missão à Líbia pra expor ao presidente Kadhafi a nossa necessidade dos chamados red eye, tipo de foguete antiaéreo portátil, de fabrico ocidental”. Fala-se em hesitações sobre a participação dos cabo-verdianos na luta armada, não omite as tensões interétnicas e quanto às razões da morte de Cabral diz abertamente: “problemas de diversa natureza. O chamado fenómeno do cabo-verdiano na direcção da luta, o problema dos cabo-verdianos, algum cansaço devido a uma guerra prolongada, o trabalho da PIDE, etc. etc. (…) A acção subversiva dos portugueses é ligada ao cansaço com uma luta que não parecia ter fim. Alguns tiveram a miragem de um fim rápido que despertou um aparente ódio profundo ao cabo-verdiano e ao mestiço”. Como se sabe Silvino da Luz é hoje um dos políticos mais prestigiados da República da Guiné de Cabo Verde. Será de lamentar se este homem de elevada cultura e de grande humildade intelectual não deixar as suas memórias sobre a sua participação e visão da luta armada.

O rol de entrevistas culmina com dois entrevistados de vulto, Vitor Robalo e Elisée Turpin. Sobressaem nestas confissões dados excepcionais sobre o passado da luta, olhares sobre os primórdios da luta, estes dois velhos políticos aludem às mortandades praticadas nos anos 40, era governador da Guiné Vaz Monteiro, terei sido um tempo de grande prepotência e humilhações. Registam as acções de rebeldia desde os anos 50, as disparidades entre os grupos de libertação e o papel determinante de Amílcar Cabral. São testemunhos singelos, gente que não tem nada a perder e que se considera defraudada quanto à forma como se enviesou a actividade política do PAIGC. Confessa o leitor que estas três entrevistas são indispensáveis para centrar nos bastidores numa peça cujo desfecho ainda não está esclarecido.

O apenso documental é riquíssimo, comporta peças como os primeiros estatutos do PAIGC, a criação de um movimento de libertação da Guiné, os apontamentos datados de 17 de Janeiro de 1963, da autoria de Costa Pereira, chefe da delegação da PIDE em Bissau sobre a Guiné portuguesa e os territórios vizinhos, inclui igualmente cartas de Amílcar Cabral e na parte final temos o acervo das actas dos encontros ocorridos em Londres e Argel, a seguir ao 25 de Abril. Vale a pena dedicar alguma atenção a esta riqueza documental desde o início até ao termo da luta armada.
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Notas de CV:

(*) Vd. postes de:

20 de Abril de 2011 > Guiné 63/74 - P8141: Notas de leitura (230): O Meu Testemunho, uma luta, um partido, dois países, por Aristides Pereira (1) (Mário Beja Santos)

28 de Abril de 2011 > Guiné 63/74 - P8176: Notas de leitura (234): O Meu Testemunho, uma luta, um partido, dois países, por Aristides Pereira (2) (Mário Beja Santos)

3 de Maio de 2011 > Guiné 63/74 - P8209: Notas de leitura (235): O Meu Testemunho, uma luta, um partido, dois países, por Aristides Pereira (3) (Mário Beja Santos)

17 de Maio de 2011 > Guiné 63/74 - P8286: Notas de leitura (239): O Meu Testemunho, uma luta, um partido, dois países, por Aristides Pereira (4) (Mário Beja Santos)

20 de Maio de 2011 > Guiné 63/74 - P8304: Notas de leitura (240): O Meu Testemunho, uma luta, um partido, dois países, por Aristides Pereira (5) (Mário Beja Santos)

Vd. último poste da série de 24 de Maio de 2011 > Guiné 63/74 - P8318: Notas de leitura (241): Porque Perdemos a Guerra, de Manuel Pereira Crespo (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Anónimo disse...

Um reparo ao Beja Santos... ou aos editores. A foto ilustrativa da referencia feita a Silvino da Luz, nao corresponde a pessoa em causa... A foto e sim do ate ha bem pouco tempo presidente do parlamento caboverdiano, o jurista Aristides Lima, hoje candidato as eleicoes presidenciais de Setembro proximo !Lima foi igualmente secretario geral (presidente ?) do PAICV...Cabo Verde !

Nelson Herbert
USA