sábado, 23 de abril de 2011

Guiné 63/74 - P8157: Blogpoesia (146): Elegia para um paisano (Luís Graça)

Elegia para um paisano

por Luís Graça

 [ foto à esquerda, no "oásis de paz" de Contuboel, Centro de Instrução Militar, Junho de 1969]





(À memória de A…, meu  camarada
da CCAÇ 12, Guiné, 1969/71…
e dos demais camaradas, desconhecidos
que morreram,
de morte violenta,
já como paisanos,
por homicídio, por suicídio, por acidente)


Disseram-me que tinhas morrido,
Meu infortunado camarada,
Já muito depois do nosso regresso a casa.
Talvez nos finais dos anos 70
Do século passado,
Não posso precisar.
Morrido, lerpado,
Para usar o nosso vocabulário,
Bruto e feio.
Lerpado, assim,  sem mais nada,
Sem uma palavra,
Sem uma despedida,
Sem uma oração,
Talvez até sem  um ui nem um ai,
Sem um grito.
Sem aviso prévio,
Nem sequer um cheque-mate!
Morrido, de morte matada!
Morrido, como um cão.
De um tiro na nuca.
Como os cães que abatemos,
Um noite, em Bambadinca,
A Noite das Facas Longas,
Lembras-te?!

Disseram-me que tinhas sido encontrado,
Longe da nossa Guiné,
Dessa terra verde e vermelha que tu amavas,
Longe da tua Sinchã Mamadjai,
E da morança da tua bela Fatumatá,
De mama firme,
Que se escapulia para a tua morança,
Nas noites, de lua cheia,
Em que uivava a hiena…
Longe do tarrafo do Geba,
Do Mato Cão,
Dos Nhabijões,
Da Missão do Sono,
Da Ponte do Udunduma,
Da orla da bolanha,
Do poilão,
Do bagabaga…
Onde ?
Longe dos teus verdes anos,
Longe do arco-íris do teu céu de menino.  
Perto do teu Tejo,
Numa valeta da rua
Da tua cidade…
Ou de qualquer subúrbio triste e cinzento
De cidade nenhuma.


Que morte tão crua,
A ser verdade,
Oxalá fosse boato a notícia de fait-divers
Que alguém leu no jornal.
A notícia de uma morte
Em que eu não te (re)vejo.
Oxalá, meu camarada,
Tenhas simplesmente desaparecido,
Emigrado,
Sido sequestrado,
Mudado de código postal
Ou até de identidade,
Sempre era menos mal.
E poupavas-me o teu elogio fúnebre,
Que é a pior das missões
Que se pode pedir a um camarada de armas.
Disseram-me
(Mas eu não quis crer)
Que tinhas sido morto,
Sem honra nem glória,
Depois de cumprido o teu dever
Para com a Pátria
Que te foi madastra,
Cruel Jocasta.
Já depois da última nau da Índia ter naufragado
No mar da Palha da tua infância!
Já muito depois 
Dos últimos guerreiros do império,
Terem feito o espólio de todas as guerras
E o relatório da sua errância
Desde Quinhentos.

No século passado, meu amigo!...
No século passado, meu irmão!...
Lembro-me do velho Uíge,
Da velha Companhia Colonial
De Navegação,
Nos ter devolvido a terra,
À nossa cidade e capital,
Nas praias de Alcântara,
No cais da saudade,
No cais de pedra
Donde partíramos,
Quase às escondidas,
Vindos do comboio nocturno e soturno
De Santa Margarida.


Não sei quem te esperava
Nesse dia 22 de Março de 1971,
Mas seguramente os mesmos entes queridos
Que me esperavam a mim,
A todos nós,
Que ali, no cais, passávamos à condição
De paisanos.
Vestidas as calças à boca de sino,
E as camisas às florinhas,
Regressávamos ao doce lar,
Com as bugigangas compradas no Taufik Saad
ou na Casa Gouveia,
E à rotina das nossas vidas,
Insignificantes.
E a uma outra guerra,
A da lufa lufa do quotidiano.
Tu tinhas um lar,
Todos tínhamos um lar,
Uma família, alguns um emprego,
Muitos uma namorada ou noiva à sua espera…

Mas eu o que sabia de ti ?
O que sabíamos uns dos outros ?
E dos nossos sonhos ?
Muito pouco, afinal…
Casaste ? 
Tiveste filhos ?
Não tiveste tempo de ser bom filho,
Nem bom pai,
Muito muito menos avô…

Nunca mais voltei a rever-te,
Em todos estes anos,
Em que tantas coisas aconteceram,
Para o pior e o melhor,
Na nossa Pátria,
Uma palavra, repara, 
Que saiu do léxico dos tugas,
E já não se usa mais…

A imagem mais forte, não a última,
Que retenho de ti,
É a do menino e moço
Que saiu, fardado, garboso,
Da casa de seu pai e sua mãe…
É a do puto reguila,
Quiçá rebelde,
Temperamental,
Belicoso mas generoso,
Da margem sul do Tejo.
Com jeito para o desenfianço,
O desenrascanço,
Que a vida era dura para os homens
Da CCAÇ 12,
Brancos e pretos.

Retenho ainda  a imagem
Do nosso patético duelo
No bar de sargentos de Bambadinca,
Tendo por arma, letal,
Uma garrafa de VAT 69
(Ou era Jonhnie Walker ?
Ou White Horse,
a tal do cavalinho branco ?
Já não me lembro do rótulo,
Sei apenas que era scotch,
E do bom,
Daquele que vinha
From Scotland
For the Portuguese Armed Forces
With love!)…

Um duelo de morte,
Gole a gole,
Até ao gole final,
Em menos de 15 minutos!...
Com árbitro e tudo,
Apostas a dinheiro,
Mirones e claques de apoio,
Como mandavam as regras
Dos apanhados do clima de Bambadinca!

Apanhados do clima, dizes bem,
Exaustos,
Usados e abusados,
Filhos de um Sísifo menor,
Condenados ao mais insano dos suplícios,
Uma guerra a que chamavam
De contra-guerrilha,
Uma guerra do gato e do rato…
Não, não, era a roleta russa,
Ninguém tinha pistolas de tambor,
Era o fado lusitano,
Era o fado da Guiné,
Meu camarada, meu amigo, meu irmão,
Era a nossa triste condição,
Era a nossa quiçá estúpida, mas viril, maneira
De matar… o tempo,
O  tempo em tempo de guerra,
O tempo de espera entre uma e outra operação.
O tempo de espera que podia ser
Entre a vida e a morte.
Era a insanidade mental,
Era a raiva, traiçoeira,
Era a lucidez da loucura a tomar conta
De nós….

Foi esse fado que te matou,
Essa maldita, tóxica, adrenalina,
Que trouxeste do Geba e do Corubal.
E que te impedia de parar para pensar,
Simplesmente parar,
Simplesmente pensar,
Simplesmente viver,
Simplesmente respirar
À tona de água.
Meu irmão.
Meu camarada.
Meu amigo.
Foi o sobressalto da vida.
Foi a vida em sobressalto.
Foi a vida em saldo.
Foi a alma em dor.
Foi isso que te matou.
No pós-guerra.
Na guerra dos paisanos.
Foi isso, foi a Guiné que te matou.
Ao retardador.
Ou não ?!

Sexta-feira Santa, Candoz, Paredes de Viadores, Marco de Canaveses, 22/4/2011

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Nota do editor:

Último poste da série:

18 de Abril de 2011 > Guiné 63/74 - P8125: Blogpoesia (145): Falando de poesia, de José Régio e do nosso Blogue (Felismina Costa)

4 comentários:

Juvenal Amado disse...

Exaustos,
Usados e abusados
Um duelo de morte,
Gole a gole,

Não tiveste tempo de ser bom filho,
Nem bom pai,
Muito menos avô…

Foi o sobressalto da vida.
Foi a vida em sobressalto.
Foi a vida em saldo.
Foi a alma em dor.
Foi isso que te matou.

No pós-guerra.
Na guerra dos paisanos.
Foi isso, foi a Guiné que te matou.
Ao retardador.
Foi esse fado que te matou.

Neste poema quase épico aos anti- heróis, que carregaram pela vida fora o sobressalto, que não pararam a tempo com os tais duelos gole a gole garrafa a garrafa, que nunca mais encontraram o seu lugar.
Morreram muito antes de estarem fisicamente mortos mas não constam nas lista de baixas.
O passado corroeu-os e eles desfizeram-se em pó perante a inutilidade da sua dádiva e em troca receberam nada.
Por eles e por nós obrigado Luís Graça

Torcato Mendonca disse...

Gosto

A Net...não dá!
Este teu poema é para guardar, mas só para maio...que é o regresso.

Lá por ser marroquino não merece estar "degredado" á "esquerda"... isso tem nome feio...brinco, mas é chato escrever e não ir.

Abraço do T.

Anónimo disse...

Caramba Luís!

Um hino assim, tão verdadeiro, sentido e sublime, à flor da Amizade imperecível,eterna, que a nossa mesma fortuna fez florir por aquelas bolanhas fora, lamacentas, da Guiné, só podia brotar duma pena d'ouro como a tua... Um sentido e comovente Requiem aeternum, até às lágrimas, a pedir a inspiração dum Mozart ou dum Verdi!...
Não sei dizer-te mais nada.
Obrigado
Joaquim

Hélder Valério disse...

Caro camarigo Luís

Logo hoje, em dia de Páscoa, neste simbolismo da passagem da morte à vida, ao renascimento, resolves prestar esta sentida homenagem...

Um bocado 'forte'.
Como refere o Juvenal, um poema épico aos anti-heróis, afinal um complemento e consequência quase inevitável das vivências das nossas guerras.

Tem um bocado o 'sabor do neo-realismo', e é também um grito de revolta. E esperança, há?

Acreditamos que sim. Tem de haver!

Obrigado, Luís.
Abraço
Hélder S.