quarta-feira, 9 de março de 2011

Guiné 63/74 - P7915: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (79): Na Kontra Ka Kontra: 43.º episódio




1. Quadragésimo terceiro episódio da estória Na Kontra Ka Kontra, de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), enviado em mensagem do dia 8 de Março de 2011:


NA KONTRA
KA KONTRA


43º EPISÓDIO

Em Lisboa, o ainda Alferes Magalhães, desembarca por volta das nove da manhã e como era de rendição individual, toma um táxi, leva as malas à Estação de Santa Apolónia onde as deposita e sempre no mesmo táxi vai aos Adidos e à sua Unidade de Mobilização, o RAL 1, tratar da sua desmobilização. Chega novamente a Santa Apolónia, paga a corrida de toda a manhã com uma nota de cinquenta escudos e ainda tem tempo para almoçar um óptimo coelho de cebolada, num restaurante ao lado da estação.

Porque do barco, por questões de segurança, não se podiam mandar telegramas, apenas receber, o agora simplesmente Magalhães Faria não pode avisar ninguém da sua chegada, pelo que aparece no Porto de surpresa.

Junho de 1970. Com a mulher colocada no Liceu Alexandre Herculano no Porto, Magalhães Faria tenta reatar o curso de Arquitectura que interrompera. Devido às convulsões académicas existentes nesta altura na Escola de Belas Artes, onde se tenta implementar um novo processo de ensino, a chamada “Experiência”, sente-se desfasado, sem os antigos colegas, e acaba por desistir. Para essa tomada de posição muito contribui o facto de o sogro ser empresário e lhe “acenar” com um emprego estável na sua empresa.

Um belo dia, o agora Senhor Magalhães Faria, ao inspeccionar um armazém de matéria prima da empresa, onde se encontravam vários empregados a trabalhar ouve nas suas costas a alguma distância dois C… F…

Magalhães Faria como que ficou paralisado. Aquelas expressões com aquela voz só podiam ter vindo de uma pessoa, o Dionildo. Não se voltou de imediato pois custava-lhe a acreditar na aparição daquele que passaria a ser conhecido pelo morto-vivo.

Neste espectacular NA KONTRA o Dionildo conta a sua história:

Depois de o Alferes ter ido embora de Madina Xaquili e devido à pressão do PAIGC, passou a andar aterrorizado. Logo no primeiro ataque à tabanca, conhecendo o caminho para Bambadinca, resolve desertar. Contorna Galomaro de forma a não ser visto e em Bambadinca, apanha boleia de uma coluna que vai para o Xime com pessoal e material para embarcar numa LDG, com destino a Bissau. Numa situação como esta não era costume os próprios camaradas perguntarem pelas Guias de Marcha. Chegado a Bissau, junto do Cais da Amura onde as lanchas costumavam atracar, logo verificou que na Ponte Cais estava também o navio Uíge, de transporte de tropas. Soube que o barco ia partir à noite e pensou embarcar. Se bem o pensou melhor o fez. Apesar de ser o único militar a bordo vestido de camuflado, ninguém lhe perguntou o que quer que fosse, também pelo facto de irem no barco muitos militares de rendição individual. Ele seria mais um. Passada uma semana, desembarcava em Lisboa. Veste-se à civil com roupa que levava num pequeno saco e ruma ao Porto apresentando-se ao trabalho na empresa onde tinha trabalhado antes de ir para a tropa, a empresa do agora sogro do nosso Magalhães Faria. Passados precisamente quarenta dias aparece-lhe na empresa a Polícia Militar que rapidamente o mete num avião rumo a Bissau, agora com Guias de Marcha para a sua antiga Companhia, sediada em Madina Xaquili. Como perspectiva tinha outra comissão, a começar agora. Com o contínuo agravar da situação, passados poucos dias é planeada uma operação de alto risco, com a intervenção de um Pelotão de Comandos helitransportados e, para a qual, se pediram voluntários. O Dionildo viu ali uma possibilidade de limpar a sua “folha militar” e ofereceu-se. Tudo correu muito melhor do que esperava e até veio a ter um louvor. Retiraram-lhe o castigo e regressou à Metrópole com a sua Companhia. E o Dionildo termina dizendo:

- E aqui estou na empresa onde sempre trabalhei Senhor Faria.

- Magalhães Faria, Faria há muitos.

Fim deste episódio
Até ao próximo camaradas.
(Fernando Gouveia)
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 8 de Março de 2011 > Guiné 63/74 - P7910: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (78): Na Kontra Ka Kontra: 42.º episódio

3 comentários:

Luís Graça disse...

Fernando, grande guionista: Deliciosa, audaciosa, criativa... mas, à partida, "pouco verosímil" essa tua "saída airosa" para o desaparecimento de cena do Dionildo...

Claro que o escritor tem sempre n graus de liberdade, e a ficção não tem que se deixar "aprisionar" pela realidade...

Gajos levados para a Guiné "sob prisão" e até com "algemas" (a ferros, dizia-se no passado), lembro-me de ter visto um ou mais (ou imaginado ?) no "Niassa", aquando da minha viagem de cruzeiro Lisboa-Bissau, em Maio de 1968... O Fernandinho, soldado básico, da minha companhia (CCAÇ 2590/CCAÇ 12), foi um dos casos... (Que é feito de ti, camarada ?).

Agora não dei conta (nem poderia ter dado...) de nenhum "clandestino" a bordo, no regresso a casa...

É bem possível, todavia, que tal tenha acontecido na nossa "histórica trágico-marítima", em geral, e na durante a guerra colonial (ou do Ultramar, como quiserem)... Sempre houve, nos nossos barcos (e até navios) "clandestinos a bordo"...

De qualquer modo, parabéns, Fernando, pelo teu folhetim... Oxalá, haja um produtor de cinema ou de televisão que se apaixone pelo teu guião, tal como o protagonista, o Alferes Magalhães (homem da Naçom) se apaixonou pela fula Asmau...

Fernando Gouveia disse...

Caro Luis:

Podes crer que estava à espera duma reacção de um qualquer leitor, como a que tu manifestas. Tenho porém duas coisas a dizer-te:

Uma é que digo no princípio da estória, no Preâmbulo, que 98% daquilo que conto é verdade e aconteceu mesmo. Só realmente duas passagens é que são inventadas, como eu disse, para compor a estória e o que aconteceu ao verdadeiro “Dionildo” passou-se mesmo.

A outra coisa é que, se tu, ou qualquer outro camarada quiserem tirar a limpo a veracidade desta passagem é só irem um dia almoçar à “Tabanca” dos Melros em Gondomar e encontram lá o verdadeiro “Dionildo”, que por acaso tem um nome parecido. Foi lá que ele próprio me contou a sua odisseia.

Um grande abraço.
Fernando Gouveia

Luís Graça disse...

Fantástico!... A realidade às vezes (ou muitas vezes...) ultrapassa a ficção... Temos que trazer o "Dionildo" para o blogue...