segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Guiné 63/74 - P7699: Notas de leitura (196): Lobo... dos Mares, de Joaquim Cortes (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Janeiro de 2011:

Queridos amigos,
Felizmente que há confrades que ouvem as minhas súplicas, quando aqui escrevo a rogar que me emprestem edições de autor ou outras para que o blogue se possa orgulhar de ter o maior manancial de informações sobre obras publicadas referentes à guerra da Guiné.
Há páginas neste livrinho de uma grande crueza, diria que não poderemos no futuro prescindir de descrições tao brutais sobre as técnicas e a linguagem que se usava na instrução. O que me sensibilizou mais foi este acto de amizade, alguém que não esqueceu o Lobo dos Mares.

Um abraço do
Mário


Lobo dos mares:
Uma história comovente da amizade do Joaquim com o Manuel


Beja Santos

“Lobo… dos Mares” é uma edição de autor assinada por Joaquim Cortes e dedicada ao seu amigo e conterrâneo Manuel Sebastião Guerreiro, um fuzileiro que morreu num acidente no rio Cacine. O Manuel Sebastião Guerreiro desaparecera e a família continuava a ignorar as circunstâncias da sua morte. Para Joaquim Cortes, este livro é uma obra romanceada, onde parte da narrativa é baseada em factos reais mas em que factos, pessoas e situações são apenas ficção. Lê-se o texto de uma ponta à outra e pergunta-se: Será mesmo ficção?

É uma narrativa singela o que temos em mãos: o nascimento em Algodôr, concelho de Mértola, do Manuel, em 1947, ambiente mais humilde não se pode imaginar, com parteira improvisada, cama de ferro e colchão de palha. Os pais são António e Adelaide, existe já um irmão pequenito, de nome José. À espreita de melhores oportunidades, António e família deixam O monte e vão viver na Venda dos Salgueiros. Manuel tem mais 6 irmãos. A vida é tão difícil que em 1965, Manuel, pela mão do seu amigo Joaquim deixa o monte onde vive no Alentejo e vai viver em Cascais, o seu trabalho é o de empregado de balcão. Resta uma fotografia dos adolescentes em Cascais, na loja do Sr. Esteves. É emprego de pouca dura, Manuel vai juntar-se à família que entretanto emigrara para o Samouco. O autor dá-nos um retrato da vida nesta localidade do seu amigo, revela-nos o seu modo de vida e as suas ambições. Aos 21 anos, o Manuel alista-se como voluntário no corpo de fuzileiros, assenta praça em Vale de Zebro em 1968, frequenta depois a Escola de Fuzileiros, irá fazer parte da Companhia de Fuzileiros n.º 10. Em Fevereiro de 1969 parte para a Guiné, ofereceu-se para substituir um camarada que aguardava o nascimento do filho.

A descrição deste período de instrução é um texto inesquecível. Toda a brutalidade e todo o jargão mais alvar da caserna aparecem explícitos, do tipo: “Não há barulhos, seus filhos de uma punheta mal batida. Estão na Escola de Fuzileiros e não na escola primária lá da aldeia. Lá é que os meninos podem ladrar à vontade!”. Mais adiante: “Estás a olhar para mim? Não gosto de cú com cabelo, ficam já a saber! Quando se está em sentido, a cabeça está bem levantada e olha-se para a frente, minhas Amélias! Para que não esqueçam o que vos disse, ficam nessa posição até que eu vá cagar!” Estes são alguns dos mimos do sargento Rato que imprecando, com fúria e autoridade: “À minha ordem, vai toda a gente a correr até àquela lagoa lá ao fundo, cumprindo as minhas instruções. Partiu! Deitou! Rastejou! Continua toda a gente a rastejar! A arma não pode tocar no chão! Não tratem mal a vossa namorada, seus copos de leite!”. São descrições cruas, é impossível fantasiar o que se escreve, o Joaquim ou ouviu do Manuel estes episódios ou deu com o lombo em Vale de Zebro, não há imaginação que consiga captar uma linguagem tão violenta com aquela que era possível usar-se nestes centros de instrução.

Temos depois a partida para a Guiné, o desespero dos pais que já tinham o José em Moçambique. Segue-se a transcrição de alguns aerogramas, fica-se a saber que andou em instrução no Geba e no Corubal e que depois foi colocado em Gadamael e Cacine, a partir de Junho de 1969. É no batelão “Marito” que vai ocorrer a tragédia em que morre Manuel Sebastião Guerreiro e outros fuzileiros. A lancha “Alfange” trazia material de guerra para a região, o batelão aproxima-se da Alfange e começa a operação descarregamento. O Manuel entra num escaler, com mais outros quatro fuzileiros, é nisto que sopra um vento forte, aparecem grandes vagas, o bote atraca ao Alfange e a seguir regressa ao batelão. Mas uma grande vaga faz virar o bote, ninguém leva colete de salvação, está consumada a tragédia, só irá aparecer mais tarde um cadáver. No livrinho juntam-se os diferentes documentos oficiais, a correspondência trocada, as diligências efectuadas pelo autor para apurar a clara certidão da verdade, onde e como desaparecera esse Manuel que era conhecido entre os grumetes fuzileiros como o Lobo dos Mares. Insiste-se que é uma história singela, contada com a ternura de quem foi espoliado de uma amizade e para seu consolo investiga um trágico desaparecimento até chegar à versão plausível. É tocante, que o Lobo dos Mares fique a fazer parte do nosso acervo de testemunhos genuínos e fraternos.
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 30 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7696: Notas de leitura (195): A Guerra de África, por José Freire Antunes (Mário Beja Santos)

9 comentários:

Anónimo disse...

É evidente que não li apenas porque não sei onde está e até hoje nem sequer sabia da sua existência.
Graças ao magnífico e plural trabalho do Beja Santos, "ouvi" agora mesmo falar do livro e da tragédia.
Ando a engendrar uma série de relatos para o blogue a que dei o nome genérico de "De Mejo a Teixeira Pinto", jornada com várias etapas mesmo no centro da operação da abertura de Gadembel, com todas as "chatices" que pode adivinhar que não viveu.
Há um episódio, levemente abordado em "lugares de Passagem" e que quero desenvolver, que tem a ver com essas vagas gigantescas que me apanharam num batelão entre Bolama e Bissau e de que nunca tive explicação credível e que me ajude no entendimento e, seguramente, numa abordagem escrita.
Se alguém me souber falar disso, agradeço porque às vezes parece-me que ainda me chega o medo porque passámos no tamanho daquele mar.
Abraços
José Brás

DFE 7 disse...

O "Corpo de Fuzileiros nº 10" nunca existiu. Trata-se, isso sim, da Companhia de Fuzileiros nº10 (CF 10), unidade de Fuzileiros Navais, em serviço na Guiné entre 1969 e 1971. Esta unidade de Fuzileiros cumpriu ainda comissões de serviço em Angola (1966/68) e Moçambique (1971/73 e 1973/75). A liquidação das unidades de Fuzileiros (em particular os DFE) ocorreu apenas após o fim da guerra.
Para aclarar alguns erros e imprecisões registadas quanto a referências a Fuzileiros neste blogue, deixo algumas referências sobre a distinção entre Companhias de Fuzileiros/Fuzileiros Navais e Destacamentos de Fuzileiros Especiais/Fuzileiros Especiais. Começando pelas Companhias de Fuzileiros (como a que integrava o Grumete Manuel Sebastião Guerreiro), estas unidades tratavam da segurança de instalações navais, em períodos de serviço interno ou externo (respectivamente, nas INAB ou, por vezes, na BaPat de Ganturé) e serviços de escolta em rios (missão muito arriscada na Guiné), ao nível de esquadra, fazendo ainda rondas de vigilância de militares em licença. Apoiavam, ainda, os desembarques de Fuzileiros Especiais.
Os Fuzileiros Navais recebiam apenas a Instrução Técnica Elementar (ITE, de 10 semanas), por conveniência de serviço e/ou por não serem dados como aptos para o curso de Fuzileiros Especiais (17 semanas), na qual era formado um Fuzileiro Especial; estes integrariam os Destacamentos de Fuzileiros Especiais (DFE), sendo apenas a estes que era imposta a boina de Fuzileiro Especial.
Quanto aos Destacamentos de Fuzileiros Especiais, estas unidades de Fuzileiros é que levavam a cabo toda a parte verdadeiramente operacional do esforço dos Fuzileiros na guerra: assaltos, patrulhamento ofensivo, operações conjuntas com outras forças especiais e operações anfíbias com variados objectivos. No caso da Guiné, levantaram-se três Destacamentos de Fuzileiros Especiais Africanos: DFE 21, 22 e 23, pese embora só os dois primeiros terem tido actividade operacional. A título de exemplo, foram os Destacamentos que estiveram nas Op. Tridente, Touro e Mar Verde, entre incontáveis outras.
No que diz respeito a efectivos, as CF e os DFE eram compostos por 140 e 75/80 efectivos, respectivamente; as CF foram divididas em pelotões e secções e os DFE em Grupos de Assalto e secções. Houve ainda variações nas composições das secções: esquadras e equipas. Ambos os modelos (DFE e CF) tinham módulos de comando e apoio.
Aos Fuzileiros Especiais era possível integrar uma CF (como ocorreu), noutras comissões de serviço para além daquela que cumpriram nos DFE; o mesmo não se pode dizer dos militares FZ.
Por fim, é de notar que ainda que não fossem as unidades talhadas para operações ofensivas, os Fuzileiros Navais participaram em acções deste tipo, isoladamente ou em apoio a Destacamentos. Tal verificou-se em Angola, sobretudo a Norte, nos postos e destacamentos da Marinha por lá situados.
As emboscadas sofridas por Fuzileiros em patrulha de botes eram das mais complicadas de que se poderia ser alvo, por razões óbvias, facto que raramente é mencionado na "catrefada" de obras historiográficas que se publicaram sobre a guerra do Ultramar. Crê-se que por ignorância dos autores e/ou por certa sobranceria, sobretudo se estes forem oriundos do Exército, que tantas vezes prejudicou a actuação da Briosa e das unidades de Fuzileiros, porque os seus militares não entendiam factores básicos para qualquer militar da Marinha, como o nível das marés impossibilitar desembarques e reembarques.


Deste modo: CF - Companhia de Fuzileiros (FZ - Fuzileiros Navais) =/= DFE - Destacamento de Fuzileiros Especiais (FZE - Fuzileiros Especiais).


Agradece-se, portanto, a rectificação de "Corpo de Fuzileiros nº 10" para Companhia de Fuzileiros nº 10.



Paz à alma do Grumete Manuel Sebastião Guerreiro e de todos os Fuzileiros que tombaram ao serviço da Pátria.

DFE 7 disse...

"(...) tragédia em que morre Manuel Sebastião Guerreiro e outros fuzileiros (...)"


Já agora, nesta tragédia (ocorrida a 23JUL69), o único Fuzileiro falecido foi mesmo o 2Gr Manuel Sebastião Guerreiro. O corpo não foi encontrado e o óbito foi classificado como "Acidente em Combate".

Carlos Vinhal disse...

Se o camarada DFE 7 se identificasse devidamente, teríamos muito gosto em fazer do seu comentário um poste, porque temos poucos camaradas da nossa briosa Marinha de Guerra a tomar a palavra no nosso Blogue.
À sua consideração.
Um abraço do co-editor
Carlos Vinhal

DFE 7 disse...

Correcção: onde se lê anteriormente "acidente em combate", deve ler-se "Acidente em Serviço".

DFE 7 disse...

Agradeço o convite, caro Carlos Vinhal, mas por razões que já mencionei antes, não poderei fazer parte da "guarnição" do blogue.


Grato pelo convite,


DFE 7

Anónimo disse...

Meu amigo Carlos Vinhal,
O comentário do DFE 7 é excelente, elucidativo, educativo, correcto.
Ninguém ficará ofendido, julgo, se chamares a ti a responsabilidade da sua publicação.
Um abraço amigo,
José Câmara

Anónimo disse...

De absoluto acordo com o José Câmara. Cada vez me convenço mais que "aprender não ocupa lugar", como muito bem diz o nosso povo.
Abraço,
Carlos Cordeiro

Henrique disse...

Havia de facto na altura uma grande falta de informação sobre a organização militar relacionada com os FUZILEIROS. No meu caso particular, tenho o prazer de privar com muitos indivíduos que serviram noutros ramos das forças Armadas e é bem claro em quase todos eles um total desconhecimento, que tipo de FUZILEIROS constituíam as Companhias e os Destacamentos respectivamente. O esclarecimento do "DFE7" é correctíssimo. À casos de indivíduos que em conversa comigo me dizem: Eu tive um primo, mas teve na outra Marinha como se os Fuzileiros não pertence-sem a essa mesma Marinha. Eu estive no DFE 10 que terminou a sua comissão em Março de 69, portanto não assisti a esse acidente do Manuel, paz a sua alma.
Saudações a todos os ex-combatentes,