sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Guiné 63/74 - P7690: Estórias do Juvenal Amado (35): Rodéro, o corneteiro com falta de embocadura

1. Mensagem de Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1972/74), com data de 26 de Janeiro de 2011:

Caros Luís, Carlos, Magalhães, Briote e restante atabancados
Esta é mais uma pequena estória mas que também tem importância, pois com o povo diz, também as pedras pequenas ajudam a fazer o muro.

Juvenal Amado


Estórias do Juvenal (35)

O RODÉRO CORNETEIRO E A FALTA DE EMBOCADURA

O Rodéro era um daqueles casos, que só tinha sido apurado para o serviço militar porque naquele tempo, só escapavam poucos e muito aleijados. Alentejano extremamente magríssimo com cara, que fosse a situação que fosse, era sempre de outra dimensão, de quem recorria ao barril do tintol constantemente, mesmo que fosse mais martelado que outra coisa. De vinho só tinha o nome e vagas parecenças, o líquido que vinha nos bidões de 200 litros.

Figura simpática, trabalhava na messe dos oficiais e sargentos, respondia sempre com um sorriso, dizendo que estava tudo em forma, fosse o que fosse que se lhe perguntasse, assim entre um bocadinho de pão e uma tala quina de chouriço, que lhe tinham enviado da terra.

Com uma navalhinha cortava as rodelinhas do dito e pequenos pedaços de pão, com precisão quase cirúrgica. Saboreava as duas coisas com uma reverência como se estivesse na missa. De uma forma ancestral honrava o alimento, por vezes tão difícil de conseguir do povo alentejano.

A sua especialidade era a de corneteiro, mas tendo em vista a sua fraca figura, cedo deixou de exercer. Com um peito daqueles, os sons eram pois os mais disformes e dificilmente se descortinava o toque do rancho, do de reunir, ou mesmo para a Bandeira.

Um dia já para o fim da comissão, estando o 2.º Comandante no Comando do Batalhão, foi necessário recorrer ao Rodéro como corneteiro, pois os outros estavam impedidos, não sei porque razão.

Foi de manhã no içar da Bandeira que a coisa se deu.

Estava uma Secção formada junto ao mastro, às ordem de sentido e apresentar armas, vai o Rodéro dar inicio ao respectivo toque.

Bem os sons que saíram do cornetim eram mais parecido com um saco cheios de gatos que se pretende abandonar num balseiro.
O soldado encarregue de hastear a Bandeira não sabia o que fazer, até que olhou para Oficial de Dia que ele lhe fez sinal para avançar. Não se percebeu onde começou e acabou o toque, pouco faltou para a guarda de honra se desmanchasse a rir.

Findo o acto, lá vem o Rodéro com aquele ar inocente, pensando para os seus botões, que eram todos uns maldizentes e que até nem tinha tocado nada mal.

- Estão-se a queixar! Eu queria ver-vos era a vocês!

Quem não tinha assistido mas ouvido, juntou-se aos que tinham presenciado a vivo e a cores.
Pela parada fora toda a gente arreganhava os dentes.

O nosso 2.º Comandante que tinha presenciado tudo, quando o Rodéro ia a passar por ele, perguntou-lhe com um ar meio divertido:

- Óh Rodéro o que é que foi aquilo? - Responde o nosso afamado corneteiro:

– O quê que quer que lhe faça mê Major? Foi o que se pode arranjar.

Foi uma gargalhada geral, e o acontecimento ficou para a história, que é bom de ver que nunca mais se repetiu.

A nós disse-nos com o ar mais natural do mundo, que tinha sido falta de embocadura.
Passou ser palavra de ordem quando íamos beber uma cerveja, dizíamos que era para tratar da embocadura.

Há tempos tive notícias dele pelo Caramba. Estava bem na sua simplicidade de sempre.
Como eu gostaria de lhe dar um abraço e ouvir da boca dele, que aquele toque tinha saído assim por falta da embocadura.

Um abraço
Juvenal Amado
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 18 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7634: Estórias do Juvenal Amado (34): Só o aprendiz sabe o que custa aprender

14 comentários:

colaço disse...

Essa dos corneteiros principalmente nas companhias independentes os corneteiros não conseguirem qualquer som da corneta ou cornetim parece que era muito comum.
Na minha companhia um certo dia no Cachil o capitão lembrou-se de mandar içar a bandeira e chamou o corneteiro que até não era alentejano, mas som que se ouvisse foram só sopros.
Um alfa bravo.
Colaço.

Luís Graça disse...

Querido camarigo Juvenal, mais um das tuas belas histórias mostrando o outro lado, o lado humano, da guerra.

A verdade é que, mesmo com tão fraca matéria-prima (já que tudo o que vinha à rede era peixe, no nosso tempo...),poder-se-ia ter feito melhor se a instrução militar não fosse tão curta e tão apressada, e se os instrutores ajudassem...

Um bom corneteiro, um bom cozinheiro, um bom condutor, um bom atirador ou um bom artilheiro..., em suma, um bom soldado, não se faz num dia... nem sozinho.

Mesmo assim aguentámos 13 anos... Repara: começou, há 40 anos, em 6 de Fevereiro de 1961, a guerra colonial (ou do Ultramar, como quiserem)... Às vezes sou levado a pensar que ela ainda não acabou... Mas são pesadelos, como o desta noite em que sonhei que o meu filho tinha ido substituir um velho médico, chamado Galopim (ou era Mário Bravo ?), que atingira o incrível posto de General miliciano médico do Hospital Militar de Bissau... E que no avião (já não se ia barco...), o meu filho cantava com os outros rapazes do serviço de saúde militar:

Ó Senhor Galopim,
Venha cá ao pé de mim,
Que eu sou um homem da pré-história,
Coberto de pó e glória...

(Letra de um canção que improvisei, para o João, quando, pequenino, foi visitar com os outros putos da creche o Museu de História Natural, em Lisboa)...

Juvenal: Não te sei dizer se foi um pesadelo ou é uma premonição... Cruzes, canhoto! Vade retro, Satanás!

Miguel disse...

Ó Luís, manda lá arranjar a tua calculadora que a guerra vai fazer 50 anos que começou - penso eu de que...
Miguel Pessoa

Torcato Mendonca disse...

Juvenal

Mais uma das boas. Embocadura é termo alentejano...agora eu nunca pensei que a minha Companhia tivesse um corneteiro. Será que tinha? Se calhar tinha. Agora se tinha corneta e soprava não me lembro.Para quê?

O Luís Graça anda com sono trocado...50 meu caro, cinquenta...anos...por isso estamos todos...pois. Olha, meu ou meus caros, numa aula no meu 6º ano disseram-me:
assaltaram o Santa Maria...inverno de 61 tinha dezasseis anos..,já lá vão cinquenta invernos...por isso...
Abraços T.

Luís Graça disse...

Cinquenta!, Miguel, cinquenta!... Tens toda a razão, meio século!... Estou velho!, é o que é, e com os neurónios a gripar... Eu tinha 14 anos em 6 de Fevereiro de 1961... e tive uma premonição: ainda vai sobrar para mim... Sobrou para todos nós!

Um xicoração, para ti e tua (e)strelada esposa e anjo da guarda... Luís

Luís Graça disse...

Amigos, camaradas, camarigos:

Onde é que vocês estavam em 6 de Fevereiro de 1961 ? Que recordações têm dos horríveis acontecimentos de Angola ? E das primeiras tropas que vão "rapidamente e em força" para Angola ?... Podíamos abrir uma série de depoimentos sobre este tópico...

António Martins de Matos disse...

Chegada do General Spínola à BA-12, numa visita de cariz "Oficial".
À Porta de Armas o Comandante da Base recebe a Entidade e diz para o corneteiro:
"Toca a sentido...."
Logo o jovem começa....pfff, pfff, pfff, ...
Mais nenhum som sai do instrumento.
Olhares inquiridores do Spínola e do Comandante.
E logo o corneteiro, lavado em lágrimas:
-Esqueci-me....

Abraços
AMM

Torcato Mendonca disse...

Do Santa Maria lembro-me.
Como me lembro do "Botas" dizer, tempos depois: -Temos o Santa Maria entre nós. Obrigado Portugueses.
Nunca pensei que a guerra "sobrasse" para mim. Andava por Beja,no Liceu claro depois de ter estado seis anos no Colégio. Havia muito que contar sobre o interesse de muitos estudantes,desse tempo, pela situação politica do País. Não cabe aqui. Ab T (um dia,não aqui e até me estou a "incomodar"....)fdep...

Luís Graça disse...

Assunto polémico (que deve ser visto como "periférico" em relação aos propósitos do nosso blogue) é ainda a data do início da guerra colonial (ou do Ultramar, ou de África, ou de libertação, conforme a "zona de conforto" de quem me lê)... Deixemos isso aos historiadores do futuro: para uns, é o 4 (e não 6...) de Fevereiro de 1961; para outros, o 15 de Março de 1961...

Recorde-se: 4/2/1961 > Revolta em Luanda, com ataques à Casa de Reclusão, ao quartel da PSP e à Emissora Nacional, acção considerada como o início da luta armada em Angola...

15/3/1961 >

(i) Início de uma rebelião dirigida pela UPA, no Norte de Angola, contra os colonos portugueses e algumas populações negras, causando centenas de vítimas


(ii) Partida de Lisboa de quatro companhias de caçadores para reforço da guarnição de Angola

Fonte: http://www.guerracolonial.org/cronology

Luís Graça disse...

A confusão (6 de Fevereiro de 2011, em vez de 4 de Fevereiro) tem a ver com a data de emissão do Programa "Grande Reportagem", da SIC...

Telefonou-me hoje o J. Casimiro Carvalho, a anunciar que uma equipa de jornalistas do JN - Jornal de Notícias o entrevistou em sua casa, recolhendo o seu depoimento sobre a experiência de um jovem, de 20 anos, que fez a guerra da Guiné, e as memórias que um homem de 58 anos guarda desse tempo... A entrevista foi registada em vídeo e será colocada no sítio do JN na Web... Talvez em JN > Multimedia > Videos~

http://www.jn.pt/multimedia/video.aspx

O J. Casimiro Carvalho falou-lhes na nossa Tabanca Grande (cujo desconheciam) bem como na Tabanca de Matosinhos, e no seu trabalho de ajuda solidária ao povo da Guiné-Bissau ... A equipa do JN combinou, como J. Casimiro Carvalho, aparecer na próxima 4ª feira, no almoço-convívio semanal da Tabanca de Matosinhos, no Restaurante Milho Rei...

MANUELMAIA disse...

CARO JUVENAL,

PARECE QUE OS ALENTEJANOS TINHAM O TRISTE FADO DE IR PARA A CORNETA.
O DA MINHA COMPANHIA,PAULINO,NÃO ERA SUMA RODÉRO DO BEBE COPO, NÃO SENHOR...
SERVIA-OS.
FOI PARA O BAR.
ABRAÇO
\MANUELMAIA

Anónimo disse...

Eu, então, nunca percebi os toques,
devia ser defeito meu,quando eram tocados por um verdadeiro corneteiro,e como aquilo era sequencial,seguia o resto da maralha.Quando passei a mandar ...toca ..isto e aquilo.. nunca soube se o toque era o correcto..felizmente .. no passa palavra "lá se levava a água ao moinho".Com o devido respeito pelos corneteiros..." oh maria o que é que o teu homem faz na tropa?..o mê home lá na tropa é..é co.. cornoo..intêro"
c. martins

Hélder Valério disse...

Caro camarigo Juvenal

Fazes bem em trazer estas tuas histórias pois é sabido que a nossa comissão não foi feita só de emboscadas, colunas, assaltos, golpes de mão, patrulhas, etc..

Se a todos foi comum o afastamento da família, dos amigos, do trabalho ou dos estudos, se a todos se deparou a tarefa de se adaptarem a situações bem diferentes daquelas com estavam habituados, se a todos o regresso teve o custo da readaptação, a verdade é que aquela 'passagem' não foi igual para todos e isso não tem nada de estranho, já que diferentes foram os locais de permanência, de deambulação, de actuação e também de desempenho.

Por tudo isso certamente haverá mais histórias dessas e só ainda não apareceram porque muitos dos nossos 'observadores' pensam que só os relatos de operações é que são valorizados.

Assim, estas tuas histórias acabam por dar visibilidade a outros personagens e ajudam a completar o 'puzzle da memória'.

Abraço
Hélder S.

Joaquim Mexia Alves disse...

Bela história Juvenal!

Aquilo não era falta de embocadura...era falta de um tintinho pela manhã!!!

Grande e camarigo abraço