terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Guiné 63/74 - P7634: Estórias do Juvenal Amado (34): Só o aprendiz sabe o que custa aprender

1. Mensagem de Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1972/74), com data de 17 de Janeiro de 2011:

Caros Luís, Carlos, Briote, Magalhães e restantes atabancados.
Quando pensamos na infância e percurso dos miúdos que mal saíam da escola tinham que ir trabalhar, vimos a diferença com o dias de hoje.
Os filhos eram os servos baratos nos campos da família, iam para as fábricas, para as lojas como marçanos, todo dia com a cesta a fazer entregas, e muitos os pais pagavam do seu bolso a aprendizagem nas oficinas.
Foram mais estes, dos que tiveram condições de estudar e quando chegaram à idade do serviço militar, lá foram lendo mal e escrevendo pior.
É para esses meninos esta estória.

Um Abraço
Juvenal Amado

Mosteiro de Sta. Maria de Alcobaça. Foto com mais de 40 anos, mas este traçado existiu até há pouco tempo. Agora é só pedra e saibro.



SÓ O APRENDIZ SABE O QUE CUSTA APRENDER

- Jorge… Vá acorda filho…

A voz vem de muito longe e aproxima-se lentamente, até que toma consciência de que é a mãe a chamar de mansinho, como que a pedir desculpa de o estar a acordar tão cedo.
Está frio. Ao passar as mãos sobre o cobertor, vulgarmente chamado de papo, nota que este está húmido da condensação do calor do corpo.

Ainda não são 7 horas e o Janeiro de 1963 vai frio.
Está escuro.

A mãe avia-lhe o almoço. Acaba de tomar o café da manhã já passa das 7 horas, tem de andar depressa para chegar a tempo à paragem, onde apanha a carreira que o levará à localidade de Valado dos Frades.

A avenida João de Deus está escura, escuro e silencioso está o Rossio, onde o Mosteiro, indiferente ao frio da geada, o vê passar rumo à rua de Baixo, passa pelo o posto da GNR e as suas grandes portas verdes, que está todo escuro, salvo a lanterna eléctrica por cima da porta e segue mais cinquenta metros até à paragem dos transportes públicos junto ao cruzamento da Sevena.

A passagem pelo posto fá-lo lembrar que acontecimentos sombrios como a invasão da Índia Portuguesa, o assalto ao paquete Santa Maria, o começo da guerra primeiro em Angola, depois Moçambique e agora na Guiné, tinham crispado a sociedade parda e cinzenta, abanando as convicções ganhas na escola ainda de memória fresca, de país inatingível, que só o nome afastava os inimigos. Enfim a propaganda do regime lá nos bombardeava com razões e vitórias no campo militar, mas que escondia o facto, de estarmos sós no contexto Internacional e justificavam a falta de liberdade com segurança da Pátria.

Está à espera há pouco tempo, mas o calor que ganhou pelo caminhar apressado, rapidamente saiu através do casaco onde está embrulhado.
Passam vultos silenciosos nem dão por ele. Todos carregam algum fatalismo e não esperam outra coisa que um dia a seguir ao outro. O magro salário deles fará os seus filhos engrossar a legião de trabalhadores, que a própria vida se encarregará de ensinar com dureza, que as oportunidades nunca serão iguais para todos.

A camioneta está a chegar. O homem ao volante bem como o revisor olham para ele, passageiro único, como que a censurá-lo de não ir apanhar o transporte numa paragem onde houvesse mais passageiros.

A roupa gelada é comprimida contra o corpo ao sentar-se. Olha para as janelas das casas ainda às escuras e tenta evitar um sentimento de inveja, pelo conforto que os seus ocupantes sentem ainda.

O rádio debita músicas da época, mais tarde chamadas de nacional-cançonetismo.

Nisto algo quebra o status e ouvem-se os primeiros acordes do "Twist And Shout" dos Beatles.
Fica mais atento.
O condutor da camioneta apressa-se a desligar o rádio, como se de um censor de lápis azul se tratasse. Decidir o que os outros devem ouvir ou ler, bem como a cor do lápis, é um problema da época.
Como ele está enganado ao pensar, que pode parar a marcha dos tempos, com um simples premir de um botão.

Já é dia mas o tom é pardo e húmido, talvez a proximidade do rio Alcobaça, que corre paralelamente à estrada, seja a razão. O mesmo rio no Verão serve em alguns pontos para dar uns mergulhos ou pescar uns barbos.

Pararam na localidade chamada Fervença descem uns e entram outros. Deita um olhar à casa onde nasceu, os pomares em redor estão todos brancos de geada e o frio que entra pela porta, fá-lo pensar que próxima vez tem de escolher outro lugar mais abrigado.

A Praça Central já em Valado dos Frades é a última paragem.

É uma povoação onde as pessoas do mar se encontram com os de terra e resulta na metamorfose de pescadores com agricultores. Depois mercê da quantidade de empresas de cerâmica, porcelanas e vidro, rapidamente passam a operários, que trabalham a terra antes e após o horário de trabalho das fábricas.

Jorge vai a correr daí até à fábrica de cerâmica "Os Pereiras", onde é aprendiz.

Chega esbaforido depois de correr mais de um quilómetro, com o frio a entrar pela boca e pelo nariz. São quase oito horas. A camioneta segue para a Nazaré e ultrapassou-o no caminho.

O chefe da secção do gesso é um grande artista na arte de modelar bem como pintor. Das suas mãos nascem cães, gatos, pássaros, jarras e terrinas como por magia. Fez um candeeiro em forma de dragão com uns 25cm de altura que motivou uma autêntica romaria dos trabalhadores da fábrica para o apreciarem.

Depois de esbanjar talento por todas as fábricas da região, foi mais tarde para Angola, onde montou uma bem sucedida empresa.

Escusado será dizer que ninguém se torna artista só por privar com um.
Infelizmente a habilidade não se pega como a gripe. Pode-se aprender alguma técnica, mas as mãos que são capazes de executar o que o cérebro cria, é só para alguns.

Assim o Jorge aprendeu a dar e a tirar sabão, das madres para fazer formas. Mexer o gesso com um piaçá que é a tecnologia da época.

Os dias passavam entre fazer pesados moldes e acartá-los para dentro dos fornos por vezes com um saco de serapilheira pela cabeça. Aproveita-se assim o calor secando-as mais rapidamente. De vez em quando a visita dos fiscais de trabalho, fornecem assim uma folga ainda que de uma hora ou duas, mas sempre bem vinda. Vêm à procura de trabalhadores menores e não inscritos na Segurança Social, que verdade seja dito são vários de ambos os sexos. Sendo assim, quando algum carro dos referidos serviços pára à porta da fábrica, é uma correria para os pinhais próximos.

Os fiscais por ali andam a cheirar bastante tempo e, quando finalmente se vão embora, vão à procura deles como de gado tresmalhado se tratasse.

Está quase na hora, vai limpar as ferramentas de toda a gente e arrumá-las. Toca o sinal das 18 horas, lava as mãos, tira a roupa de trabalho e corre para a Praça Central, onde a camioneta dos Claras não esperará por ele para o levar para casa.

Já está na paragem quando o transporte chega, o caminho parece mais curto.
Sobe, vai direito a um lugar vago, senta-se e pensa nos 42 escudos que ganha e nos 48 escudos que gasta em transportes por semana.

Talvez o condutor o deixe ouvir desta vez o Twist and Shout dos Beatles.

Juvenal Amado
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 7 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7565: Estórias do Juvenal Amado (33): O Léo e a macaca Chita

10 comentários:

Cesar Dias disse...

Juvenal

É verdade,alguns tinham uma profissão mas mal sabiam escrever, outros não sabiam mesmo, foi uma das coisas que me impressionou nos nossos 20 anos naquelas paragens. Por eles atrevo-me a agradecer-te esta história, pois no meu pelotão, haveria vários que a poderiam subscrever.
Bem Hajas Juvenal

César Dias

Anónimo disse...

Juvenal
Gostei do texto. Recuei no tempo e vi muitos "Jorge's".
Parabéns.
Filomena

Anónimo disse...

Caro Juvenal Amado

Memórias, e quiçá saudade de tempos difíceis, que apesar de todo o sacrifício a que a luta da sobrevivência nos forçava para vingarmos, havia decerto alegria mais pura, animosidade mais espontânea, amizade mais sadia. A nossa geração é pelo seu passado, uma geração “sui generis”, em que nenhuma outra, num espaço de tempo tão limitado, teve o privilégio de assistir a tanta inovação e evolução. Partimos duma época em que se vivia praticamente na idade média, e no intervalo de 50 anos deram-se avanços tecnológicos em todas as áreas, abismais, desde a chegada à lua, à descoberta dos semicondutores que abriram caminho ao fabrico dos microprocessadores, cujas potencialidades são infinitas. Assim chegamos à era da computação, em que todos os dias somos surpreendidos e ultrapassados com novas descobertas, deixando outras obsoletas. Não há limites para o conhecimento…

Achei curioso falares nos cobertores de papa…Quando eu era criança, na minha aldeia, havia alguns teares artesanais que faziam esse tipo de cobertores, que efectivamente eram muito quentinhos e confortantes. A sua confecção era realmente muito laboriosa. Para a sua elaboração havia necessidade de fazer a selecção da lã mais comprida, da ovelha, que era sujeita a uma série de lavagens para depois ser fiada, para de seguida passar à fase de tecelagem, num tear rudimentar de madeira. Após a tecelagem, o cobertor passava por uma série de lavagens e coramentos, no rio Côa, até chegar à fase de carda onde era puxado o pelo, para o deixar com o aspecto que lhe é característico, todo felpudinho (peludo). Ainda tinham que ser esticados e molhados para lhes uniformizar as dimensões. Creio que hoje, no distrito da Guarda, de onde é oriunda a sua fabricação, e eu sou natural, ainda é fabricado este artigo em teares familiares.

Um abraço

José Corceiro

Anónimo disse...

Juvena Amado

Gostei desta descrição de lugares, sensibilidades e ambientes dos nossos anos 60.
Só não gostei do "brasileirismo" "café da manhã" que, entre nós, nesses tempos e mesmo agora, se chama "pequeno almoço".

Alberto Branquinho

Anónimo disse...

Caro amigo Juvenal,

Na terra onde eu nasci, a ilha das Flores, o "pequeno" do almoço não fazia parte do vocabulário mundano e muito menos o café da manhã.

Uma boa tigelada de leite com pão ou bolo de milho faziam as delícias dos mais pobres, que eram quase todos. As papinhas de milho também ajudavam à dieta.

Café, qundo havia, só de cevada ou chicória por vezes enganado com um cheirinho do puro dito. Açucar cá tinha, que a vida era negra naqueles tempos.

Já agora, as refeições eram o almoço, jantar e ceia, todas elas em ponto grande,... segundo as misérias do tempo.

José Câmara

Juvenal Amado disse...

É verdade os dois têm razão, quanto nome dado ao nome dado á primeira refeição do dia.
O termo por mim usado é de facto abrasileirado, como lhe chamou o Branquinho. «Já estou apanhado»
Na verdade nós dizíamos simplesmente ir tomar o café que era normalmente cevada e pão com manteiga.Leite só para os meus irmãos mais novos. No entanto os rurais da zona chamavam almoço, jantar e ceia.
Neste caso o almoço era mesmo sopa, pão e vinho, quando não havia nada mais de substâncial. O jantar era comido no campo e normalmente uma sardinha, ou toucinho, por vezes uma mão cheia de azeitonas escaldadas, pão e vinho «por vezes o vinho dos cervos» era o cardápio.
À hora que eu passava para a fábrica, já as tabernas tinham clientes, que rematavam a primeira refeição do dia com meios quartilhos de aguardente.

Um abraço

Torcato Mendonca disse...

Juvenal Amado
Só te envio um abração forte e fraterno.

AB T

Hélder Valério disse...

Meu caro camarigo Juvenal

Boa história! Bom retrato de época!

E se por acaso se pensar "o que é que isso tem a ver com a guerra da Guiné?" é fácil! Tem tudo!

Foi nesse contexto, nesse e noutros semelhantes, que se foram recrutar os elementos (jovens) que foram incorporar 'as comissões de serviço por imposição'. E era o ambiente que rodeava os que por cá ficavam...

Do que deixas escrito aproveito para fazer uns outros comentários, que não o do café da manhã, porque desse já falaram.

Vi a foto do Mosteiro de Alcobaça e foi exactamente essa a minha lembrança dele durante muito tempo. Dizes que agora há alterações, mas não as conheço, já não vou por aí faz bastante tempo!

Referes-te à Fervença. Acho que devias ter revelado as Termas que por lá existem (ou existiam). É claro que não se comparam às de Monte Real (eram mais modestas, mais ao alcance de bolsas com menores posses, mas ao que parece eficazes no tratamento das maleitas a que se dedicavam).

Falas também em Valado de Frades, que para ti era um local de encontro 'das pessoas do mar e das pessoas de terra', imagem bem feliz para referir a situação de meia-distância a que se encontarava entre Alcobaça e a Nazaré. Mas também podias dizer que a várzea de Valado de Frades produz os melhores, mais frescos e mais tenros legumes do nosso país, sendo expoente máximo o feijão verde (ainda será?).

Uma outra pequena nota ao que escreveste tem a ver com o que me parece ter sido um desvio às tuas tendências.... refiro-me, obviamente, ao facto de estares a produzir, não um leão, mas sim um ...dragão!

Também recuei um pouco à infância quanto ao 'cobertor de papa', que eu também usufruí, bem completado pelos pormenores apresentados pelo José Corceiro.

Finalmente, está no título do teu artigo que "só o aprendiz sabe o que custa aprender". Não estou inteiramente de acordo, por causa do "só".
Se é certo que o Aprendiz saberá quanto lhe custa, e isso deverá ser verdade, se trabalhar proficuamente, dedicadamente, com honesto labor, poderá vir a ser Companheiro e nessa condição, se for honesto e sincero, não deverá ter esquecido o quanto lhe custou a aprendizagem, daí não concordar com a restrição, o "só".
É também do conhecimento comum que nessas comunidades de construtores, designadamente do Mosteiro de Alcobaça, os companheiros que porfiassem bastante podiam atingir um grau superior, podiam justamente aspirar a ser Mestres, que, na realidade, não devia ser alvo de 'aspiração' mas sim de recompensa pela excelência do seu trabalho e dedicação praticados.

Um abraço
Hélder S.

Hélder Valério disse...

Caro Juvenal

Esqueci-me dos Beatles...
Pois é verdade o que dizes. Pensavam que bastava carregar num botão para deter a onda...

Pois. Mas essas e outras ondas vieram e foram imparáveis. Também porque era essa a corrente da história. Outras haverá hoje que também pretendem parar. Não aprendem!

Abraço
Hélder S.

MANUELMAIA disse...

CARO JUVENAL,

PARABÉNS PELO TEXTO,UM RETRATO FIEL DE UMA ÉPOCA.
bEM ESGALHADO SIM SENHOR.
ABRAÇO
MANUELMAIA