sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Guiné 63/74 - P7566: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (23): Com humor também se fazia a guerra

1. Mensagem de José da Câmara* (ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73), com data de 26 de Setembro de 2010:

Meu caro amigo Carlos Vinhal,
Para quem conheceu a Ilha das Flores e as suas gentes ao tempo da história, sabe que os calões usados faziam parte do dia-a-dia florense. O mesmo acontecia por outras ilhas, numas mais que outras. Nem por isso havia menos respeito entre as pessoas. Tudo dependia do sentido dado à conversa e às circunstâncias.

Um abraço enorme para ti e para os nossos camaradas,
José Câmara



Memórias e histórias minhas (23)

CCAÇ 3327 - 2.ª Secção do 4.º GCOMB
Em pé, da esquerda para a direita: 
Sold. José R. Serpa, (Costa do Lajedo – Flores) – London, ONT, Canadá; Sold. João Avelar Ventura (Fajãnzinha – Flores) – Terra Chã, Terceira; Fur. Mil. José A. Câmara (Fazenda – Flores) – Stoughton, MASS, EUA; Sold. António Silvestre Jr. (Urzelina – S. Jorge) – Toronto, ONT, Canadá; Sold. José C. Arruda Massa (Arrifes – S. Miguel)

Na frente, da esquerda para a direita:
Cabo José Silveira Leonardes (Topo – S. Jorge) – Praia da Vitória, Terceira; 1.º Cabo António Fernando Silva (Praia do Alomoxarife – Faial); Sold. Magno Manuel Silva (Guadalupe – Graciosa) – Lowell, MASS, EUA; Sold. José Francisco Serpa (Ponte da Fajã – Flores) – Stoughton, MASS, EUA; Sold. Emanuel A Cardoso Silva (Castelo Branco – Faial) – Newark, CAL, EUA


Com humor também se fazia a guerra

A CCaç 3327, aquando da sua passagem por Bissau, tinha a seu cargo a segurança de várias instituições militares. O Laboratório era uma delas.

Por vezes, era decretado o estado de alerta na cidade. Como era natural nessas ocasiões, o movimento de tropas ficava circunscrito aos serviços de emergência e abastecimentos e às patrulhas dos diferentes bairros de Bissau.

Também era prática generalizada reconduzir os militares nos seus postos de serviço, durante o tempo da prevenção. Portanto, ninguém se admirou de ver o pessoal de serviço ao Laboratório ser reconduzido nos seus postos por mais vinte e quatro horas.

O que não estava previsto é que os referidos militares, sem serem vistos nem achados para as circunstâncias, tivessem sido obrigados a uma dieta forçada. Alguém no AGRBIS esqueceu de dar ordens para que o rancho fosse mandado para os militares de serviço ao Laboratório.

Isso de fazer a tropa e a guerra é uma coisa. De barriguinha vazia é que não…

O José Francisco Serpa, conhecido na Companhia como o Serpa Pequenino, natural da Ponte da Fajã, Ilha das Flores, foi um dos militares apanhados de serviço ao Laboratório. Pertencia à minha Secção. Era um soldado muito disciplinado, de uma educação cívica bastante apurada e um excelente colaborador nos serviços da Secção. Uma das suas melhores qualidades era a capacidade de falar olhos nos olhos com as pessoas e com o coração bem junto da boca, fazendo jus a qualquer açoriano que se preze.

O nosso Serpa de regresso ao AGRBIS de imediato procurou pelo nosso Cap. Rogério Alves. Queria, veementemente, protestar pela falta do rancho a que tinha sido submetido nas últimas vinte e quatro horas. Encontrou-o na secretaria, e botou protesto:

- Meu capitão, quem foi o f. da p. do Oficial de Dia que esteve de serviço?! Eu quero matar o sacana que nos deixou à fome durante as últimas vinte e quatro horas!

O Cap. Alves que já se habituara à maneira de ser dos açorianos, humanamente compreendia que nesses desabafos e calões não existia qualquer maldade e muito menos falta de respeito, respondeu, serenamente, fazendo uma pergunta:

- Oh Serpa, você teria mesmo coragem de matar o seu Comandante de Companhia?

O nosso soldado não se desconcertou. Com nervos de aço e alguma graça respondeu:

- A esse não meu Capitão, mas não se esqueça de o avisar que da próxima vez deve mandar o rancho para o pessoal!

Hoje o José Serpa vive em Stoughton e é cliente na Agência de Seguros onde trabalho.

A história, contada pela sua boca, teve um final feliz. No dizer do Serpa e dos homens da Companhia, o nosso capitão era um bom homem.
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 17 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7460: O Mural do Pai Natal da Tabanca Grande (2010) (6): Uma história de Natal (José da Câmara)

Vd. último poste da série de 20 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7149: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (22): Aventuras em terras manjacas

10 comentários:

Anónimo disse...

história picaresca com dois intervenientes inteligentes...
Um abraço

Vasco A.R. da Gama

Jorge Fontinha disse...

Os verdadeiros homens conheceram-se na Guerra e fizeram dela, cada um á sua maneira,a sua estória.

Gosto das tuas estórias.
Aquele abraço.

Jorge Fontinha

Anónimo disse...

Caro José Câmara,

As tuas histórias trazem sempre algo de positivo ao nosso convívio.
Não podes fazer um esforço de memória (visual) e dizer-nos por onde andam aqueles teus camaradas da foto?
Pergunto isto para se fazer um pouco a ideia da percentagem de açorianos que fizeram a guerra e depois emigraram para os EUA e Canadá.
Um abraço,
Carlos Cordeiro

manuelmaia disse...

Caro Câmara,

Não é só nas ilhas que o palavrão anda na boca sistemáticamente...
Aqui na minha zona(arredores do Porto) o Carvalho sem V é sistemático numa grande parte dos homens e até mesmo nas mulheres...
Como diz o Vasco,foram dois intervenientes inteligentes a contornar o dito...
abraço
manuelmaia

Anónimo disse...

Olá José Câmara,
Mais uma boa história.
Que eu, apesar de estar na mesma CCaç, desconhecia completamente.
Lembro-me muito bem do Serpa e do seu ar honesto e leal.
Esta história trouxe-me à lembrança um pequeno episódio passado comigo e com o soldado Manteigas.
O nosso capitão andava à minha procura e não me encontrou. Quando finalmente apareci, o soldado Manteigas, da ilha de S. Miguel, diz-me logo com aquela pronúncia cerradíssima: "Oh mê furrieu está fodeido - o nosso capitam anda à sua procure há um ror de ioras"
(Espero ter reproduzido a pronúncia dos "u" à moda de S. Miguel !).
Abraço e um bom ano para ti.
Rui Esteves
Furriel Enf. da CCaç 3327

Anónimo disse...

Olá Rui,

Emitastes muito bem o nosso Soldado José Manteiga, hoje a residir na cidade de Fall River, MASS.

Todos nós temos pequenas histórias. Tu mesmo já escrvestes algumas muito engraçadas.

Pena que outros não escrevam sobre as suas experiências e como as sentiram.

Um dia, quem sabe, alguém tirará proveito dessas pequenas coisas.

Um abraço amigo,
José Câmara

Luis Faria disse...

José da Camara

Fizeste com que me risse logo pela madrugada!!
Esse teu Rapaz açoriano para alem da palavra fácil era de raciocínio lesto!!

Por causa do "palavrão",lembrei-me:
"dá licença,meu Cap Javardo?"
...
" Fajardo,seu f.da p. "!!

Um abraço
Luis Faria

Hélder Valério disse...

Caro camarigo José Câmara

Um apontamento bem humurado, que também faz falta por aqui.

Dizes que o homem era "um soldado muito disciplinado, de uma educação cívica bastante apurada", ainda bem, porque se não fosse podia ter utilizado alguns palavrões ou chamar alguns nomes aos 'superiores', o que parece, 'não' aconteceu...

Abraço
Hélder S.

Anónimo disse...

Caro amigo José Câmara,

Quando fiz a pergunta no comentário nunca imaginei que os resultados fossem tão surpreendentes! É absolutamente extraordinário: 60% dos camaradas da tua secção emigraram para os EUA e Canadá. É evidente que não se trata de uma sondagem com validade em termos estatísticos mas, mesmo assim, dá muito que pensar. E se é imigrante, na sua constituição originária, o Povo Açoriano desde cedo se viu impelido a rumar a outras paragens (algumas bem longínquas, como o Havai) em busca de horizontes mais propícios a um futuro digno que parecia arredado das suas ilhas. Foi assim ao longo de toda a nossa História. Mas as décadas de 1960 e 1970 são marcantes neste "fenómeno". Não se fugiu ao cumprimento do Serviço Militar Obrigatório. Depois do regresso é que se tomou a dolorosa decisão, ao verificar-se que nada mudara em termos de condições de vida.
Estive a ver os anuários estatísticos de Portugal (estão online no site do INE) e os números de pessoas que emigraram são impressionantes, a partir de 1966:
1966 - 10704
1967 - 11232
1968 - 12813
1969 - 13125
1970 - 9871
1971 - 9361
1972 - 8624
1973 - 7893
1974 - 12400

Foi uma autêntica debandada!
Basta dizer que, no censo de 1960, a população dos Açores era de 327480, passaria, no de 1970, para 285015 e, em 1983, os dados do INE apontam para 243410.
Com estes dados chega-se à conclusão que, no ano de 1974 (e tendo em conta o censo de 1970), cerca de 4,5% da população total dos Açores emigrou, sendo que no distrito de Ponta Delgada esta percentagem atingiu os 5,2%.
Depois, com a Autonomia, houve uma grande mudança e os números, felizmente, sofreram drática redução.
Veremos o que o futuro nos aguarda.
Desculpem este comentário fora do contexto.
Um abraço,
Carlos Cordeiro

Anónimo disse...

Caro amigo José da Câmara

Gostei dessa história bem humorada, tendo como personagens um açoriano e um algarvio, já que o Ex-Capitão Rogério Alves é um bom Homem de Faro, que tenho o prazer de conhecer, com sentido de humor e humanismo.
Um abraço

Bernardino Parreira