sábado, 29 de maio de 2010

Guiné 63/74 - P6492: Convívios (244): 11º Encontro da CCAÇ 763 (Mário Fitas)


1. O nosso camarada Mário Fitas, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCAÇ 763, “Os Lassas”, Cufar, 1965/66, enviou-nos a seguinte mensagem, com data de 25 de Maio de 2010:

11º Encontro da CCAÇ 763

A Helena (esposa do Mário Fitas), Carlos Filipe, Álvaro Veríssimo e esposa

Caro Luís e Camaradas.

Mais um encontro da C.CAÇ. 763, construtora do que viria a ser o Aquartelamento de Cufar, um dos pontos cruciais da Guerra, dado o seu posicionamento de apoio na luta travada com o PAIGC no Sul da Guiné.

Continuamos a juntar, rememorando os tempos difíceis que foram aqueles vinte e dois meses em luta, e construindo todas as estruturas de um Aquartelamento.

Percorremos não só todos os caminhos de Catió a Ganjola, de Cufar a Cobumba, como as míticas matas de Camaiupa, Afiá, Cachaque e Cabolol. Mas também nos mandaram para o lado de lá do Cumbijã, para o Cantanhez. Darsalame, Cadique, Caboxanque, Flaque Injã, Bedanda até ao cruzamento de Salancaur Mejo.

Apenas com 48 homens operacionais, só não nos refinaram os ossos para o açúcar, de resto ficou lá tudo.

Para aqueles que por doença ou diversos motivos não puderam estar presentes, sabemos que em espírito lá estavam também. Todos foram lembrados.

Desta louca vivência tivemos a gratificante companhia e amizade de um punhado de homens, aos quais queremos deixar hoje aqui a nossa homenagem e agradecimento que foram os Homens da C.CAV. 1484, de quem nos foi sempre cedido um grupo de combate, para as últimas seis operações de envergadura que efectuámos naquela terra.

Deram-nos alguns desses extraordinários homens, da C.CAV. 1484, com suas esposas e família, a doce alegria de nos acompanharem neste nosso convívio, recordando momentos difíceis de antanho.

Para todos eles e em especial ao mobilizador desta fraterna companhia, Benito Neves, da C. CAÇ. 763 vai o nosso agradecimento e o fraterno abraço do tamanho do nosso Cumbijã.

A Organização do 11º Encontro da C. CAÇ. 763
2. Envio também, pelo seu interesse, o discurso proferido neste convívio, pelo Alf Mil Jorge Paulos, da CCAÇ 763, em Boleiros - Fátima.

ENCONTRO DE CONFRATERNIZAÇÃO DA CCAÇ 763 – MAIO 2010

Ter a possibilidade de dirigir aqui algumas palavras a todos os presentes, mais do que um privilégio, é uma honra porque, antes do mais, me faz relembrar a figura ímpar e insubstituível do nosso Capitão Costa Campos

Não estamos neste encontro por um acaso, juntámo-nos, mais uma vez, porque muitos dos presentes tiveram uma aventura em comum, que, naturalmente, não só não a esquecem, como fazem questão de a relembrar.

Há 45 anos, recordam-se, éramos uns putos. Éramos, de facto, muito novos, mas, meus amigos, podemos hoje, que já somos menos novos, olhar para trás e sentir orgulho por, nessa altura, termos sido capazes de enfrentar, com sucesso, os perigos e as adversidades com que nos confrontámos.

Nunca me canso de lembrar que ter coragem não significa não ter medo, ter coragem é ser capaz de dominar esse medo e seguir em frente.
E foi isso, exactamente, o que fizemos e que não pode deixar de ser um exemplo que deixamos aos nossos filhos, aos nossos netos e a todos os jovens e menos jovens deste país.

A vida é difícil, mas não podemos deixar-nos vencer. A cada momento é preciso levantar a cabeça e seguir em frente.

Amigos, quero pois saudar todos os militares da CC 763, tornando extensiva esta saudação aos nossos companheiros da CCav. 1484, que várias vezes, conjuntamente connosco, lutaram na Guiné e que nos deram hoje o prazer da sua presença e para os quais peço uma salva de palmas.

Gosto sempre de relembrar, neste momento, uma das muitas operações em que entrámos e este ano evoco a operação Pirilampo.

Eram cerca das 00.00 horas do dia 10 de Setembro de 1966, quando a Companhia de Caçadores 763, conjuntamente com a Companhia de Cavalaria 1484, sairam do aquartelamento de Cufar na direcção da mata de Afiá, onde chegámos às 05.30 horas, para daí seguirmos para a mata de Cabolol, onde, segundo informações obtidas, o inimigo teria um aquartelamento.

Iniciámos, então, uma batida até cerca das 15.30 horas, altura em que detectámos o acampamento inimigo que, num rápido envolvimento, com a colaboração da Companhia de Milícias 13, destruimos.

Seguimos, de imedito, na direcção da Tabanca de Cabolol Balanta onde o inimigo, que para aí se tinha dirigido, reagiu com fogo intenso de metrelhadora pesada, lança-granadas e armas automáticas.
A nossa reacção foi pronta e fortíssima, fazendo calar, em poucos instantes, o tiroteio inimigo.

Destruída a tabanca, regressámos ao aquartelamento, cerca das 22.30 horas, desta vez, felizmente, sem mortos nem feridos.

Amigos, era bem melhor que não tivesse havido guerra, pois muitos dos nossos companheiros sofreram e ainda sofrem os seus resultados negativos. Mas, já que lá estivemos, não devemos ter receio de dizer bem alto que soubemos ser dignos de nós próprios, que honrámos o país e que tem sido escasso o reconhecimento da nossa entrega que, em muitos casos, chegou ao sacrifício da própria vida.

Companheiros foi bom estar aqui convosco, mas tal só foi possível, mercê da disponibilidade e trabalho do Mário Ralheta, que foi o obreiro deste encontro e para quem vai o nosso obrigado com uma singela, mas sentida, salva de palmas.

Termino, amigos, com uma palavra final para as nossas famílias que, é preciso dizê-lo, foram muitas vezes um pilar importante no equilíbrio da nossa vida.
Para todos os votos de muitas felicidades.

Jorge Paulos
Maio de 2010
Por Fátima passaram muitos veteranos da C.CAÇ. 763. Da esquerda para a direita: Pernas, Pereira, Marques e Carlos Filipe

Alf Mil da 763 Jorge Paulos, Artur Teles e respectivas esposas
Bernardino Pinto e esposa

A juventude também marcou presença, acompanhando o avô Veterano de Guerra
Um abraço,
Mário Fitas
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCAÇ 763
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Nota de M.R.:

Vd. último poste da série em:

23 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6457: Convívios (158): XX Encontro do pessoal do BCAÇ 2884, no dia 15 de Maio de 2010 na Guarda (José Firmino)

Guiné 63/74 - P6491: Notas de leitura (114): Antologia do Conto Ultramarino, de Amândio César (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso Camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil At Inf, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Maio:

Queridos amigos,
Aqui está a oportunidade, por um euro, de ler escritores que tiveram a sua importância na literatura colonial, tais como Baltazar Lopes, Fausto Duarte, Fernando Reis, Mário António, Vimala Devi e Fernando Sylvan.

Creio que está esgotada a temática ultramarina, no que toca à Guiné e que o Leopoldo Amado tão lapidarmente estudou.

Um abraço do
Mário


Dois escritores cabo-verdianos que escreveram sobre a Guiné

Beja Santos

A “Antologia do Conto Ultramarino” (1972), de Amândio César, ainda se pode encontrar nos alfarrabistas por um euro. O autor tinha publicado em 1969 dois volumes “Contistas Portugueses do Ultramar”, abrangendo o espaço de Cabo Verde a Angola. Com esta edição destinada aos livros da RTP, Amândio César pretendeu abarcar algumas expressões representativas das literaturas de Cabo Verde, Guiné, S. Tomé, Angola, Moçambique, Estado da Índia, Macau e Timor. Curiosamente, em 1969, no que tocava à Guiné, incluíra um escritor combatente, Álvaro Guerra, com um conto admirável “O Tempo em Uane” (Em “Os Anos da Guerra” João de Melo irá recuperar esta jóia literária).

Amândio César faz representar a literatura guineense através de dois cabo-verdianos, Fausto Duarte e João Augusto Silva, já referidos em recensões literárias anteriores. Fausto Duarte nasceu na cidade da Praia em 1903 e foi agrimensor na Guiné em 1932. Obteve um importante prémio no concurso de literatura colonial com o romance “Auá”, inequivocamente uma obra com méritos. João Augusto Silva nasceu na Brava em 1910 e de 1928 a 1936 viveu na Guiné onde colheu elementos para o seu livro “África – da vida e do amor na selva” que igualmente foi premiado pela Agência-Geral das Colónias. João Augusto Silva foi tio do Pepito, que já aqui contou algumas das suas histórias.

Não vale a pena acrescentar mais elementos àquilo que o nosso confrade Leopoldo Amado já observou sobre a literatura colonial guineense. Estamos perante dois homens viajados que não resistiram à sedução africana, renderam-se ao exotismo, abordando temáticas onde vemos privilegiados amores entre nativos, histórias de caçadores, lutas correspondentes ao período da pacificação (até 1936), descrições primorosas sobre a paisagem africana, a sua fauna e a sua flora, entre outros motivos.

O conto de Fausto Duarte escolhido para esta antologia chama-se “Regresso”. Trata a história de um coronel que fora governador no tempo das lutas correspondentes ao período de pacificação e que vai ao cemitério de Bissau onde está o túmulo do seu filho que ele, por rigidez e insensibilidade, enviara praticamente para a morte, a força pacificadora tinha sido massacrada pelos revoltosos. Provavelmente Fausto Duarte baseou-se nas guerras de Bissau com as contínuas escaramuças dos Papéis. O conto “Foi em Cuntabanim” de João Augusto Silva passa-se no chão do régulo Mutari, andavam caçadores brancos na pista de uma pequena manada de elefantes, um pisteiro de nome Hamadi relata histórias fabulosas à volta da lareira, aguarda-se o amanhecer para que os brancos retomem a caçada. Hamadi começa por falar numa caçada aos búfalos, a novidade eram aquelas espingardas, obra de feitiço, espingardas pareciam coisas de brincar, os buracos de entrada das balas eram uma coisinha pequenina que mal se via, mas, ao sair abriam um buraco grande que parecia uma flor de poilão-forro. Hamadi tem mais histórias para contar: hipopótamos feridos que levantaram no ar canoas, em rios cheios de crocodilos, contou peripécias sobre a caça de leopardos e gazelas. A história termina assim: “Hamadi conta mais uma história, uma fábula, onde o bicho é metido a ridículo. Por entre pasmos e risadas sucedem-se contos maravilhosos. Mas o branco está cansado e tem sono. De dentro da barraca de campanha manda-os calar e recomenda que se deitem, pois no dia seguinte, ao terceiro cantar do galo, deverão estar todos a pé, prontos para a caçada”.

Enfim, uma África típica do período colonial, um mundo captado pelos olhares “civilizados” para entreter, do outro lado do Atlântico, outra gente civilizada.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 28 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6483: Notas de leitura (113): As ausências de deus, de António Loja (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P6490: A minha CCAÇ 12 (3): A única história da unidade, no Arquivo Histórico-Militar, é a que cobre o período de Maio de 1969 (ainda como CCAÇ 2590) até Março de 1971... e foi escrita por mim, dactilografada e policopiada a stencil (Luís Graça)



Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > CCAÇ 12 (1969/71) > Cambança de uma bolanha, na região do Xime, no decurso (?) da Op Boga Destemida, em Fevereiro de 1970, em que participarama 3 Gr Comb da CCAÇ 12 (Desta A) e forças da CART 2520 (Xime), reforçadas pelo Pel Caç Nat 63 (comandado pelo Alf Mil Art Jorge Cabral) (Dest B). Essa operação saldou-se por 2 mortos e meia dúzia de feridos (entre graves e ligeiros, entre eles o meu amigo 1º Cabo Galvão, que foi ferido na coaxa com um tiro, quando em maca, lesionado, transportado por quatro camaradas, à altura do capim (*)...

Vendo melhor a foto, parece-me improvável que tenha sido no decurso da Op Boga Destemida... Em primeiro palno, vê-se o 1º Cabo Valente, ferido por estilhaços de morteiro em Janeiro de 1970 (Op Borbeleta Destemida)...Depois estamos já na época seca... É possível que a foto (aliás, um diapositivo) tenha sido tirado ainda em 1969, no final da época das chuva, que também de intensa actividade operacional... Infelizmente não tenho as legendas das magníficas imagens que o Arlindo Roda teve a gentileza de me mandar, através do Benjamim Durães (CCS / BART 2917, 1970/72).

Ainda em 2º plano, vê-se o Fur Mil At Inf Roda, o Alf Mil Op Esp Francisco Moreia (comandante do 1º Gr Comb). Atrás deles, descortinam-se ainda as cabeças dos Fur Mil Humberto Reis e António Branquinho.

Foto: © Arlindo T. Roda (2010). Direitos reservados




 1. Realizou-se hoje, em Vila do Conde, o 39º Convívio Anual da CCAÇ 12 (Bambadinca, 1971/72). Quero dizer aos camaradas que nos substituíram, aos primeiros quadros e especialistas metropolitanos (que integraram a CCAÇ 2590, mais tarde CCAÇ 12), que há uma história da nossa unidade (HU), escrita por mim, respeitante ao período de Junho de 1969 / Março de 1971... É o único período em que há uma HU da "nossa" CCAÇ, segundo o Arquivo Histórico-Militar.

A história da CCAÇ 12 também tem uma história que merece ser contada:

(i) Escrita por mim, contou com a cumplicidade e a colaboração de vários camaradas, milicianos, incluindo um sargento do quadro: já não está no activo, vive em Évora, e faço questão de mencionar seu nome, o Sargento Piça, o Grande Piça, para os amigos!...

(ii) Oficialmente, o documento não tem (nem podia ter) autor, mas é unanimemente reconhecido que foi escrita por mim;

(iii) Mais, foi-me pedida expressamente pelo comandante da companhia, o afável Capitão Inf Carlos Brito (que hoje vive em Braga, e é coronel na reforma, devendo estar na casa dos 77/78 anos; não tem aparecido aos últimos encontros da companhia; não o vejo desde 1994, data do nosso 1º primeiro encontro, em Fão, Esposende;

(iv) O então Cap Brito (em vésperas de ser promovido a major, se não mesmo já major) não autorizou a sua divulgação, nem muito menos o comando do batalhão de quem estávamos hierarquicamente dependentes, o BART 2917, a partir de Junho de 1970 até Fevereiro de 1971); alegava ter informação "classificada" (o que era inteiramente verdade);

(v) Um versão, escrita e impressa à luz do dia, a stencil, na secretaria da companhia, foi discretamente distribuída aos alferes e furriéis milicianos (mesmo assim, não sei se a todos...), numa tiragem necessariamente reduzida, na véspera da partida; como era sabido, os quadros metropolitanos e os especialistas da CCAÇ 12, num total de 50, eram de rendição individual;

(vi) Em 1994, quando reencontrei o meu antigo Capitão, agora Cor Ref, dei-lhe conta desta deslealdade que cometi em Março de 1971 (julgo que foi a única, em relação a ele).



O único louvor que tive na tropa e onde se referência à elaboração da história da unidade... Foi coisa que nunca mostrei a ninguém. Pensando bem, deveria ter razões para sentir-me honrado pela distinção...  Reprodução da página 12 da minha caderneta militar...

Foto: © Luis Graça (2010). Direitos reservados


Na I Série do nosso blogue, fiz questão de dizer que gostaria que aquele documento tivesse podido chegar às mãos de todos os meus camaradas, incluindo os nossos soldados e cabos metropolitanos. E até às mãos dos africanos, embora muito poucos (dois ou três) soubessem ler e escrever. Infelizmente, não chegou. Verifico agora que, no período de 1971/72, em que estiveram à frente da Comopanhia o Cap Inf Celestino Ferreira das Costa e depois o Cap QEO Humberto Bordalo Xavier já havia mais 1ºs cabos, para além do José Carlos Suleimane Baldé, a quem eu ajudei a fazer a 4ª classe, eu e outros camaradas como o Marques.

Sobre a divulgação, aqui, no nosso blogue, de partes desse documento, eu quero de novo declarar que a nossa actuação na Guiné não teve nada de heróico. Como muitas outras subunidades, cumprimos a nossa missão, pese embora o facto de eu julgar que fomos duramente explorados pelos batalhões que estiveram sediados em Bambadinca.

E a releitura da história da CCAÇ 12, sob o comando do Cap Inf Carlos Brito (foto à esquerda)  vem confirmar, à distância de quase 40 anos, essa primeira impressão de quem, como eu, tendo sido actor, não pode ser advogado em causa própria. Procurei, mesmo assim, ser o mais possível objectivo, ou pelo menos factual, e distanciar-me dos acontecimentos que, muitos dos quais, eu próprio vivi como combatente sui generis (não levava granadas à cintura, andava com a G3 em posição de segurança...).

Cumprimos a nossa missão, com sangue, suor e lágrimas (um dos slogans preferidos dos nossos camaradas que faziam tatuagens no corpo). Recordo-me de algumas tatuagens: Guiné 69/71: Amor de mãe ou Guiné 69/71: Sangue, suor e lágrimas (Seria interessante estar esta forma de comunicação...).

Partimos tal como chegámos: discretamente. Na Guiné fomos amigos e solidários uns dos outros. Honrámos a Pátria, mesmo discordando (alguns, como eu) daquela guerra. Batemo-nos com dignidade e até coragem. Um terço dos operacionais foi ferido em combate. Fomos uma das primeiras unidades da nova força africana, criada por Spínola. Deixámos lá a nossa juventude...

Em contrapartida, nunca mais soube nada dos meus, dos nossos, soldados africanos. Soube há dias do José Carlos Suleimane Baldé. Soube há anos que o Umaru Baldé tinha morrido, em Portugal, de doença. (Era o puto da nossa Companhia, o nosso benjamim, não teria mais de 16 anos, quando nos foi entregue em Contuboel). Soube, com tristeza, que o Abibo Jau (entretanto tranferido para a CCAÇ 21, comandada pelo Cap Comando Graduado Jamanca e e onde terminou a sua carreira militar o Aferes Comando Graduado Amadu Djaló, membro da nossa Tabanca Grande) tinha sido fuzilado, com o Jamanca, em Madina Colhido... Portugal abandonou-os à sua sorte depois da nossa saída em Setembro/Outubro de 1974. Nós abandonámo-los à sua sorte. E isso dói-me, isso ainda nos dói...


A partir de 18 de Julho de 1969, finda a instrução de especialidade, a CCAÇ 12 foi dada como operacional, sendo colocada em Bambadinca (Sector L1), como subunidade de intervenção e reserva do CAOP2 (Bafatá), ficando pronta a actuar às ordens de qualquer um dos sectores da Zona Leste da Guiné (em especial dos Sectores L1, L3 e L5). Durante a sua primeira comissão (1969/71), actou sobretudo no Sector L1 (Bambadinca, correspondente ao triângulo Bambadinca-Xime-Xitole, mas incluindo também, a norte do Rio Geba, o regulado Cuor onde começava o famoso corredor do Morès...).

 Em Março de 1973,  rendeu a CART 3494 / BART 3873 (1972/74),  passando a subunidade de quadrícula, aquartelada no Xime, e por lá terá ficado até ao fim da guerra (às ordens do BCAÇ 4616/73). Tal significou que os nossos soldados africanos, ou uma boa parte deles (exceptuando os mortos, os feridos graves, os inoperacionais...), fizeram três anos e nove meses como força de intervanção (andaram no mato com a canhota...) e mais um ano e tal, aquartelados no Xime (de Abnril de 1973 até à extinção, em Agosto de 1974). No mínimo, cinco anos de tropa, ao serviço dos tugas. A esse tempo deveria acrescentar-se os meses e os anos em que, muitos deles, foram milícias nas suas pobres tabancas dos regulados do Cossé, Xime, Badora e Corubal, organizadas em autodefesa...

Em Julho de 1969 (e até Junho de 1970), o dispositivo das NT no Sector L1 era o seguinte:

(i) Comando e Companhia de Comando e Serviços do BCAÇ 2852 (Bamdabinca, 1968/70);
(ii) Forças de intervenção (Bambadinca): CCAÇ 12 (1969/71); Pelotão de Caçadores Nativos 53;
(iii) Subunidades em quadrícula do BCAÇ 2852: CCAÇ 2520 (Xime), 2339 (Mansambo) e 2413 (Xitole)

Havia ainda a considerar o Pelotão de Cavalaria Daimler (Bambadinca), o Pel Caç Nat 52 (Missirá) e 63 (Fá Mandinga), além das forças militarizadas (pelotões de milícias aquarteladas em Taibatá, Dembataco e Finete).

Se excluirmos a população fula armada (nas tabancas em autodefesa), no Sector L1 (mais ou menos equivalente à Região do Xitole ou Sector2, para o PAIGC), as NT poderiam ser estimadas em cerca de 1250 homens, o que nos dava uma vantagem , em relação ao IN, de talvez cinco ou seis para um. De resto, estimava-se que, no final da guerra, o PAIGG em todas as frentes não tivesse mais do que 7 mil homens em armas, cinco vezes menos do que as NT.  Em termos de populações controladas, teríamos cerca de 15 indivíduos no Sector L1, enquanto a população, balanta, beafada e mandinga, sob controlo do PAIGC, era estimada em 5 mil, concentrada sobretudo na margem direita do Rio Corubal e na região de Madina/Belel,  a norte do Rio Geba.
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Notas de L.G.


(**) Vd. poste anterior desta série >  25 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6466: A minha CCAÇ 12 (2): De Santa Margarida a Contuboel, 5 mil quilómetros mais a sul (Luís Graça)

Guiné 63/74 - P6489: As Nossas Queridas Enfermeiras Pára-quedistas (15): A minha homenagem à enfermeira pára-quedista Ivone Reis que ficou em Contabane a cuidar dos feridos graves (Carlos Nery)

Mensagem do ex-Cap Mil  Carlos Nery, Comandante da CCAÇ 2382, Buba,  1968/70, a propósito do seu comentário no Poste P5971:

A minha homenagem à enfermeira pára-quedista Ivone Reis que ficou em Contabane a cuidar dos feridos graves e pelas fotos que tirou antes de o helicóptero descer

É talvez difícil de explicar o importante que era para nós, combatentes, a chegada de uma mulher ao local de combate onde sofrêramos baixas e estávamos ainda sob o efeito dessa traumatizante experiência. Senti-o intensamente em Contabane (*), na tabanca destruída por um dos ataques mais violentos da Guerra da Guiné.

A enfermeira pára-quedista Ivone quando se me dirigiu, tenho de o confessar, era a Pausa, o Lenitivo, a Mãe distante, a Noiva, a Mulher... Que sei eu? A sua decisão em ficar connosco, contrariando o estabelecido, enquanto os helicópteros levavam a Aldeia Formosa os feridos ligeiros, prestando os primeiros cuidados aos feridos graves que, em seguida, seriam levados para Bissau, foi de uma importância enorme para afastar a nossa angústia, para pôr uma pausa no nosso desespero!

Trocámos umas palavras, disse-lhe que aquela tinha sido a "minha noite mais longa"... Ouvi-lhe palavras apaziguadoras, que ainda guardo no meu íntimo.

Passadas semanas, já em Buba, recebo uma cartinha sua referindo essa "noite longa" acompanhada por duas fotos da tabanca destruída, tiradas por ela do helicóptero. Não serão muito bem tiradas mas são o objecto mais precioso das minhas recordações da Guiné.

Meu Deus, não sei se retribuí como devia essa carinhosa atenção!

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Olhando para as duas fotos oferecidas pela Enfermeira Ivone, tenho dificuldade em perceber de que ângulo foram feitas. É perfeitamente visível, nas duas, a Mesquita. Era a única construção feita com alguma solidez em Contabane. Dentro dela se refugiaram, durante o ataque, muitos cívis e alguns militares


Nesta foto, vêem-se algumas casas poupadas ao incêndio. Para cá da Mesquita está um abrigo em princípio de construção. O solo foi cavado e, junto, estão já colocados alguns troncos de palmeira. Creio que este ponto de vista é o do lado oposto ao da instalação inimiga e, portanto, menos atingido. Julgo que o lado Norte/Nordeste da tabanca. O caminho bem marcado que se vê à direita, junto da cabeça do piloto, será o que vai em direcção ao Saltinho. Mais abaixo, do lado esquerdo da foto, para cá do abrigo em início de construção, vê-se perfeitamente uma das fiadas de arame farpado; havia duas. Esta creio que foi a lançada pela minha companhia. A outra, lançada pela 5ª. Companhia de Comandos, parece estar logo atrás, embora não tão fácil de ver, por estar mais escurecida


Esta segunda foto foi tirada de mais perto e de um ângulo um pouco diferente. É perfeitamente visível o que restou de diversas casas consumidas pelo fogo. Dispersos pela tabanca vêem-se militares e cívis examinando as consequências do ataque.

Nas duas fotos parece perpassar um ambiente de perplexidade e de angústia. Aquela Contabane plena de vida e de simpatia tinha sido ferida de morte. Porém, a Companhia de "periquitos" tinha batido o pé a Nino e aos seus morteiros e canhões sem recuo. Haveria tempo para outros recontros com o Comandante lendário.
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Nota de L.G.:

(*) Vd. poste de 27 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6479: Histórias de Carlos Nery, ex-Cap Mil da CCAÇ 2382 (2): Noite longa em Contabane

Vd. comentário de Carlos Nery no poste de 11 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5971: As Nossas Queridas Enfermeiras Pára-quedistas (12): Ivone Reis, a primeira Enfermeira Pára-quedista que conheci (Rosa Serra)

Vd. último poste da série de 29 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6487: As Nossas Queridas Enfermeiras Pára-quedistas (14): As primeiras mulheres portuguesas equiparadas a militares (2): Maria Arminda (Rosa Serra)

Guiné 63/74 - P6488: Controvérsias (78): Como foi e como é que se comporta uma anti-guerrilha perante uma guerrilha (Mário Gualter Rodrigues Pinto)


1. O nosso Camarada Mário Gualter Rodrigues Pinto, ex-Fur Mil At Art da CART 2519 - "Os Morcegos de Mampatá" (Buba, Aldeia Formosa e Mampatá - 1969/71), enviou-nos a seguinte mensagem, em 25 de Maio de 2010:

Camaradas,

Resolvi intervir, também, face ao repto lançado pelo nosso amigo e camarada Mário Fitas, no comentário que fez no poste P6470 da autoria do camarada José Manuel Diniz.

COMO FOI E COMO É QUE SE COMPORTA UMA ANTI-GUERRILHA PERANTE UMA GUERRILHA
Quase todos, para não dizer a totalidade de nós, fomos mal preparados e instruídos, para enfrentar os cenários de guerra onde, por sorte ou azar, fomos parar.

Nos centros de instrução, que todos nós frequentamos, em Escolas Práticas do Exército, especialmente nas especialidades operacionais, foram-nos administradas aulas teóricas e práticas de Guerrilha, Anti-guerrilha e Contra -guerrilha.

Também todos nós temos em mente os instrutores que se esforçavam para que as matérias ministradas, fossem compreendidas e absorvidas, tanto na teoria como na prática e, para isso, não hesitavam em dar-nos cabo do “coirão” em acções e reacções simuladas às realidades do conflito, segundo planos e programas de instrução delineadas, quer pelos próprios, quer pelos Comandantes das respectivas Unidades.

Alguns desses instrutores eram oficiais do QP, já com várias passagens por uma, ou mais, das zonas do conflito em Angola, Moçambique ou Guiné. Todos eles nos transmitiam, o melhor que sabiam e podiam, as suas experiências de combate do(s) TO(s) por onde tinham passado.

Foram-nos administrados vários tipos de instrução táctica, física e psíquica, sobre os diversos tipos de armamento e equipamento. Aprumaram-nos e corrigiram-nos à sua maneira. Estudamos os manuais e os apontamentos que nos deram.

E, o que é certo, é que na realidade acabamos por constatar ao longo do tempo no TO, que tínhamos que nos adaptar, reaprender, desenrascar à boa moda portuguesa e, sobretudo, sobreviver!

Se lerem o poste P2717, de 03AGO2008, vamos encontrar algumas considerações bem oportunas do nosso camarada A. Marques Lopes (Coronel DFA na reforma), sobre o “Manual do Oficial Miliciano” e as instruções que o mesmo continha para a guerra de guerrilha.

Passo a citar um pequeno extracto: “Não deixa de ser irónico; Este Manual foi um presente envenenado, para muitos jovens Portugueses que passaram pelo TO, com responsabilidade no comando de homens mal preparados.”

Formaram-se batalhões, companhias, pelotões e secções para uma guerra de anti-guerrilha, cujo objectivo era combater acções de guerrilha, enfrentando um adversário que tinha vasto conhecimento das nossas posições, que como todos sabemos eram fixas no terreno e nós tínhamos que “esgravatar” muito tarrafo, picadas e bolanhas para localizar o IN e, quando o localizávamos, o mesmo tinha excelente segurança na fuga, nomeadamente para zonas territoriais fora do nosso alcance, como eram os casos além fronteiras dos países que nos rodeavam e onde estávamos proibidos de entrar.

A maioria dos Sectores Operacionais não tiveram quadros logísticos de oficiais à altura dos acontecimentos e das suas responsabilidades. Desconheciam quase tudo sobre o IN, as suas estratégias de acção, os seus números de efectivos, a sua localização no terreno e outros dados fundamentais. Não é segredo para ninguém que a sua maioria se refugiava dentro dos aquartelamentos deixando as hostilidades no exterior, a cargo dos alferes e furriéis milicianos.

Os mapas de Sector e ZA estavam na sua maioria desactualizados, pois neles constavam tabancas já desaparecidas, linhas de água inexistentes e estradas e trilhos que o mato tinha absorvido através do tempo e do abandono.

Nos croquis que nos eram distribuídos para os diversos tipos de missões, constatamos que diversas cotas e distâncias estavam erradas, o que nos levou, várias vezes, a entrarmos dentro de ZE do COMCHEF (as chamadas ZV).

Tivemos de rever o armamento por nossa iniciativa, por exemplo, concluímos que era inútil levar uma bazuca para o mato, pois só nos atrapalhava e não era prática.

Aumentamos, isso sim, o número de portadores de dilagramas a fim de acrescer o poder de fogo e em vez de levarmos uma HK, passamos a sair com duas (uma á frente das colunas e outra na retaguarda). Deixamos crescer as barbas e tornamo-nos “bichos do mato”, desenvolvendo sobretudo técnicas e manhas preciosas nas deslocações pelo meio da mata.

Mais tarde quando já conhecíamos toda a nossa ZA e sem precisarmos dos mapas e croquis, para executarmos as nossas missões e com a experiência que fomos acumulando sobre os comportamentos habituais do IN, fizemo-nos “esquecidos” de ordens obsoletas e teóricas e começamos a obter maior êxito nos resultados finais.

No entanto não posso deixar de narrar consequências negativas, que por vezes éramos obrigados a fazer em nome da segurança.

A minha Companhia tinha a ser cargo e como missão principal interceptar e dificultar ao máximo os movimentos e as colunas de abastecimento do IN, no corredor de Missirã, que derivando de Salancur se dirigiam ao Sector de Xitole.
Como é previsível atingir, era um local de forte risco de contacto e todo o cuidado de aproximação e instalação do pessoal, era feito de uma forma cuidada e discreta.

Os momentos aí passados quando nos encontrávamos emboscados eram tensos e cheios de angústia, dada a eminente passagem do IN, pelo que, o silêncio, a concentração e a observação de qualquer movimento suspeito eram fulcrais neste tipo de espera.

Só que, para nosso espanto pessoal, muitas vezes os Senhores do Comando Operacional resolviam dar uma voltinha de DO, pelas nossas posições denunciando-nos, involuntariamente como é óbvio, ao IN. O que nos tinha custado tanto suor e dor alcançar desmoronava-se assim, em instantes, pela satisfação dos primeiros em dar a sua voltinha numa DO.

Nessas ocasiões as emboscadas eram logo abortadas por nós, pois já sabíamos que tínhamos sido referenciados e não estávamos ali a fazer nada, regressando a posições mais confortáveis e menos perigosas, passando o resto do tempo em alerta até ao termo das respectivas missões.

Mário Fitas, o meu tempo não teve nada a ver com o teu, teve a ver com circunstâncias do meu Sector e com quem nos comandou e dirigiu.

Os comportamentos de Anti-guerrilha perante a Guerrilha, foram aqueles que os nossos comandantes delinearam, mas não comandaram.

Poucos deram o corpo ao manifesto e foram os milicianos que tiveram a responsabilidade e a iniciativa, muitas vezes espontânea e circunstancial.

Um abraço,
Mário Pinto
Fur Mil At Art
Emblema de colecção: © Carlos Coutinho (2009). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

Guiné 63/74 - P6487: As Nossas Queridas Enfermeiras Pára-quedistas (14): As primeiras mulheres portuguesas equiparadas a militares (2): Maria Arminda (Rosa Serra)

Tenente Enfermeira Pára-quedista Maria Arminda em farda N.º 1 (Maio de 1967, aos 29 anos)


As Primeiras mulheres portuguesas equiparadas a militares - II

Enfermeira Pára-quedista Maria Arminda

Uma Maria, que apesar de ter trabalhado directamente com ela tão pouco tempo foi o suficiente para perceber as suas características como enfermeira, como companheira e como pessoa.

É uma das seis Marias que não esconde o orgulho em ter pertencido ao grupo das primeiras mulheres pára-quedistas portuguesas, inseridas nas Forças Armadas e ainda hoje se agita quando vê uma boina verde à distância na cabeça de um militar.

Fala com vaidade no pai, que foi combatente da 1.ª Guerra Mundial e com memória de elefante que lhe é peculiar, relata a história que ouvia dele quando pequena com tanto orgulho, que quem a ouve não deixa de se pôr a fantasiar, imaginando e comparando a guerra dessa época com a guerra que muitos anos mais tarde, ela tal como todas nós, viveu em África.

Da mesma forma lúcida, lembra-se como ninguém, da história e dos episódios passados desde o começo das enfermeiras pára-quedistas.

Desembaraçada na prestação de cuidados de enfermagem, sempre disponível para ajudar as famílias, para levar ou trazer encomendas, filhos pequenos que estavam cá e iam ter com os pais ou vice-versa, de sorriso fácil sem nunca denunciar má vontade. Quando fazia a continência a comandantes ou ao mais humilde soldado, a postura correcta e respeitosa era a mesma, na maior das perfeições.

Andou por todos os lados, ainda sem estarem estruturadas e organizadas as acções que as enfermeiras vindouras vieram a encontrar. Há muita marca da Maria Arminda na orgânica e na actuação das enfermeiras pára-quedistas em situação de guerra tal como nas evacuações transatlânticas.

É contagiante o seu entusiasmo. Se fosse no tempo de hoje seria com certeza uma mulher militar nos altos comandos. Decidida, disciplinada, com atitudes sensatas e sérias, com orgulho em manter as botas a brilhar e a boina bem colocada na cabeça. Se fardada de saias ou bata tudo estava em ordem, sempre pronta com tudo organizado para qualquer saída de emergência mesmo que as probabilidades de ser ela a executa-la estivesse em último lugar.

Estava sempre atenta; captando o sofrimento facilmente e os seus gestos eram orientados nas causas humanas para a dor no seu sentido mais amplo. Ainda hoje para a contactar, damos graças a Deus por estarmos na era dos telemóveis, porque a Maria Arminda ou está acompanhar a vizinha a uma consulta, ou no hospital com algum familiar, ou a sogra de um amigo que precisa de qualquer coisa, não pode falar porque está num velório, enfim, está sempre junto daqueles que precisam de algo, ou que no mínimo lhe passe pela cabeça que alguém fica mais feliz se ela se disponibilizar para resolver qualquer coisa ou estar presente.

Apesar daquele ar militar bem alinhado (à pára-quedista da época) era a que mais se preocupava quando se vestia à civil para irmos a um jantar ou festa. Estou a recordar-me de quando estive com ela nos Açores e tivemos um convite para uma festa no clube de oficiais americanos.

A festa foi logo no dia seguinte à minha chegada e qual o meu espanto quando ao bater na porta do seu quarto para lhe perguntar qualquer coisa, a vejo deitada na cama, já de banho tomado, vestida de roupão e de rodelas, de batatas, em cima dos olhos em perfeita postura de relaxamento. Admirada, porque eu desconhecia esses truques caseiros usados para a beleza feminina, pergunto o que lhe tinha acontecido e ela sorrindo pela minha ignorância explicou que era para diminuir as olheiras.

Depois quando se apresentou pronta, reparei que foi a que mais se mirou ao espelho, perguntando-nos se ia bem, se os sapatos condiziam bem com a carteira, se o vestido assentava na perfeição, se o brilho do batom não era exagerado, etc, etc, etc.

Fiquei de boca aberta. Aquela enfermeira que fardada de militar não realçava o seu lado feminino, de repente transforma-se na jovem mais preocupada em mostrar que também tem cuidado com a sua imagem de mulher.

É assim a Maria Arminda. Uma mulher de "M" muito grande.

Rosa Serra
Ex-Enfermeira Pára-quedista


Maria Arminda com o pastor Alemão da Companhia de Cufar (Guiné Portuguesa, Junho de 1965).

Evacuação de feridos a bordo de um DC6 de Lourenço Marques para Luanda (Setembro de 1969)

Base de Bissalanca a bordo de um Dornier 27 (Guiné Portuguesa 1966)

Mesmo nas horas de lazer e brincadeiras, a Maria Arminda embora bem fardada, não deixou de levar às cavalitas a Sargento Lurdinhas.
__________

Nota de CV:

Vd. primeiro poste da série de autoria da nossa camarada ex-Alf Enf.ª Pára-quedista Rosa Serra (BCP 12, Guiné, 1969), com data de 27 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6478: As Nossas Queridas Enfermeiras Pára-quedistas (13): As primeiras mulheres portuguesas equiparadas a militares (1): As 11 candidatas (Rosa Serra)

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Guiné 63/74 - P6486: Depois da Guiné, à procura de mim (J. Mexia Alves) (4): Sem Caminho





1. Mais um bonito texto de Joaquim Mexia Alves*, ex-Alf Mil Op Esp/RANGER da CART 3492, (Xitole/Ponte dos Fulas); Pel Caç Nat 52, (Ponte Rio Udunduma, Mato Cão) e CCAÇ 15 (Mansoa), 1971/73 para a sua série:





DEPOIS DA GUINÉ, À PROCURA DE MIM

20 ANOS DEPOIS (4)

SEM CAMINHO

Tenho os olhos abertos
mas não vejo,
o meu futuro.
Tenho os braços estendidos,
as mãos abertas,
mas não agarro
o meu presente.
Os meus pés movem-se para a frente,
mas não me afastam,
do passado.
Olho em frente,
e vejo caminho,
mas quando o começo a percorrer,
ele foge de mim,
e dá-me um horizonte
sem fim.
Olho para trás,
e fujo,
mas o passado agarra-me,
ultrapassa-me até!
Que coisa estranha,
esta é,
o querer daqui abalar,
sem antes
aqui chegar!
E lá vem o poeta,
na sua frase imortal,
«tudo vale a pena,
se a alma não é pequena»,
e aqui é que está o mal!
É que a minha é tão pequena,
que nem a consigo encontrar!
Esconde-se de mim,
troca-me as voltas,
faz de conta que eu não existo,
ou melhor,
ou pior,
sei lá eu,
faz de contas que não existe.
Vagueio assim pela vida,
olhos fechados ao caminho,
e oiço-os,
os outros,
bem atrás de mim,
dizendo baixinho,
olha, lá vai o “sem alma”!
Mas o que é que isso lhes interessa,
o que têm a ver comigo,
se eu próprio não me interesso,
se só a indiferença me acalma,
para que me querem,
como amigo!
Olho para dentro de mim,
vejo tudo,
e nada vejo.
Fecho os olhos,
adormeço,
deixo que o sonho,
seja esperança,
confiança e vida em mim.
Deixo-me ir,
assim,
devagarinho,
já não há muito caminho,
porque o princípio…
é no fim…


91.12.12


Um abraço do
Joaquim
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 26 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6471: Vídeo: Fado da Guiné (letra original e voz de Joaquim Mexia Alves)

Vd. último poste da série de 19 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6431: Depois da Guiné, à procura de mim (J. Mexia Alves) (3): Sem título I

Guiné 63/74 - P6485: (Ex)citações (77): Breves notas em Lá menor (Torcato Mendonça)

1. Mensagem de Torcato Mendonça* (ex-Alf Mil da CART 2339 (Mansambo, 1968/69) em mensagem datada de 26 de Maio de 2010:

Caros Editores
Vai para o Carlos Vinhal pois, pelo que leio é ele que fará uma chamada de atenção para o assunto.
Podia escrever sem ser em email. Prefiro assim. Têm sido dias de adrenalina, de múltiplos afazeres e de menores lazeres. Dias de vida e de vidas. Vida ou vidas vividas e, para mim, melhor que vidas paradas. Mas:

- Hoje há "A Guerra". Parece ir tratar de assunto com interesse. Trata?! Aflora como de costume. Lança no ar para memória futura. Era bom que se falasse daquela barragem. Pode não ser assunto para este blogue. Tudo bem. Que outros o façam. Merece ser conhecida toda aquela obra, tudo o que pode ser dito do antes, da construção e do depois. Outros o farão e será bom que o façam. São bocados do nosso passado colectivo.

- A seguir, ainda no canal estatal 1, "As Bandeiras dos nossos Pais". Para quem gostar vale a pena. Para quem não gostar pode ver. Ainda e para ver pelos que detestam guerras. Não por masoquismo. Não, nada disso.

- Comentei um Poste do LG e cometi um erro. Fui corrigido e bem por um camarada. Não fiquei aborrecido. Até pela forma, subjectivo claro, de fina ou subtil ironia. Só que não conhecia e fiz uma pergunta terrível. Quem és tu? Simples?! Pois e a resposta? Mas o comentário levava-me a querer saber quem era. Veio a resposta do Luís Graça e dele. Só que há dias em que as dez são madrugadas... espero que não tenha melindrado ninguém. Detesto. Sou capaz de ser "carroceiro" mas só em circunstâncias muito diferentes. Creio estar tudo esclarecido. Mas:

- Nada mais disse, além de enviar parabéns a dois jovens.
Mesmo o fado do Mexia Alves... ah fadista e youtubista ca ganda camarigo... e a pipa de massa que ele gastou para se rejuvenescer assim? É obra. E canta camarada camarigo e encontra-te e que te sintas feliz...
Nem disse que um furriel comandava um pelotão ou grupo de combate como um alferes. Conheci um que era melhor que o "chefe". No meu grupo, teve quatro furriéis, qualquer um deles comandava se necessário fosse. Fomos "educados" da mesma maneira, pelo Comandante de instrução Cap. Comando (General hoje) Victor Oliveira. Claro que um foi para os Comandos e foi substituído por um que não tinha tirado a especialidade connosco. Outro, foi ferido e ficou em Bissau, sete ou oito meses a tirar estilhaços. Foi substituído por um 1.º Cabo até ao fim da comissão. Diacho!

- O Nelson Herbert diz:- Haja mais Estado, mais governo... lá num País. Cá, neste País, dizem: Menos Estado... fora com o Governo. Há cada uma?

Finalmente:

- DN, hoje 26 de Maio, a páginas Centrais - 28/29. O Presidente de Cabo Verde Pedro Pires dá uma entrevista. Pequena mas com alguma contundência. A ler com atenção. Gostei. Este homem é determinado, esteve empenhadamente e sabendo o que queria, nas negociações para a independência, pós 25 de Abril.

Hoje Cabo Verde é o que é. Só que eu não gostei da referência ao Marechal Spínola - foi completamente derrotado na Guiné. Não. Nem ele nem os portugueses o foram, apesar de tudo o que se passou. Não posso falar abertamente, mesmo em email e, para meias tintas nada digo.

Como me calo com a lusofonia. É o que é. Contudo na base está o meu Povo. Povo generoso, de dádiva e entrega, de erro e de colonialismo suave. Porque é Cabo Verde assim? A primeira vez que por lá passei estranhei o "verde", não estranhava a música, a poesia... e na base o que está se não o meu Povo? Povo que até cria a mulata de Cabo Verde ou do mundo. Bem ia por aqui fora, falando do mundo que até é redondo e um português... ou o bom na Ásia ou de tanto lado... Povo de Fado, fado triste, das vielas, de amores e desamores... povo do mundo...

Leiam a entrevista que vale a pena. É grande estadista, merece o meu respeito e consideração. Fazem falta homens com ele noutros lugares por onde o meu, o nosso, Povo andou, labutou, pelejou e um dia abalou... acreditemos no futuro.

Camarada(s) se vieste por aí abaixo lendo... olha... estou outra vez de saída próxima e não quero ou vos quero aborrecer.

Gostava de falar de alguns pontos anteriores, estendê-los, debatê-los. O tempo passa e fica para um dia ou escrito fica no arquivo morto.

Um abraço do Torcato
Torcato Mendonça
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 18 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 – P6423: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (21): Zumbidos em noite de Verão

Vd. último poste da série de 27 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6481: (Ex)citações (60): Urnas com pedras e areia (Eduardo Ferreira Campos & Manuel José Ribeiro Agostinho)

Guiné 63/74 - P6484: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (19): Baptismo de fogo adiado

1. Mensagem de José Câmara (ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73), com data de 15 de Abril de 2010:

Caro Carlos Vinhal,
Em anexo encontrarás mais uma pequena história do meu roteiro pela Mata dos Madeiros.

Votos de boa saúde para ti e para todos os camaradas.

Um abraço amigo do tamanho do oceano que nos une.
José Câmara



Memórias e histórias minhas (19)
Baptismo de fogo adiado


A estrada desventrava, com prazer sádico, a virgindade da Mata dos Madeiros. Esta não mais seria a mesma. Cem metros de desmatação, abertura, leito e alcatroamento eram conseguidos, diariamente, em nome do progresso social e de uma estratégia militar que facilitava a comunicação terrestre Bissau/Cacheu, via Teixeira Pinto, e separava as míticas matas do Balenguerez e da Caboiana.

Ali mandávamos nós, embora soubéssemos que o perigo rondava por perto. O tempo se encarregaria de o comprovar.

O acampamento já era então visível a mais de um quilómetro na longitunital da estrada em relação ao corte da desmatação. Isso trazia-nos apreensivos na medida em que as nossas defesas contra flagelações eram bastante exíguas, e os nossos movimentos podiam ser seguidos à distância.

As nossas saídas diárias para o mato também tiveram que se adaptar à nova realidade. Muitas delas eram feitas pela estrada, e virando à esquerda no extremo frontal da descapinação. Este tipo de saída era o que mais temíamos. O avanço, a decoberto, era feito até atingirmos o corte da desmatação e não podíamos penetrar na mata, já que essa zona pertencia a outra força de intervenção. Assim, não nos restava outra alternativa que não fosse prosseguir ao longo do corte, zona ideal para uma emboscada. Pior, a possibilidade de uma infiltração IN no meio das duas forças de intervenção também não era de desprezar.

Na noite do dia 22 de Abril de 1971, um dos sentinelas no acampamento apercebeu-se de uma fogueira na orla frontal da desmatação a cerca de um quilómetro de distância. Dado o alarme, de imediato foi accionado todo o dispositivo de defesa do acampamento, ao mesmo tempo que os dois grupos de combate que se encontravam fora e a outra força de intervenção, neste caso a 26.ª CCmds, eram avisados. E foi desta última força que recebemos a mensagem para que não nos preocupássemos, pois que a fogueira tinha sido ateada por descapinadores que, possívelmente, teriam falhado a hora de recolher ao acampamento.

Relaxámos, é certo, mas ninguém saíu da vala. Até porque a fogueira ardeu toda a noite...

Elementos da CCaç 3327 em progressão nas matas da Guiné. Na frente o Soldado At. António S. Júnior da minha Secção. A seguir o Soldado Trms António Almeida.

Com o amanhacer os dois grupos da CCaç 3327 que estavam de saída ultimavam os preparativos. O intinerário desse dia seria feito pela estrada, passando junto do sítio onde ardera a fogueira.

Eu, a mando do capitão, segui na escolta para o Bachile. Neste quartel estava a secretaria da Companhia onde, sempre que possível, ajudava nos trabalhos da mesma. Era um trabalho que me agradava fazer. Nessa altura eu mantinha boas relações com o 1.° Sargento João Augusto da Fonseca, que mais tarde viria a ser transferido para a Companhia Terminal.

Foi à entrada do ramal para o Bachile que o Soldado das Transmissões, ao comunicar a nossa posição e aproximação àquele quartel, se apercebeu que algo de anormal se estava a passar.

Para horror nosso, sem precisar os dados, saíu-lhe mais ou menos estas palavras:

- A malta está a embrulhar e há feridos!

Foi já dentro do quartel do Bachile que tomámos conhecimento mais aprofundado do que se passara junto do acampamento.

A força da 26.ª CCmds ao levantar a sua emboscada nocturna resolveu fazer a sua aproximação ao local onde iria ser rendida, ao mesmo tempo que os capinadores davam início à sua tarefa diária. Para o efeito seguiu a zona da orla da desmatação fazendo o percurso inverso que estava programado para os grupos da CCaç 3327 e passando junto ao local onde a fogueira ardera toda a noite.

Foi nesse trajecto, através da orla da mata, que se deu a emboscada. Os Comandos, homens experientes por muitos meses de comissão, detectaram a emboscada e foram os primeiros a disparar sobre os elementos IN que haviam infiltrado a zona vestidos de simples capinadores. Foram eles que, despreocupadamente, tinham feito a fogueira para se aquecerem durante a noite. Não contaram, isso sim, que os grupos da CCaç 3327 iriam atrasar a sua saída e, muito menos, contaram com os Comandos a surgiriem naquela zona.

Foi assim que descrevi este episódio à minha madrinha de guerra.

Aerograma de 24 de Abril de 1971:

"...Voltando à realidade da vida aqui, ontem houve barulho a sério a cerca de 1 km do meu acampamento. Dois comandos e três civis ficaram feridos e tiveram que ser evacuados. A minha Companhia não estava presente, e eu nem estava no acampamento. Tinha ido ao Bachile. Nem cheguei a ouvir o barulho.

Amanhã devo ir para o mato, só regressando na segunda-feira. Tudo irá correr bem se Deus quiser
."

Recentemente, em troca de emails com o nosso ex-Fur Mil Enfermeiro Rui Esteves, a quem coube a responsabilidade de prestar os primeiros socorros aos feridos, pedi-lhe que me ajudasse a reconstituir o que então se passou no seu mister. Foi assim que ele descreveu o episódio:

"O ataque do PAIGC à 26.ª Companhia de Comandos

Este ataque devia estar-nos destinado, os nossos IN é que não reparam bem no armamento dos nossos camaradas Comandos (se bem me lembro, ninguém usava G3) e atacaram.

O ataque dos PAIGC's à 26.ª Companhia de Comandos no local do nosso primeiro acampamento - houve vários feridos, entre os quais alguns do IN que, por estarem mais feridos, tiveram prioridade na evacuação de helicóptero (prioridade estabelecida por mim). Tive até que meter na ordem um dos meus cabos enfermeiros que não queria tratar os feridos do IN.

De entre os nossos feridos estava um Furriel Comando que era muito porreiraço e já era a segunda ou terceira vez que apanhava uns estilhaços. Desta vez, tinha as costas com uns poucos de buracos superficiais, que tratei com pouco mais que betadine, gaze e adesivo. Quando esta Companhia acabou a comissão, este furriel fez-me herdeiro de alguns bens - ofereceu-me uma ventoínha eléctrica e um caixote para guardar as minhas coisas
."

Essa emboscada acarretou outro tipo de problema. Os capinadores tentaram aproveitar este episódio para abandonar os trabalhos da estrada. Para os aguentar foram necessários alguns tiros para o ar e o aprisionamento de dois indivíduos que pareciam ser os chefes desta nova postura. Até aí nunca houvera qualquer problema com os civis. Sanado o incidente, a vida no acampamento voltou à normalidade, mas com uma preocupação acrescentada. Agora tínhamos a certeza que o IN estava na zona e que iria dificultar a nossa missão.

Por enquanto, a guerra passara ao nosso lado. O nosso baptismo de fogo ficara adiado.

José Câmara
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 24 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6237: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (18): Estados de alma, aerograma de 20 de Abril de 1971

Guiné 63/74 - P6483: Notas de leitura (113): As ausências de deus, por António Loja; Editorial Notícias, 2001 (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso Camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil At Inf, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Maio de 2010:

Queridos amigos,
Dá satisfação encontrar prosa tão boa, irrecusável, daquela que a nossa descendência irá relembrar.
Hoje vou à Associação 25 de Abril buscar mais livros.
Confio que os camaradas dos blogue não se esqueçam de me dar o apoio que lhes for possível, dando-me a saber se têm lá em casa algumas relíquias que caibam dentro destas recensões.

Um abraço do
Mário


Do hospital para a guerra, lá entre Mejo e Guileje

por Beja Santos

A narrativa “As ausências de Deus – no labirinto da guerra colonial”, de António Loja (Editorial Notícias, 2001) é um relato assombroso de um comandante de companhia, oficial miliciano, que de Buba foi lançado nalgumas das zonas mais ásperas do Sul da Guiné. Cerca de trinta anos depois, a pretexto de uma hospitalização, farrapos dessas memórias, possivelmente as mais intensas e discrepantes, assomam, aparecem associadas à sua vida de internado, antes, durante e depois os actos operatórios.

Por vezes entre o pesadelo e a insónia, aquele Sul da Guiné regressa implacavelmente. Está-se em progressão para um objectivo, através de terrenos encharcados, acompanhados por mosquitos insuportáveis: “Levantavam-se do solo em nuvens densas que nos invadiam a boca e o nariz. Para ficarmos com as mãos livres, cada um de nós sacou do grande lenço verde que o generoso Exército fornecia aos seus heróis e amarou-o na nuca, cobrindo com ele a boca e o nariz, o que nos permitia respirar com alguma limpeza. Parecíamos Zorros”. Segue-se pela floresta, abre-se o caminho à catana. Um soldado transmite ao capitão o que um dos alferes, lá à frente, considerava importante que soubesse: que o pessoal estava com medo de atacar. Nisto rebenta a poderosa reacção do inimigo, urge pedir apoio aéreo, o capitão dirige-se ao radiotelegrafista, o Gordo, sempre a lamentar-se dos seus pés chatos. Segue-se a descrição:

“Cheguei ofegante da corrida, deita-me com a arma dirigida para a frente e disse ao telegrafista, estava estendido junto do rádio:

– Liga ao comando!

Não tive resposta. Julguei que ele estivesse com medo.

O medo do radiotelegrafista, se existira, já tinha passado. Quando me cheguei para junto dele, para o chamar ao dever, o corpo estava inerte, perto do rádio. Neste escorria uma massa gelatinosa e ensanguentada. Eram pedaços do cérebro. A parte superior do crânio tinha sido aberta por um estilhaço de granada de morteiro... Tirei o rádio das costas do morto. Encostei-o a uma das árvores, comecei a limpar o quadrante e os botões de sincronização, para tentar ligar ao coronel que voava nos céus diáfanos gritando ordens histéricas. A frequência estava correcta e logo apanhei o homem do outro lado. A besta queria um Relim, um relatório imediato.

– Puta que o pariu! – berrei”

Não há condições de pedir um helicóptero imediatamente, corre-se o risco de se apanharem emboscadas sucessivas, transportam-se feridos em padiola, bem como o corpo do Gordo. O capitão reflecte amargamente: governar é escolher, ao decidir poupar a coluna a uma eventual mortandade, lá vão caminhando aos tropeções a mentir aos feridos, o Toni gemia constantemente e chamava pela mulher e pelo filho que ainda não conhecia, até que o Toni morreu, com tanto sofrimento.

Quando se tratou de evacuar os feridos, havia aqueles dois mortos que o piloto lembrou que não podiam ser transportados. O capitão apela à sua boa vontade. O piloto resiste. Quem desempatou foi a enfermeira, que encontrou uma fórmula à altura:

“ – Desculpe, meu capitão, mas estes homens não estão mortos, mas sim gravemente feridos e provavelmente morrerão no trajecto. Mas estão vivos”. Retirou os cartões de identidade, salvou a coluna de mais sofrimentos inúteis.

Naquele hospital de Coimbra, o ex-capitão miliciano reaprende a andar e, abruptamente, recua trinta anos, lembrou-se do cabo Calçada, que apanhara uma rajada de metralhadora no tórax, numa emboscada na estrada Mejo – Guileje. O furriel enfermeiro previu o pior, o Calçada safou-se, mesmo com a extracção de um pulmão. O seu capitão foi visitá-lo. O encontro é impressionante:

“De repente, vejo avançar um homem magro, em pijama, agarrado a um suporte metálico com rodízios, onde se suspendia um invólucro transparente com soro. O homem olhava fixamente para mim, que, de tão perturbado, mal via o que se passava à minha volta. Mas, quando levantei para ele o meu olhar, descobri a cara risonha do Calçada, que de novo me piscava o olho e me dizia, arfando:

– Ainda cá estou, meu capitão.

E estava. Para ficar. Porque era mesmo invencível. Dera um pontapé na morte. Dispensado da guerra, veio lutar por uma causa mais digna: o dia-a-dia de um ser humano com vontade de viver”.

Não hesito em afirmar que alguns destes parágrafos da narrativa de António Loja farão parte, obrigatoriamente, de todas as antologias que se escrevem sobre a guerra da Guiné. Pela intensidade na transmissão das emoções. No sucinto da escrita, que se levanta como a mão que apedreja o que já esquecemos ou que ignoramos: aqueles dois amigos que andaram juntos na escola, que foram recrutados no mesmo ano, destacados para a mesma unidade, quase dois gémeos típicos que caíram juntos e que depois foram enviados às suas famílias em dois caixões que viajaram no porão do mesmo navio e que depois foram enterrados no mesmo cemitério, nos arredores de Barcelos; as confidências do Francisco, o condutor do rebenta minas, que vai casar dentro de dois meses e que deixou de sentir tesão, houve urgência em tomar medidas para combater o stress; o “Roncolho”, um herói improvisado que um dia gritou “ai minha mãe!” lá numa emboscada e quem o capitão teve de dar uma estalada e que estupidamente morreu na véspera da partida, atropelado para os lados do aeroporto de Bissau; as queixas da dobrada liofilizada, dos coronéis incapazes, dos momentos de depressão que assaltam toda a gente; daquele aviador que durante uma operação achou que não devia almoçar em Mejo e o alferes disse ao cabo Chico e pegar numa metralhadora e caso o helicóptero levantasse lhe desse uma rajada das grossas. Nunca mais vou esquecer este livro de António Loja, grato pela sua humanidade e o vigor da sua escrita.

Despeço-me dele com um doloroso parágrafo, inesquecível:

“A mina devia ter algum defeito. Quando o rodado da frente da GMC passou sobre ela, nem rosnou. Só quando o rodado traseiro caiu pesadamente no tronco de palmeira atravessado na picada é que ela rebentou com toda a violência. E, com isso, fez explodir também o depósito de gasolina que lhe ficava por cima. Estava atestado e espalhou a chama ardente à sua volta. O soldado que caminhava ao lado do veículo, de espingarda a tiracolo, parecia uma tocha. Correu como um louco sem direcção definida. Saltámos em cima dele com as camisas arrancadas dos nossos corpos para apagar o fogo, mas era tarde para conseguir qualquer resultado. O rapaz estava irremediavelmente queimado e levou pouco tempo a morrer”. Ainda há mais dor à frente deste relato: a aprendizagem com o cheiro da morte, com o fedor horroroso que se desprendia do caixão quando houve que o perfurar para que a caixa de chumbo interior não estoirasse. Coisas da guerra, tudo por causa de uma operação; bendita foi a hora em que ela ocorreu, lá no hospital em Coimbra, em que António Loja relembrou os tempos que passou na Guiné.

O livro foi-me oferecido pelo José Brás, que tem procurado assistir-me nesta aventura da caça aos livros. Fará parte da biblioteca do nosso blogue.
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 27 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6477: Notas de leitura (112): As ausências de deus, de António Loja (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P6482: (Ex)citações (76): Há mais de quarenta anos, ainda falamos dos nossos mortos! (José Marques Ferreira)


1. O nosso Camarada José Marques Ferreira, ex-Sold Apontador de Armas Pesadas da CCAÇ 462, Ingoré - 1963/65 -, enviou-nos em 22 de Maio de 2010, a seguinte mensagem:

Camaradas,

Tenho andado muito ocupado (?!). Melhor dizendo sem muita vontade e motivação para enviar «estórias».

Esta penso que vai originar algumas reacções, já que falo dos meus sentimentos em relação à forma como os nosso mortos foram tratados. (*)



HÁ MAIS DE QUARENTA ANOS, AINDA FALAMOS DOS NOSSOS MORTOS!
ESTA É UMA INDIGNIDADE QUE SÓ VAI DESAPARECER COM A ELIMINAÇÃO NATURAL DESTA GERAÇÃO!

As minhas desculpas pela ausência a que tenho votado o que devia ser uma presença «obrigatória» nesta Tabanca, grande de mais, mas demasiadamente respeitada e saudosa, para que a possamos «esquecer» durante tanto tempo.
E eu, ao que se confirma, tenho esquecido. Mas parece que não andava bem da minha consciência se não viesse aqui desabafar e confessar os meus sentimentos, neste caso de revolta. Tinha de me manifestar. E qual o melhor local, se não aqui?
Confesso ainda que andei largas dezenas de anos completamente enganado (sem aspas para amenizar a interpretação da palavra, nem nada, é a realidade), porque em 1963 e nos anos seguintes, pensava eu que os nossos camaradas falecidos, pelas causas mais inverosímeis, fossem trasladados para as suas terras sob a responsabilidade e custos do Estado Português.
Puro engano. Se houver pachorra para ler o resto da história, aí vai o meu raciocínio daquele tempo de 1963/1965.
E era assim: Íamos prestar serviço militar obrigatório. Já naquela altura, até as empresas privadas tinham, para os seus trabalhadores, a transferência de responsabilidade para Companhias de Seguros, dos riscos a que estavam sujeitos os seus colaboradores a eventuais acidentes de trabalho. E em caso de acidente, era a Companhia de Seguros chamada a responder pela responsabilidade que o caso a obrigava.
No nosso caso, não era privado. Mas era um serviço, visto aos olhos de alguns (muitos) de bastantes riscos, mas também que colocavam os militares em certa posição de prestígio (para o regime), mas isso não pagava as situações de deficiência e de morte. E o nosso patrão era o Estado.
O que é certo é que éramos «despachados» para as diferentes frentes de batalha, sem saber as condições em que o fazíamos.
Isto vem a propósito dos mortos em combate, por doença, em acidentes vários e na evacuação de feridos graves, que se verificava, quando a mesma resultava da necessidade de assistência médica, quer por doença, e, principalmente, em combate.
Já o disse que a minha campanha na Guiné,  sendo de algum turismo, teve também alguns momentos menos bons. Mas não maus de todo. E, no meio de toda esta sorte, apenas houve duas baixas, num caso por acidente na montagem de uma armadilha e outra por doença.
Mesmo antes de ter sido admitido na Tabanca Grande, e foi por isso que aqui vim parar, andei a vasculhar a Internet, à procura dos dois camaradas falecidos. E a minha surpresa foi grande, do tamanho da minha revolta.
Encontrei os seus nomes identificados em duas campas, com os respectivos números, no cemitério de Bissau. E eu, até ali e durante tanto tempo (repito) a pensar que o Estado Português os tinha trasladado para as suas terras natal.
Confesso que fiquei revoltado, indignado, por admitir que todo aquele que tombava na guerra, o Estado colocava os seus restos mortais cá, ao menos por uma questão de justiça, de memória, de respeito pelos próprios, pelos seus familiares, esposas, filhos e outros.
De modo que, os mesmos, pudessem sufragar com a dignidade que a morte merece. Embora a morte seja uma passagem, pelo menos para mim, para a minha consciência e fé. Mas os que os amavam é que sofriam! Neste caso, é de censurar o comportamento e postura das autoridades a quem tínhamos de obedecer (contrariados em muitos casos) e que é ponto para afirmar, ainda debaixo da emoção e da irracionalidade em que nos colocavam involuntariamente, que, ao fim e ao cabo, não cabiam na hipocrisia de quem tinha que tomar decisões.
Falta-me, neste longo desabafo, dizer que aqueles que conheci e com quem convivi, e que encontrei identificados num blogue qualquer (de que já nem sei o endereço), mas que também parece que estão aqui mencionados no nosso blogue, foram o 1º Cabo de minas e armadilhas, José Gonçalves Rua, de Penude - Lamego, na fatídica data de 27 de Agosto de 1964, quando a armadilha que montava rebentou, sendo sepultado na campa do cemitério central de Bissau com o número 1020.
E o 1º Cabo Artur Branco Gonçalves (um rapaz alto e esguio), falecido em 13 de Outubro de 1964, no Hospital Militar 241, por doença, salvo erro de origem gástrica (úlcera?), e que ainda me lembro ele andar a queixar-se ao médico. Quando foi evacuado de helicóptero para ser operado, não terá havido tempo. Era de Vilarelho da Raia, concelho de Chaves, ali perto da fronteira com Espanha, onde muitos portugueses iam, normalmente, comprar caramelos espanhois.
Por outro lado, tudo vem a propósito não só pelo facto de há muitos meses (ou já anos) ter descoberto isso, como ainda pelo facto hediondo de agora descobrirem que, muitas vezes, nas urnas vinham sacos de areia e pedras. Já li casos idênticos noutros locais.
Num caso de que não me lembro a origem, dentro da urna foram detectados os rolos dos cibes que usávamos para diversos fins, desde fazer pontões, a meios de defesa, como eram o caso dos abrigos e das torres de vigia, que depois se começou a dispensar pelo perigo que originavam, neste último caso.
Então o Estado não tinha dinheiro (nem se gastava nada, pois as urnas eram metidas nos navios e vinham com todos os militares regressados) e andava a gastá-lo com uma urna a «esconder», a camuflar, um corpo que apenas era do interesse (humanamente falando e que devia ser respeitado) da família?
Há outros relatos e factos verídicos perfeitamente inadmissíveis, mas que as circunstâncias em que se encontravam não permitiam outra solução que não fosse o seu sepultamento mesmo ali. Mas, primeiro, os nossos soldados…
Quanto não terá custado aos seus camaradas tomar atitudes destas!
Ah! Como o tempo é o grande responsável pelas límpidas respostas que nos apresenta em todas as vertentes da vida…
Revoltado, revolto-me (passe o pleonasmo) e odeio estes comportamentos inaceitáveis da falta de ética, de sentimentos e de respeito para com todos aqueles que «batiam por lá o costado», frase vulgar utilizada naqueles recuados tempos.
Desculpem, porque se continuo ainda serei incomodado…
Para aqueles que ainda têm a dita de ler isto, vai o meu profundo reconhecimento de respeito, consideração e amizade.

Um abraço para todos,
J. M. Ferreira
Sold Ap Armas Pes da CCAÇ 462
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Nota de M.R.:
(*) Vd. último poste da série em:
27 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6481: (Ex)citações (60): Urnas com pedras e areia (Eduardo Ferreira Campos & Manuel José Ribeiro Agostinho)


quinta-feira, 27 de maio de 2010

Guiné 63/74 - P6481: (Ex)citações (75): Urnas com pedras e areia (Eduardo Ferreira Campos & Manuel José Ribeiro Agostinho)

1. Os nossos Camaradas Eduardo Ferreira Campos (ex-1º Cabo Trms da CCAÇ 4540 - Cumeré, Bigene, Cadique, Cufar e Nhacra -, 1972/74) e o Manuel José Ribeiro Agostinho (ex-Soldado Radiotelefonista, Condutor Auto e Escriturário - QG/Bissau -, 1968/70), enviaram-nos mensagens, em 26 de Maio último, dando-nos conta de um dos mais recentes escândalos nacionais, que há muito os ex-Combatentes, conhecedores de diversas situações similares, vinham denunciando e a quem era dado, pouco ou nenhum crédito, em relação às urnas que deviam conter os restos mortais dos falecidos na Guerra do Ultramar, e que eram enviadas para o Continente cheias de pedras e areia, sem qualquer corpo, ou porque o mesmo pura e simplesmente foi pulverizado por engenhos explosivos, quer nas picadas, quer em combate, ou porque desapareceu num qualquer rio, ou bolanha, africano.

CORPOS DE PEDRA E AREIA?!



2. Mensagem do Eduardo Campos


Tinha interesse que fosse publicado, o mais rápido possível, esta notícia que veio publicada no Jornal de Notícias, hoje dia 26 de Maio de 2010.
Um abraço,
Eduardo Campos


3. Mensagem do Manuel José Ribeiro Agostinho

Acabei agora de ver esta notícia no “sapo.pt”. Deve ser uma situação idêntica à do Baptista e de muitas outras em que os corpos por lá ficaram.


Um abraço,
Ribeiro Agostinho
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Notas de M.R.:
Vd. último poste desta série em:


20 de Maio de 2010 >
Guiné 63/74 - P6441: (Ex)citações (59): Comentários e respostas (Arménio Estorninho)

Guiné 63/74 - P6480: Notas soltas da CART 643 (Rogério Cardoso) (22): 1.º Cabo António Melo e Soldado Manuel Bernardes, as nossas únicas baixas mortais

1. Mais uma Nota solta enviada pelo nosso camarada Rogério Cardoso, ex-Fur Mil, CART 643/BART 645, Bissorã, 1964/66.


NOTAS SOLTAS DA CART 643 (22)


Os nossos mortos: António Melo e Manuel Bernardes (Carrapichana)

Na Cart 643 - Águias Negras, ao longo da sua actividade operacional, aconteceram 2 baixas e dezenas de feridos, sendo eu Rogerio Cardoso, o ultimo deste elevado lote.

A primeira baixa aconteceu a 16-08-64, na área de Morés, na pessoa do 1.º Cabo Atirador ANTONIO MELO.

Tombou em combate, depois de uma série de 7 emboscadas, sendo a última maioritariamente com granadas de mão, sendo atingido, caiu para sempre. Houve mais 14 feridos, sendo um deles com gravidade o que provocou a sua evacuação para o HMP, isto já perto do Olossato.

O 1.º Cabo ANTONIO MELO era um moço excepcional, tinha festejado com todos nós, o nascimento de um filho, uns 15 dias antes, filho que nunca chegou a conhecer. Porque foi a nossa primeira baixa, e pelo que
atrás descrevi, nunca nos vai esquecer.
Foi sepultado no Cemitério de Bissau, campa n.º 1055.

A segunda baixa aconteceu a 07-11-64, na pessoa do soldado atirador MANUEL BERNARDES, mais conhecido pelo "CARRAPICHANA", nome dado por pertencer àquela povoação.

Já no regresso de uma saída, lá para as bandas do Olossato, seriam talvez umas 15 horas, calor abrasador, vínhamos em fila já na estrada para Bissorã, quando o Comandante do Pelotão notou que o Carrapichana ia ficando atrasado e a cambalear.
Foram buscá-lo e repararam que a sua pele apresentava umas saliências tipo "bexigas" e muito seca, sendo de imediato diagnosticada uma  insolação grave.

Já no aquartelamento, o médico e a equipa de enfermagem lutaram contra o tempo para o tirarem daquela situação, com soros, sacos de gelo pelo corpo, etc., vitória que foi conseguida.

Claro que ele ficou deveras debilitado, fraco e sem forças, mas ao fim de alguns dias começou a levantar-se, a ir ao refeitório e ao cafezinho no bar, que se situava junto ao edificio da secretaria, ao ar livre.
Esse bar tinha uma espécie de esplanada, 4 mesas feitas com tampos de bidons de gasolina, sendo os pés de aduelas de barris de vinho. Era iluminada por umas pequenas lâmpadas, cujo fio eléctrico era esticado com arame, que por sua vez agarrava ao arame farpado, vedação do aquartelamento.

Aconteceu que o fio pela acção do tempo ficou com o cobre à vista, consequentemente passando a corrente eléctrica ao arame farpado.
O Carrapichana depois do normal jantar e na conversa com camaradas, distraidamente e porque não sabia, nem ele nem ninguém, pôs a mão no arame. Agarrado, ainda um camarada tentou tirá-lo daquela situação,
mas sem êxito.

O nosso amigo Carrapichana, por estar em convaslencença, muito fraco e sem grandes defesas, não aguentou a descarga eléctrica.
Foi sepultado no Cemitério de Bissau, campa n.º 1171.

Rogério Cardoso
Ex-Fur Mil
Cart 643-Águias Negras
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 19 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6429: Notas soltas da CART 643 (Rogério Cardoso) (21): As CARTs 643 e 730 a olharem para o céu

Guiné 63/74 - P6479: Histórias de Carlos Nery, ex-Cap Mil da CCAÇ 2382 (2): Noite longa em Contabane

1. Mensagens de Carlos Nery* (ex-Cap Mil, CCAÇ 2382, Buba, 1968/70); com data de 24 de Maio de 2010:

Camaradas e amigos,
Depois de algum trabalho aqui estou a fazer o primeiro envio de material feito com cuidado. Não quer dizer que o que enviei anteriormente o não fosse mas este é, talvez, mais elaborado. Claro que tudo isto tem várias histórias (*)...


"Noite Longa em Contabane" foi-me pedido por Carlos Fabião creio que em 1983 ou 84, não estou bem certo. Encontrei-o após a Manif do 25 de Abril, ele tinha sido o orador ali no Rossio representando a Associação 25 de Abril. Na altura trabalhava no Guia do Terceiro Mundo com outros militares ligados ao 25 de Abril. Tiveram a ideia de publicar depoimentos sobre a Guerra com a intenção de que essa recolha, um dia mais tarde, pudesse ser objecto de consulta. Isto foi-me explicado quando estranhei a escassa tiragem do livro (creio que 2500 exemplares). Pois, no que me diz respeito, esse dia chegou...


Digitalizei o texto bem como fotografias que gostaria que fossem intercaladas no mesmo.
(Terei que enviar novo e-mail com mais fotos... O sistema já me avisou que atingi a capacidade máxima...)


Até já
CNery

***

Ontem (hoje, claro) estava cansadíssimo (acabei por me deitar já passava das 06:30...) e faltou dizer algumas coisas...

Enviei, como viram, o texto "Noite Longa em Contabane", o tal que escrevi a solicitação de Carlos Fabião para ser publicado na tal colecção "Memórias da Guerra Colonial" bem como o Relatório do Ataque a Contabane, também redigido por mim, respigado da História da Unidade da CCaç 2382.
Acho engraçado comparar os dois textos, um que pretende ser literário, pleno de adrenalina, de medo e de emoção, e o do Relatório, que pretende ser objectivo, frio e técnico... Receio que a minha "encomenda" ocupe excessivo espaço mas acharia graça que viessem ambos juntos.


Pronto, era isso...
Mais um abraço para vocês.
CNery


NOITE LONGA EM CONTABANE
por Carlos Nery Gomes de Araújo

Foto 1 - Pontão dos mal entendidos, Guiné 1969

— Morteiro 60?
— Pronto, meu capitão!
— Lança-granadas?
— Presente!
— Dilagrama?
— Estou aqui!

Olhei os homens à minha frente. Trabalhadores rurais, pescadores, empregados do pequeno comércio ou indústria, estudantes.
— Meter uma bala na câmara!

O ruído das culatras das G3 introduzindo os cartuchos nas câmaras fez-se ouvir, áspero.
— Patilhas em segurança!

Os soldados obedeceram. Recém-chegados à Guiné, pouco familiarizados com as armas recentemente distribuídas, sentíamos os camuflados novos flutuando sobre a pele.
— Está «no ir»!

Procurando aparentar segurança, utilizei a expressão ouvida aos veteranos. O dispositivo desdobrou-se numa sinuosa e reticente «bicha de pirilau».

Passámos além dos homens que faziam rolar grossos troncos de palmeira para cobertura de mais um abrigo de combate ou que desenrolavam arame farpado concluindo uma segunda rede de protecção.
— Aumentar os espaços entre cada dois homens!
— Se houver contacto de fogo, não abrir de rajada! Sempre tiro-a-tiro! Disciplina de fogo!

As ordens passavam agora de homem para homem em voz baixa. Naquele início de comissão resumiam o essencial dos meus conhecimentos de contra-guerrilha. Com menos de um mês de Guiné e escassos dias na região do Forreá tudo nos parecia estranho e assustador. Fiávamo-nos nos conhecimentos de mato dos três caçadores nativos que nos serviam de guias (Caç. Nat. na documentação operacional).

Contabane, a tabanca fula à nossa guarda, ia ficando para trás.

Acordáramos sentindo o seu frémito de vida. As mulheres no pilão descascando o arroz para as refeições do dia, num ritmo marcado por bater de palmas e cantares, as crianças brincando, a ladainha na escola árabe, as saudações complicadas dos «homens-grandes» que indagavam uns dos outros o bem-estar de todos os familiares e animais domésticos.

Afastávamo-nos pois daquele agregado humano, das mulheres preparando as refeições, tratando dos filhos ou lavando a roupa na fonte, dos homens partindo para o trabalho em lavra próxima ou orando, prostrados no chão, virados para Meca.

Numa larga «pontuada» atravessávamos zonas de capim seco, de denso «mato escuro», enterrávamos as botas de lona nos cursos de água engrossados pelas chuvas que chegavam. Suspendo o movimento da coluna. O pessoal agacha-se no terreno, armas para fora, perscrutando o mato hostil. O calor é pesado. Desarrolham-se cantis, bebem-se curtas goladas. Moscas minúsculas bailam teimosas à nossa volta insistentes nos nossos ouvidos e olhos. O «ladrar» do macaco-cão ouve-se perto.

Vou à frente procurando aperceber-me da forma como é conduzida a coluna.
– Capitão, há aqui perto uma tabanca abandonada, podíamos ir ver...

Encaro o jovem Caçador Nativo. Apercebo-me que não possui, afinal, a experiência que a princípio lhe atribuíra. Sinto-o imaturo. Afinal um adolescente excitado por acompanhar a tropa, envergando camuflado igual e empunhando uma arma.

Uma tabanca abandonada. Não terá merecido a atenção do inimigo? Mas, nesta região para nós desconhecida, há que estabelecer contacto com o real.
– Vamos lá então ver essa tabanca.

******

Durante anos a guerra passara ao largo da região onde estávamos. No Quebo, baptizado pelos portugueses de Aldeia Formosa, residia o Cherno Raschid, chefe espiritual de vasta área que se estendia para lá da fronteira.

O PAIGC, atendendo, certamente, à sua presença, evitara levar ali a guerra. Mas a guerrilha era portadora de uma ideia nova que, como todas as ideias novas, vinha para dividir.

Os tradicionalistas agarrados a hábitos, costumes e cultura ancestrais recebiam-na com indisfarçável reserva. Outros, seduzidos por essa mesma ideia, desapareciam indo engrossar as fileiras do exército revolucionário.
– Isto é uma guerra entre casados e solteiros... Pessoal casado, com casa, com filhos, não pode deixar tudo.
– Rapaz novo pode abandonar... — dir-me-ia Amadu, milícia em Buba.

Mas, ao aceitar armas aos portugueses, os fulas do Forreá comprometeram a imagem de neutralidade até aí existente. O PAIGC, acusando-os, também, de veicular informações para a tropa, abriu então, violentamente, hostilidades contra as populações que haviam aceitado colocar-se em autodefesa.

Perante os ataques a Contabane e Mampatá e a emboscada a uma viatura em que são «apanhados à mão» vários militares portugueses e passados pelas armas alguns milícias considerados traidores, são deslocados à pressa efectivos para a área.

Foto 2 – Militares portugueses em patrulha

A companhia cujo comando me fora entregue interrompeu assim o seu treino operacional em Bula, a norte de Bissau, e foi enviada para o Sul onde rendeu a 5.ª Companhia de Comandos que, na emergência, ali fora colocada dias antes.

Numa curva de mato denso surge-nos o que resta da tabanca. Naquela zona de África nada é perene. Os vestígios deixados pelo homem cedo são engolidos pela natureza estuante.

Foto 3 – Patrulha do PAICC

O colmo, que cobrira as casas, apodreceu, as chuvas desfizeram as paredes de adobe, a vegetação ameaça tudo invadir. Pretendo estabelecer uma meia-lua de segurança e efectuar um reconhecimento cauteloso. De súbito perco o controlo da situação. Os soldados descobrem, à entrada da tabanca, um renque de vegetação donde pendem, abundantes, ananases maduros e sumarentos As facas de mato brilham em movimentos rápidos e os bolsos dos camuflados enchem-se da dádiva inesperada.

Sinto o perigo desta quebra de disciplina, mas não tenho tempo para actuar. O rebentamento ecoa surdo e violento. Num ápice estamos cosidos à poeira procurando descobrir se somos alvo de algum ataque.

Ninguém se lembra mais dos ananases, embora alguns os sintam esmagar-se entre os corpos e o chão.
- Capitão! Capitão! — Ouço num apelo lancinante.

Procuro descobrir donde vem o chamamento. Caído no caminho de acesso à povoação, rodeado ainda da espessa nuvem negra do rebentamento de uma mina, descubro o jovem caçador nativo que me sugerira «ir ver» a tabanca abandonada.
– Acode-me! Capitão, acode-me!

Vejo-o no seu desespero, sem o pé esquerdo, canela transformada em brutal flor de sangue.
– O enfermeiro! — A ordem percorre os homens ainda de borco.

A resposta chega-me a medo.
– Não veio...

Com os diabos, se há responsável sou eu! Como foi possível esquecer-me do enfermeiro! Ninguém se atreve, no receio de um campo de minas, a ir junto do ferido. Tenho que ir eu. Agarra-se a mim num desespero. Sinto os seus dedos enclavinhados no meu camuflado.
– Salva-me, capitão!

Puxo do meu penso individual de combate. À distância são-me atirados outros. E não sei — ai, não sei!, não, não sei! — como improviso um torniquete, como ligo aquela ferida absurda, descobrindo o que é o cheiro do sangue e sentindo o seu contacto viscoso e espesso nas mãos.

Uma porta meio queimada e duas G3 improvisam uma maca. Peço pela rádio a evacuação do ferido.
Ouço, nítidas, interferências inimigas, na rede, utilizando os nossos indicativos.

Interrompo a comunicação. A tarde cai, os helicópteros não virão a esta hora.

Regressamos, em marcha acelerada, transportando o ferido, carregados de apreensão, no amargo daquele fim de tarde de Junho de 1968.

*******

O inimigo, ultimando a cuidadosa instalação para o ataque que viera fazer, viu ser arredado o cavalo de frisa colocado à entrada de Contabane e sair uma viatura a grande velocidade.

Assistiu ao seu regresso, transportando o ferido que, abandonados os cuidados da progressão a corta mato, trazíamos pela estrada.

Viu também entrar a tropa apeada. Tudo observou sem se revelar. O planeado não sofria alteração, mesmo quando um alvo inesperado se oferecia a escassas dezenas de metros.

Instalar os canhões em posição de tiro directo, colocar-lhes junto as munições a utilizar, lançar um dispositivo de segurança, não é coisa fácil se se não quer ser pressentido.

Fizeram-no e aguardaram o sinal de iniciar o ataque.

******

Recebêramos, dias antes, a visita de Spínola. Acompanhado do seu séquito, descera dos helicópteros que haviam pousado numa aberta junto do arame farpado.

Camuflado de bom corte, botas de cabedal reluzentes, luvas negras, pingalim e monóculo penetrara na tabanca num passo rápido e decidido. As mulheres da população faziam adejar à sua volta lenços e panos coloridos. Afastou, com aparente desagrado, a manifestação de cortesia.

Vinham ainda longe os tempos da guerra psicológica e das suas tentativas de intervenção política «por uma Guiné melhor». Viera falar de guerra, com quem, em princípio, ali estava para a fazer.

Quis ser conduzido ao posto de comando, ser informado da situação. Fez perguntas de que conhecia, certamente, as respostas, tentando avaliar da minha capacidade para assumir a responsabilidade daquela posição tornada subitamente quente.

Por trás dele, Almeida Bruno fazia-me sinais encorajando as minhas respostas certamente pouco satisfatórias.

Foto 4 – Reabastecimentos portugueses. Como passar?

******

Cumprindo, em tempo de paz, o meu serviço militar obrigatório, voltara a ser chamado, dez anos depois, para frequentar um curso de comandantes de companhia em Mafra. A medida que a guerra se prolongava, mais escasseavam as «vocações» para a carreira de militar profissional. Nos últimos anos contavam-se pelos dedos de uma só mão o número de inscrições nos cursos das três armas em funcionamento na Academia Militar. Houve, então, que recorrer aos milicianos para assegurar o comando de companhias operacionais.

Abandonada a minha mesa de trabalho num banco da Baixa lisboeta, juntara-me a um grupo de «chefes de família», melhor ou pior instalados na vida que, não escondendo a sua contrariedade, iam ser preparados «à pressão» para assumir o comando de homens nas três frentes de combate em África.

Estranhamente, os nossos instrutores em Mafra só conheciam a guerra da leitura dos manuais ou dos relatos dos seus camaradas com experiência de combate.

Pertenciam ao curso do filho de um ministro de então e esta «coincidência» garantiu-lhes, durante anos, um estatuto de especialistas de contra-guerrilha sem nunca terem ouvido assobiar uma bala em combate.

Foto 5 – Coluna do PAICC

Numa casa de colmo transformada em improvisado posto clínico, o enfermeiro dá soro ao ferido. Há que esperar pelo nascer do dia para proceder à evacuação.
– Um homem de cada abrigo vem buscar as terrinas com o jantar para o seu pessoal — ouço-me dizer, numa inspiração que vai poupar muitas vidas.

Tiro o meu dólmen suado e, de tronco nu, encosto a G3 e aceito um prato de sopa onde mergulho a colher.

Subitamente o lusco-fusco acende-se num turbilhão de fogo. De diversas direcções o inimigo abre o ataque com rajadas de bala tracejante apontada aos tectos de colmo seco das casas.

Em segundos o incêndio alastra por toda a tabanca em grossas labaredas crescendo para o negro da noite que desce. Os canhões sem recuo despejam toda a munição sobre nós. A seguir, os morteiros ajustam também o seu fogo.

Consigo atingir a posição do nosso morteiro 81. Abrigados no círculo definido por bidões cheios de terra, uma mulher com um filho de colo, três rapazitos tentando ajudar no manuseamento da arma colectiva, eu e o alferes Mendes Ferreira. Combatentes inexperientes, sem possuir ainda a serenidade que nos permita detectar a zona de instalação inimiga, inclinamos a olho o tubo e vamos introduzindo, uma após outra, as munições de que dispomos.

Encosto-me inadvertidamente ao tubo aquecido e sofro no peito um vergão de fogo.

Próximo, o paiol improvisado, onde depositáramos a dotação de munições da companhia, é atingido. Aos rebentamentos das granadas inimigas, junta-se o barulho indescritível dos cunhetes de cartuchos e de granadas rebentando em girândola infernal. Balas e estilhaços assobiam em todas as direcções.

A nossa companheira do refúgio foge com o filho agarrado. Esgotadas as munições de morteiro, não faço nada ali e exponho-me a qualquer granada que possa cair próximo.
– Vou ver se encontro uma G3 e procurar atingir um abrigo de combate.

O alferes fará o mesmo, procurando outro abrigo. Corro para a cozinha de campanha onde vira uma arma encostada a um caldeiro.Agarro-a. Custa-me orientar na confusão em que tudo se transformou, perdidos os pontos de referência a que me habituei.

Abrigados junto de uma parede semi-destruída, vislumbro os vultos do jovem guia dessa -tarde e do furriel enfermeiro da companhia.
– Então, como está ele? — pergunto.
– Está porreiro, meu capitão, aguenta-se!

Corro, curvado, para o abrigo que me parece mais exposto ao fogo do inimigo, esperando poder ter aí algum controlo do que acontece à minha volta.

O meu vulto iluminado pelo clarão do incêndio é alvejado. Ouço as balas assobiar à minha volta. Enfio-me no abrigo cavado no chão coberto de troncos de palmeira e de terra batida, extensa abertura permitindo a utilização de armas individuais.

Os homens lá dentro reagem de maneiras diversas. Há quem combata, mas há também quem chore ou reze no chão. Vou para a seteira e incito estes últimos a combater também.
– Estamos a pôr balas nos carregadores... — ouço a justificação frouxa.

O espaço em frente, fortemente iluminado pelas chamas do incêndio que lavra nas nossas costas, é varrido pelos nossos olhos assustados. Sinto, mas sinto claramente, os dentes baterem enquanto disparo, dois tiros rápidos e pausa, em resposta aos clarões das armas inimigas, em frente.

Em combate nocturno fazer fogo é revelar a nossa posição, é dos livros e facilmente comprovável agora. Por outro lado, no escuro, não se vê o ponto de mira da arma, pelo que não é fácil fazer tiro com um mínimo de precisão. Ah, quem tivesse previsto a situação e posto ali um pingo de tinta branca!

Os pensamentos sucedem-se, caóticos. E se eles vêm ao arame farpado? Se o ultrapassam nalgum ponto e se se aproximam do abrigo introduzindo-lhe uma granada de mão?

Julgo ver vultos deslocando-se em direcção ao abrigo. Saio de arma em riste. São vacas que correm em pânico entre as duas fiadas de arame, acossadas pelo fogo do combate.

Volto a entrar. Não sei se consigo sorrir do meu susto. O Boiça, sargento da companhia, desloca-se de abrigo para abrigo substituindo comunicações que desapareceram no incêndio e na confusão.
– Há mortos?
– Não, meu capitão. Só alguns feridos... Há abrigos atingidos por morteiradas, mas aguentaram. Quer que transmita algumas instruções?
– Evitem o tiro de rajada. Respondam aos disparos inimigos com séries curtas de dois ou três tiros. E você não ande para aí a expor-se inutilmente.
– É só levar um pouco de ânimo ao pessoal, capitão, e ver se há falta de munições nalgum abrigo.

O perigo da situação residia, efectivamente, em ficar-se sem munições ou encravarem-se as armas se demasiado aquecidas em resultado de uma utilização sem critério.

O aparente enfraquecimento da nossa resposta encoraja uma tentativa de assalto que é repelida pelo aumento de intensidade dos nossos disparos.

A poderosa tempestade africana chegou, subitamente, feita de grossas cordas de água, relâmpagos e trovões assustadores.

O incêndio extingue-se e, agora, só a luz dos relâmpagos permite vislumbrar a faixa de terreno que nos separa dos atacantes. Em breve, a água acumulada no fundo do abrigo atinge os nossos joelhos.

O fogo dos canhões e morteiros suspende-se, finalmente, substituído pelo das armas individuais que redobra de intensidade.

Sinal de retirada, viríamos a saber.

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Clareia o dia.

Dos abrigos e da mesquita árabe — único edifício de tijolo, cimento e cobertura de zinco — saem militares e elementos da população observando as consequências do ataque.
O incêndio, os impactes dos projécteis inimigos, tudo reduziram a ruínas.

Fatmatá, mulher grande do régulo Sambel, apoia-se no meu braço e chora em silêncio. Rapazitos vasculham procurando entre as cinzas objectos que satisfaçam a sua cobiça.

Comenta-se a precisão e a violência do ataque, contam-se os impactes dentro do recinto defensivo, avaliam-se os prejuízos materiais.

A preocupação maior, porém, são os nossos feridos. Além do Caçador Nativo, vítima da mina anti-pessoal accionada na véspera, há mais três soldados feridos com gravidade e três civis atingidos.

O reconhecimento às posições inimigas, surpreendentemente próximas do arame farpado, revela sinais de corpos arrastados e, apesar da chuva abundante que caiu, vestígios de sangue.

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Nino, comandante da Frente--Sul, o combatente lendário, cruza a fronteira à frente dos seus homens, terminada mais uma missão.

Encharcados pela chuva, carregando canhões e morteiros, os guerrilheiros sentem, também, a dureza da guerra, dureza traduzida nas baixas sofridas. Uma vez mais tinham tomado a iniciativa, ocupando posições necessariamente mais expostas do que as da tropa instalada defensivamente, e isso tinha o seu preço, também.

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Estamos isolados em resultado da destruição de todo o material rádio. Por outro lado, o improvisado posto clínico desapareceu, não dispondo nós, sequer, de meios mínimos para primeiros socorros.

Um civil oferece-se para levar uma mensagem ao quartel mais próximo utilizando a sua bicicleta. Não é necessário.

Somos sobrevoados por jactos da Força Aérea e, pouco depois, dois helicópteros pousam na periferia da tabanca.

Foto 6 – Exército português, Transmissões

Envergando o seu camuflado de pára-quedista, adianta-se uma mulher:
– Os helicópteros vão levar os feridos ligeiros a Aldeia Formosa, regressando imediatamente para recolher os mais graves que vão comigo para Bissau. Embora tenha ordens para nunca ficar em terra, vou abrir uma excepção e espero aqui com vocês.

Junto das quatro macas alinhadas no cenário desolado, contra o céu azul da manhã, Ivone, a enfermeira pára-quedista, é oficiante de um ritual rigoroso. Frascos de sangue vermelho-negro levantam-se ao céu facilitando a passagem do seu conteúdo para as veias dos feridos.

Paro junto do soldado Fortuna, atingido na cabeça por um estilhaço de granada que atingira o seu abrigo.
– Para vocês “isto” acabou. Vais voltar para a terra, até é melhor... ouço-me dizer.

Será evacuado para o Hospital Principal em Lisboa. Talvez tenha terminado a guerra para ele. A que preço?

Ajoelho junto do jovem africano, pouso a mão na sua cabeça, enquanto procuro palavras de conforto:
– Vais ser bem tratado, a tropa não te esquece. Vais para o hospital, vais ter um pé novo, ninguém vai notar a diferença.

As palavras soam-me tragicamente absurdas, sinto na garganta um aperto inenarrável e, com as lágrimas de revolta que me queimam a cara — as minhas últimas verdadeiras lágrimas —, sinto que muito de mim se perde, se perde irremediavelmente.

Carlos Nery Gomes de Araújo
in Memórias da Guerra Colonial,
tomo 2, 1ª Edição,
Andrómeda Publicações,
Novembro 1984


Relatório do Ataque a Contabane, também redigido por mim, respigado da História da Unidade da CCaç 2382.





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Fotos: © Ten. Nuno Barbieri do DFE 7 e Carlos Nery (2010). Direitos reservados

Fixação do texto: Carlos Vinhal. Vd. mais referências (14) a Contabane.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 15 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6392: Histórias de Carlos Nery, ex-Cap Mil da CCAÇ 2382 (1): Nós e os mandingas de Buba, que colaboravam com o PAIGC, e que foram evacuados para Bubaque em Abril de 1969 (Carlos Nery)

Vd. poste de 19 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3141: Venturas e Desventuras do Zé do Olho Vivo (Manuel Traquina) (2): O ataque de 22 de Junho de 1968 a Contabane