sábado, 4 de dezembro de 2010

Guiné 63/74 - P7379: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (2): O primeiro dia em Bissau

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Dezembro de 2010:

Malta,
Os pequenos almoços na Pensão Lobato eram insuficientes e o meio envolvente melancólico, até soturno. Mas eu estava impaciente para calcorrear Bissau, sabendo de antemão que os dissabores seriam em maior número que os sabores. E naquele primeiro dia não era nada agradável dizer à Maria Fausta que o Abudu está mesmo muito doente, incapaz de viver na Guiné, quem já teve dois enfartes do miocárdio não pode acreditar em milagres no Hospital Simão Mendes.

Hoje seguem em separado as fotografias que tirei no primeiro dia de Bissau.
Ficarão com o copyright do nosso blogue.

Um abraço do
Mário


Operação Tangomau (2)

Beja Santos

O primeiro dia em Bissau

1. Cedo o Tangomau descobriu que o conflito que se instalara entre ele e a casa de banho da Pensão Lobato tem muito a ver com o sentimento de resignação e indiferença do povo guineense. Tomara um duche que esbanjava metade da água, a água esguichava e escapava-se na junta entre a serpentina e o punho. Mal se arranjou, informara a governanta da situação e pedira que pusessem uma lâmpada no corredor, por duas vezes tropeçara, com risco de estampanço. Resposta, com sorriso: “Não há problema, vou avisar o patrão, não custa arranjar”. Se era para o sossegar, não sossegou. Nada foi arranjado, ao terceiro dia estava tudo na mesma, era uma estragação de água, não se percebe porque é que não há uma alma que ensine a remover teias de aranha e as manchas da sujidade, cogitou o Tangomau.


2. Em vez de subir a antiga estrada de Santa Luzia, inflectiu à direita, um quarteirão à frente subiu à Praça dos Heróis Nacionais, tem uma encomenda a entregar nos escritórios da TAP, mas fica esparvoado com o escombro em que se encontra o palácio presidencial. Cá fora, as pessoas passam sem olhar aquele tecto esventrado, o vestíbulo reduzido a cacos, as janelas saqueadas. O Tangomau imagina a elegância que terá tido todo o tecto daquele vestíbulo onde agora se instalam, com o calor da manhã, bandos de morcegos. Sobe as escadas com o cimento esfarelado, tudo quanto era azulejo ou corrimão foi roubado. O salão do primeiro andar é formoso nas proporções, dá até para especular as sessões de Estado que ali se realizaram, mesmo banquetes, boas-vindas, sabe-se lá se até concertos. Pode observar a graciosidade da escadaria, permanece incólume ao vandalismo. Saiu do edifício, contornou pela direita, entrou no que terá sido o jardim, nas traseiras do palácio; expectante, está ali uma fonte apainelada por pequenos mosaicos.

O que era o Museu da Guiné, Biblioteca e Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, é hoje a Primatura, vedaram-lhe o caminho. Onde estava o Café Império é hoje a pastelaria e padaria Dias & Dias, cá fora rescende um bom cheiro da confeitaria.

Fotografias retiradas do site: http://pensaodbertabissau.wordpress.com/
Quem não conhece a Pensão Central desconhece a magnitude dos sorrisos

Ele desce à Avenida Amílcar Cabral, pára diante da UDIB e recorda, sem dificuldade, os filmes de acção que ali viu, 40 anos antes. O Hotel Portugal é um edifício abandonado. Agora, em cada edifício habitado há sempre um segurança para dissuadir os assaltos. A deambulação prossegue, a catedral fita-o das suas linhas aprumadas, está pintada de branco imaculado. Excitado, o seu olhar contempla os dois andares da Pensão Central ou Pensão da D. Berta. E sobe a escadaria em ferro, visivelmente carcomida pela ferrugem, no primeiro andar avista um jovem e pergunta por D. Berta Oliveira Bento, a Avó, o sorriso mais doce de Bissau.

Tem razões para esta excitação: aqui viveu em 1970, aqui comeu duas refeições por dia, quatro meses sem interrupção, em 1991.
A D. Berta aluga acidentalmente quartos, ela acolhe, é confidente, moraliza e dá estímulo às centenas de cooperantes, investigadores, professores e até empresários que não prescindem daquela comida caseira: uma sopa onde nunca falta o gosto da batata, um prato de peixe ou de carne, e depois a sobremesa, doce ou fruta, tudo mais a bebida por 4500 francos CFA, a preços actuais, mais barato não há em Bissau.

Pois o que vai acontecer é que o Tangomau corre por impulso, chora no ombro da Avó Berta. Desajeitadamente, confessa: “Tenho tanta saudade da sua canja!”. E ela responde, quase maviosa: “Se tem saudades hoje almoça o que há, amanhã faço a canja.”. O Tangomau olha as mesas, ali ao canto comia muitas vezes com aqueles holandeses do saneamento básico ou com o Dr. Aníbal do Centro de Medicina Tropical.

Despedem-se, ele tem urgência de ir ao Bissau Velho trocar dinheiro. Por baixo da casa da Avó estão vendedores de artesanato, sempre a incitar à compra. Ele não pára, onde era o antigo Café Bento (ou 5ª Rep) é hoje a delegação da RTP África.

Feito o câmbio, sobe até à rua da Cidade de Lisboa, tem um encontro aprazado com o embaixador António Ricoca Freire, toma café e ali ficam em amena conversa. O esforço titânico da Avó Berta veio à baila e os dois sugerem à uma ir almoçar à Pensão Central. A Avó não escondia o seu orgulho, sentada ao lado do embaixador português.

Findo o almoço, regressam à embaixada, começa uma ronda de telefonemas para avisar vários destinatários de encomendas ou para convocar encontros. Um dos camaradas da Guiné queria obsequiar as suas duas lavadeiras e mandou as seguintes referências: a primeira, a Rosita, também conhecida pelo nome de Nhamo, mora no bairro Quelélé e tem uma filha chamada Tiba; a segunda é a Mariama Gorda que pode estar em Bissau ou já em Bambadinca. O pedido era categórico: “dá-lhes um beijo por mim”. E juntava fotografias de ambas para que não houvesse confusões. E depois saiu com o Sr. Sabino, os Soncó têm precedência. A embaixada situa-se num bairro que data dos tempos de Sarmento Rodrigues, tem reminiscências Art Deco, mas um grande número de moradias dá sinais de uma ruina imparável.


Tumblo em 1968, fotografia captada em Missirá. 
A menina mais crescida é a Sadjon (uma homenagem a S. João, em frente a Bolama), uma Mané que casou com o falecido Ansumane Mané, parente de Tumblo. Sentada ao lado de Tumblo está Mai Sai, a sua mãe. Segue-se outra criança não identificada. De calção e sorriso franco Abudu Soncó, a quem o Tangomau ofereceu esta fotografia.

3. O primeiro encontro é com Tumblo, o irmão que resta ao Abudu. O Tangomau esquecera-se de fazer uma cópia à fotografia tirada em 1968 a um conjunto de crianças em Missirá: Tumblo ao lado da sua mãe, Mai Sai; Sadjon, Abudu, Samba Mané, Nhalim Cassamá e Nhima Mané. Paciência, talvez não venha a faltar outra oportunidade. Depois de visitar a casa de Tumblo seguiram ao encontro da Maria Fausta. Àquela hora, a estrada que passa por Bandim estava em convulsão, congestionada, ouvem-se as imprecações em crioulo; em Bandim, um sinaleiro garboso procura pôr o trânsito mais fluido. Não foi fácil encontrar a Maria Fausta, afinal não vive perto da Somec, mas quase no sentido oposto. O Tangomau promete novo encontro, quando regressar da região de Bambadinca. No regresso, passam pelo INEP, o Dr. Mamadu Jao, o seu director, não está, ficam os livros e as cartas geográficas, deixou-se a promessa de regressar amanhã.

De novo na embaixada, consegue-se o contacto com Nhamo, que promete vir imediatamente. Sempre solicita, a secretária do embaixador estabelece contacto com Filinto Barros e Delfim Silva, ficam marcadas reuniões para amanhã. Nisto chega a Nhamo, em todo o seu esplendor. Riu-se quando a beijei em nome do Jaime Machado.


4. Ao almoço, o Tangomau estabeleceu contacto com Patrício Ribeiro, um empresário que trabalha há 26 anos na Guiné e é assíduo frequentador do blogue. Combinaram ir jantar ao Bissau Velho. É uma dor de alma a degradação a que chegou a zona comercial da segunda capital da Guiné. São edifícios simples dos anos 40 e 50, sobretudo, possuíam cores gritantes, era ali que estavam estabelecidos os libaneses da família Saad (a incontornável Casa Taufik Saad), os estabelecimentos António Pinto, a Casa Pintosinho, entre outras. Este Bissau Velho plantara-se perto da Fortaleza da Amura, era ponto de passagem obrigatório entre o porto e a zona habitacional da cidade, perto estava o tribunal, mais adiante os correios, logo no início da Avenida da República, do lado esquerdo, a Casa Gouveia. Esta urbanização aparece admiravelmente documentada nos postais da Guiné na edição de João Loureiro, infelizmente esgotada. Pois aqui está o restaurante Tá Mar, por capricho do destino apareceu o Delfim Silva, o Tangomau já não se recordava nem como nem porquê a conversa deslizou para os testemunhos de Luís Cabral e Aristides Pereira, a riqueza e as insuficiências de cada um deles. Exausto, o Tangomau pediu a Patrício Ribeiro que o levasse até à Pensão Lobato. Fora um dia em cheio, excessivo de emoções, de alegrias, de descobertas. Mas também o sentimento de agonia e consternação pela decomposição que atravessa Bissau.


5. No INEP visitou a exposição Raízes, patrocinada pela Fundação Mário Soares. O visitante tem ao seu dispor um conjunto de fotografias que datam das décadas de 40 a 60 do século passado. Era material que estava à carga no Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, e que se deteriorara brutalmente, por falta de conservação. A Fundação Mário Soares contribuiu para recuperar meia centena de fotografias entre os milhares de espécies de um acervo de indiscutível valor histórico. Procedeu-se a limpeza e a expurgo, fez-se a reprodução fotográfica e digital e depois o respectivo restauro. Para esta exposição apresentam-se imagens de homens e mulheres da Guiné-Bissau na sua faina diária sob o olhar da “etnografia colonial”. São fotografias de uma beleza admirável, no mínimo o Tangomau recomenda que se adquira o catálogo. A ventoinha continua no seu ronronar e os grilos não se calam. O cansaço é tal que no cotejo destas notas se esqueceu a referência à maresia que vem do cais do Pidjiquiti, àquela hora da manhã embarcava gente para Catió e noutras embarcações desembarcava peixe.

Capa do catálogo da exposição do INEP

Mandinga fabricando uma esteira

Balantas trabalhando na construção de um orique

Regalado, o Tangomau cogita sobre o que vai fazer amanhã, falta descer pela Baixa de Bissau, é impreterível passar pelo cemitério, há ainda outras encomendas a entregar, ao fim da tarde quer ir à missa na catedral. Está impaciente de partir para Bambadinca, pois claro, o Fodé já esclareceu que vai aparecer muita gente, surpresas não faltarão. E, com um suspiro, volta-se para o outro lado e adormece agradado com a ideia de que uma sopa de ostra o espera na Pensão Central.
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Nota de CV:

Vd. primeiro poste da série de 2 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7370: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (1): Primeiras notícias da Guiné-Bissau

1 comentário:

AQUILES disse...

Como eu, também, gostava de ter ido.
Ainda choro pelos meus amigos do Liceu, que depois morreram após 74.