segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Guiné 63/74 - P7238: Cartas, para os netos, de um futuro Palmeirim de Catió (J. L. Mendes Gomes) (4): O Funchal era uma festa...

1. Continuação da série Cartas, para os netos, de um futuro Palmeirim de Catió (*). Autor: Joaquim Luís Mendes Gomes, membro do nosso blogue, jurista, reformado da Caixa Geral de Depósitos, repartindo actualmente o seu tempo entre Lisboa, Aveiro e Berlim e, por fim, ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Os Palmeirins de Catió, que esteve na região de Tombali (Como, Cachil e Catió) nos anos de 1964/66 (**).


Oficial e cavalheiro (4): O Porto Santo ao longe

Pouco depois de amanhecer, já corria que mais um pouco e a ilha do Porto Santo se iria ver. A manhã estava transparente em todos os sentidos.

O bombordo era o lado preferido de todos os madrugadores. Com os olhos postos ao longe, já se sentia necessidade de ver terra firme para quebrar o primeiro e natural acesso de monotonia. Um vulto mais escuro começou a divisar-se, longe, para a frente do barco, a estibordo, a sair, lentamente, da superfície imensa do mar.

Mais um pouco e um grande lagarto se estendia matreiro e preguiçoso, de areias refulgentes sob o dorso, mais o filhote soerguido, ali, ao pé. Lentamente, foram ficando para trás, sem se esconderem de novo, curiosos. Cada vez mais pequenos.


Agora, era um grupo de vultos ponteagudos que iam avançando para o ar e crescendo em tamanho para os lados mais baixos, esverdeados, a descer em grandes rugas pedregosas, até à tona das águas, rendilhadas de brancura. Com a ajuda de binóculos, tão na moda, pudemos antecipar a visão do que pouco depois se alcançava a olho nú. Encostas serranas, bravias e muito alcantiladas, vestidas de verde, a rigor, pareciam tapar qualquer hipótese de ser animado. Um ermo, como era quando a frota do Gonçalves Zarco [c. 1390-1471] lá chegou, séculos atrás [vd. foto da estátua, no Funchal; estátua da autoria de .

Os primeiros barcos a motor, quais formigas brancas, atrevidas, surgiram no horizonte das águas, a dar-nos as boas-vindas e ficaram a rodopiar à volta, sem esforço e destemidos, até ao termo. Um pouco mais adiante ia abrir-se o deslumbramento inesquecível. Uma mancha salpicada de casas brancas e telhados vermelhos, disseminadas, sem regra, pelas encostas ao sabor da mais pequena reentrância natural da encosta, estendia-se cada vez mais densa, desafiando o alcantilado das serras; aqui e ali era o cocuruto de uma igreja que parecia desafiar as alturas da encosta, vigilante das bem contadas ovelhas do seu redil; veredas estreitas serpenteavam por entre aquele casario, orladas de mil flores refulgentes de cor; uma maviosa sinfonia de beleza perfumava e fascinava o nosso olhar boquiaberto.

Apetecia saltar sobre as ondas mansas e correr para aquele pedaço de terra escondido atrás do mar imenso e sem fim. Não demorou muito e o barco, já habituado, entrava docemente num recanto pacato, que fazia de salão de visitas, duma cidade viva e gaiata, a estender-nos os braços acolhedores. Insensivelmente, dei comigo a apertar-me as carnes, procurando provar que tudo aquilo não era um sonho divinal.

O ar, fresco e rico entrava por nós dentro, inebriando-nos dos perfumes da terra, nunca antes saboreados. O imenso quadro polícromo que se desdobrava diante de nós não podia ser mais harmonioso. O fortim secular, altivo e muito bem colocado a meio da encosta foi o primeiro a arrrebatar os meus olhos. Fez-me imaginar as repetidas escaramuças com os visitantes predadores daquele éden, vindos das brumas das águas. A torre da Sé [v. foto acima] erguia-se afável do seio do casario por ela abençoado. As ruas cercadas de frondosas ramagens sulcavam toda aquela metrópole, misto de sabor ocidental e africano, buliçosa nas gentes e nos carros automóveis e, ainda, puxados a bois…

Uma vontade enorme de sair nos invadia e arrebatava. Tivemos de esperar desensofridos as formalidades da ordem. De novo, um carro militar nos aguardava atento e nos trouxe, depressa, para o B.I.I.19 [, Batalhão Independente de Infantaria nº 19], bem dentro da cidade. Depois foi o primeiro contacto com as pessoas já habituadas à surpresa dos recém-chegados. Em cada momento que passava, inflamava-se e acescentava o nosso contentamento, geral e irresistível.


Oficial e cavalheiro (5): O Quartel do B.I.I.19

O carro militar que nos transportava, saíu da rua que contorna o porto e entrou no seio da cidade. A abundância de árvores e jardins, com sabor verdadeiramente tropical e a predominância abundante, de turistas nórdicos, refastelados pelos bancos públicos e nas amenas esplanadas, os grandes e festivos paquetes cor de rosa, de tamanho duplo do nosso Funchal, tornados verdadeiros hóteis flutuantes a bordo, encostados ao cais, foram as primeiras notas de que tínhamos chegado a uma terra, diferente, cheia de encanto, quase irreal.

Subimos por uma rua estreita, à esquerda e parou-se ao meio de muro elevado, bem rentinho àquela. Um militar avançou da guarita e começou a mover a espingarda, que segurava diante de si, em jestos de braços e pernas, decididos e respeitosos. Uns 3 ou 4 vieram, de dentro, postar-se a seu lado, perfilados, também com a arma no ombro, altivos. O carro entrou pelo portão, para uma parada de aspecto sombrio e pardacento.

A primeira sensação foi de pobreza e acabrunhamento, perante as diversas entradas que davam para aquela parada, tosca, de terreiro de pedras negras e irregular. A porta larga que dava para uma cozinha térrea, com cobertura a verem-se os caibros do telhado, enegrecido e gordurento pelo fumo que saía das bocas do fogão gigante e das panelas enormes, os tanques rudes de cimento, junto à parede, para lavagem de todas as loiças e talheres de alumíneo do batalhão, os cozinheiros e seus ajudantes, destacados, por missão ad hoc, com os barretes brancos sujos, nas cabeças e tamancos de madeira engordurada.
Um quadro sombrio que, na metrópole, nos faria remontar à idade média… A adaptação pareceu-me impossível, mas estava muito enganado. Outra porta dava para a oficina dos carros da tropa, em modelos antiquados, com muitos milhares de km a mais que os previstos na origem. Ferramentas ultrapassadas, com muito recurso a cordas e muito madeirame encardidos pelo óleo queimado. Outro quadro de oficina muito recuada nos tempos, já muito ultrapassados no continente.

E o lugar para instrução? Aquela parada seria necessariamente pequena para um batalhão. Outra surpresa. Entrava-se por um túnel interior, coberto pelas instalações dos serviços administrativos, militares, salas de oficiais e sargentos, alguns gabinetes; descia-se para um primeiro terreiro interior, ao jeito do claustro conventual, que fora, outrora, cercado de uma beirada de telhado protector nas alturas de chuva, rara; desse terreiro, passava-se, sucessivamente, para mais dois, com a mesma configuração.

Era neles que toda a instrução militar dos vários pelotões se tinha de desenrolar, com muita improvisação. Alguns soldados de aspecto um tanto desalinhado cirandavam por ali. Olharam-nos com um ar nublado de inesperada timidez. 

Fomos levados para a sala de oficiais, depois de percorrermos um corredor e subirmos umas escadas em madeira já muito gasta e empenada. Um pequeno bar, despretensioso, mas com uma óptima esplanada com vista sobre a encosta verde da cidade, servido por um magala mais aprumado. Umas mesas e cadeiras espalhadas. Revistas e jornais com atraso de alguns dias, ao dispor. O transporte do continente ainda era feito apenas pelas carreiras marítimas regulares.

O aeroporto era, ainda, um sonho ou um projecto em concurso. Lembro que as terras de Santa Catarina ou do Paúl da Serra eram as duas hipóteses em confronto. Os camaradas mais antigos começaram a chegar e a meter conversa connosco. A maioria era madeirense e formada por ex-seminaristas do Funchal. Eram uns senhores, para o círculo apertado da cidade. Tinham gozado das bênçãos da venerada herarquia clerical; disfrutavam, agora, das não menores que a farda militar, ali, lhes oferecia. 

Nós beneficiámos, logo, daquela honra acumulada. A nossa chegada até teve honras de notícia, com os nomes e categorias, nos jornais do dia seguinte. Fomos chamados ao gabinete do Comandante do Batalhão, um coronel, já de idade madura, ali, habilmente, acoutado pelas hostes continentais, para cumprimentos de boas-vindas.

Foi agradável e cerimoniosa a recepção. O alojamento tinha de ser custeado por nós, num dos quartos que as gentes do Funchal estavam habituadas a dispensar aos oficiais de passagem. O custo era reduzido, mas a nossa mesada era um suplemento que lhes sabia bem. Eu, o Gomes e o Gonçalves fomos parar a casa de uma solteirona, solitária, com mais de 50 anos, de olhar matreiro… Só dormir e roupa lavada. Andava por lá um cinquentão, vigilante…

As portas estavam à nossa conta. O almoço era por conta da tropa. O jantar era pago, com preços firmados, na hora, pelo antigo cozinheiro, de voz rouca, de um navio mercante. O que pagávamos constituía o bom engodo ara o manter ao seviço na cozinha. Ainda hoje me lembro dos saborosos filetes de espada preto e de bifes de atum, como nunca mais provei.

Os primeiros dias foram para conhecer os bares, cafés, ruas e costumes da cidade, em uniforme militar, como convinha. O café Apolo, com uma boa esplanada, ali juntinho à velha Sé, não podia ser mais acolhedor e melhor situado. Visita diária obrigatória para a nata do Funchal. O Sunny-Bar, na formosa Avenida do Mar [, e que ainda hoje existe]. A rua de Fernão Ornelas, a mais recheada de montras e de comércio, exótico, fervilhante.

O mercado dos lavradores [, foto à esquerda, pormenor de azulejo], mercado municipal, pegado àquela artéria central, onde vinham desaguar as suculentas hortas do campo, em fruta tropical, flores e tudo o mais. O terreiro, ladeado de uma protecção simples, em tubos de ferro forjado, saído da avenida do mar avançava uma centena de metros pelas águas do porto dentro. Era o festivo ponto de encontro de toda a gente, especialmente, no final da tarde e noite dentro. Ponto de mira para as longínquas desertas, erguidas sobre as águas azuis do oceano e, sobretudo, para a vista total da cidade que se estendia mansamente, pelas encostas íngremes da serra, exposta num abraço largo, de beleza surpreendente.

Para as pessoas do Funchal, um passeio descontraído por estes recantos, à mistura com os turistas sempre renovados, sobretudo, pelos regulares paquetes nórdicos, era uma necessidade diária e embriagante.O liceu, as escolas particulares e uma superior de música refrescavam, de juventude, de costumes ainda bem controlados, toda a vida da cidade.

Os carros turísticos de bois, engalanados como os seus boieiros e ajudantas, com as cores garridas das vestes típicas, iam semeando de aromas odorosos, bem tolerados, as lajes escuras das artérias principais. Os jardins recheados de árvores tropicais e abundantes flores exóticas.

O de Santa Catarina, de vegetação luxuriante e labiríntica, lá ao cimo da avenida do Infante, sobranceiro ao porto e à cidade, a dar saída para a Câmara de Lobos, o centro piscatório mais próximo; o da Senhora da Esperança, de vegetação densa e cheio de chafarizes a irradiar frescura, mesmo no coração do Funchal.

As duas ribeiras íngremes a escorrer da serra, cobertas por um manto de verdura e flores constantes, cortando as ruas da cidade, até ao mar. As bordadeiras coloridas, a laborar em bancos pequenos, em plena rua, à vista curiosa de quem passava.

As esquinas da Sé e da fortaleza central eram embelezadas pelas vendedoras de formosas orquídeas, tecidas pela mão da natureza, em veludo natural, desenhadas em linhas de traço impecável. O Funchal era uma festa rija e permanente. O trato das gentes era doce e afável, mas envolvido numa subtil resignação, oculta e insular. Tal como a musicalidade da sua voz e o falar entoado e castiço. Difícil de entender, nos primeiros tempos.

 

[Continua]

[ Revisão / fixação de texto / selecção de fotos / título:  C.V.]

____________


Notas de C.V.:

(*) Vd. último poste da série > 15 de Outubro de 2010


Guiné 63/74 - P7131: Cartas, para os netos, de um futuro Palmeirim de Catió (J. L. Mendes Gomes) (3): Oficial e cavalheiro: Cruzeiro até à Madeira, no paquete Funchal






(**) Vd. postes da série Crónica de um Palmeirim de Catió:

20 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1194: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (1): Os canários, de caqui amarelo

2 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1236: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (2): Do Alentejo à África: do meu tenente ao nosso cabo

20 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1297: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (3): Do navio Timor ao Quartel de Santa Luzia

1 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1330: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (4): Bissau-Bolama-Como, dois dias de viagem em LDG

11 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1359: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (5): Baptismo de fogo a 12 km de Cufar

8 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1411: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (6): Por fim, o capitão...definitivo

22 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1455: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (7): O Sr. Brandão, de Ganjolá, aliás, de Arouca, e a Sra. Sexta-Feira

8 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1502: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (8): Com Bacar Jaló, no Cantanhez, a apanhar com o fogo da Marinha

11 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1582: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (9): O fascínio africano da terra e das gentes (fotos de Vitor Condeço)

29 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1634: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (10): A morte do Alferes Mário Sasso no Cantanhez

5 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1646: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (11): Não foi a mesma Pátria que nos acolheu

10 comentários:

Anónimo disse...

Caro Mendes Gomes

Que delícia de relato. Mais uma vez reavivas as memórias que guardo das 2 vezes que aportei à Madeira a bordo do paquete Funchal.

Há, no entanto, uma diferença bem grande no que diz respeito ao BII 19.

Estive lá de Julho a Dez/71 e, felizmente, não o conheci com as instalações que descreves mas sim já com novas instalações, perfeitamente adequadas ao fim militar a que se destinavam.

Ficava a meia encosta e estava rodeado por campos e bananais.

Voltei lá no ano passado, 38 anos volvidos, para o Almoço anual da minha companhia e que decorreu no quartel. Tivemos honras de 2º Comandante, toques militares, e uma 2ª Sargenta (?) mestre de cerimónias e de refeitório (mas que senhora militar...No nosso tempo não havia Sargentos daqueles). Que emoções!

Afinal desviei-me do tema. Era só para dizer que os campos e os bananais à volta do BII19... desapareceram!!!
Agora é só casas e mais casas a toda a volta.

Ah! e desculpa lá, mas o espada preto e o atum gaiado dispensava-os bem, na altura.

Espero novos textos teus

Um abraço para ti
Extensivo a todos os camaradas

José Vermelho
Ex-Fur Milº
CCaç 3520 - Cacine
CCaç 6 - Bedanda
CIM - Bolama

Torcato Mendonca disse...

Caro J.L. Mendes Gomes

Um abraço e gostei,mais uma vez, de ler um texto teu.

Depois PENSO de que este texto contraria algo. Não sei ao certo. Sei,isso sim, que fala em netos em vida militar passada e está muito bem escrito.

Assim sendo, PENSO que contraria algo.
Algo aqui neste blogue, neste espaço, Tabanca Grande, Tertúlia...é da idade, a minha claro, cada vez mais avançada.

Podem ajudar-me?????
Há alguma correlação com algo????

Á V/consideração Tertuliana

A bem do algo
Vosso T M

Anónimo disse...

Meu Caro Mendes Gomes,
Também pertenci ao dezanove, posteriormente, mas ainda nas velhas instalações, entre a rua dos Netos e a Praça do Municipio, que actualmente acolhem a universidade.
Bons tempos. E que belas recordações vieste avivar. Eu e o meu amigo Zé Tito, amigos desde a juventude, morávamos junto à "ponte nova", no beco de Sta. Emília, pertinho do local do retrato da ribeira. Era nossa senhoria, em idênticas condições, uma senhora entradota e solitária.
Eu ia a casa tomar banho, mudar de roupa e dormir.
Depois era a cidade divertida, por onde me perdia até às tantas, em namoricos ou cowboiàdas.
O Apólo, claro,era o meu local favorito. Um domingo estive de serviço com um conhecido capitão, que me desafiou a lá irmos almoçar. Pendurámos as pistolas, avisámos o cozinheiro, e... ála! Abancados ao lado, estava um casal sueco, ela, magnifica, linda de morrer. O capitão logo engendrou um esquema: "ólha lá pá, e se nós comessemos a sueca?" Surpreendido, perguntei-lhe pela manobra. "É simples. Tu falas bem inglês, metes conversa, convidas os gajos a visitar o quartel, embebedamos o gajo, e a seguir... tás a perceber?" Claro que percebi, e as coisas tomaram caminho, mas inibo-me de contar o resto, no estrito cumprimento do dever de lealdade, porque aconteceu matéria sugeita ao frio Regulamento de Disciplina Militar.
No Apólo tomava café, participava na tertúlia, regalava os olhos e, por vezes, tomava refeições. Juntava-se uma élite, maioritariamente civil, onde se decidiam programas ocupacionais. Por vezes dirigíamo-nos a uma cervejaria da Fernão Ornelas, onde eram servidas excelentes lapas, que o pão torrado e a cerveja ajudavam a aconchegar. Mas podíamos subir ao Monte, prosseguir até ao anão que servia açorda ou ovos bem quentinhos, e subíamos ao abrigo do Areeiro, uma espécie de casamata, onde se tomava a inevitável poncha para aquecimento interno.
Ou, em alternativa, tinha um amigo possuidor de uma adega para os lados do Ribeiro Frio, onde preparávamos o petisco e bebíamos com prodigalidade.
O Apólo era, por assim dizer, o centro do mundo, apesar de a nata local frequentar o Golden Gate. Neste sítio, encontrava-me, principalmente quando escasseava a massa, com um casal que, invariavelmente, me convidava para jantar em casa, onde, quase sempre conseguia introduzir o Zé Tito, por dever de solidariedade.
A propósito de jantares, na rua da Alfândega havia um snack, onde se fazia a preceito uns deliciosos filetes de espada, e também o bife de atum. Outro sítio para jantar, quando o rendimento mensal andava reduzido a umas moedas escuras, era o Novo Galo, nas traseiras do Indiana, o café de esquina, entre o BNU e a Sé. Lá, por apenas cinco escudos, empanturrava-me de macarrão, e pagava mais dez tostões por um copo de vinho continental. Mas havia muitos outros locais para matar a fome, de que destaco, a Romana e a Seta.
O primeiro, gerido pela mãe do secretário do turismo, servia papinha italiana, sempre boa aos vinte anos. Era carote, mas compensador e bem frequentado. O segundo, era para turistas, mas eu ia lá para me vingar e, normalmente, comia meio frango, uma posta de bacakhau, e uma espetada.
Aconchegado, dirigia-me aos locais de prazer, que podiam ser de dois géneros. Um dos géneros, de que o Porto Rico gozava maior mérito, eram lugares de alterne, por isso dispendiosos, mas onde me safava, ora por gentileza do pessoal, ora porque me continha na despesa.
(continua)

Anónimo disse...

(continuação)
O outro género, refere-se a estabelecimentos convencionais, bares e boites. Já existia a boite as Vespas, mas eu preferia o Gemini. Era muito bem frequentado, tanto por nacionais, como por estrangeiros. De entre os bares, destaco o antigo Red Lyon, onde uma ocasião me desloquei na companhia daquele capitão e outro camarada, num dos retratados carros de bois, também designados por lampiões (salvo erro). Ali chegados, o capitão chamou um dos empregados para nos servir no carro, e o pedido constou de 3 gins, 2 cervejas, e 2 sandes. Os gins foram para nós, na qualidade de turistas; as cervejas foram para os senhores responsáveis pelo carro, a tripulação; e as sandes foram para os bois. Já não me lembro como acabou a cena, se os bois comeram ou não as sandes, mas ri-me a bom fartar.
Em Câmara de Lobos situa-se um local para turistas, com exibições de folclore, e onde servem uma apaladada e bem apresentada poncha (a Coral?). Era também um destino usual, sobretuda se havia bifas por companhia.
Quanto à tropa, lembro-me da descrição parcial do edificio, das salas abandonadas por força da superioridade dos percevejos, mas acrescento que a aplicação militar era ministrada no campo da Almirante Reis, e os crosses faziam-se ao longo da Estrada Monumental, até Cãmara de Lobos, com a extensão total de 24 Km.
A mudança para S.Martinho começou ainda em 1969, e concretizou-se em 1970.
Já hoje telefonei para o Funchal.
Abraços fraternos
JD

Anónimo disse...

Acaabou de telefonar o ZéTito, a confirmar um almocinho. Ainda não faz ideia do que escrevi.
Para o Zé vai um grande abraço.
JD

Joaquim Luís Monteiro Mendes Gomes disse...

Olá! Puseram-me todos a salivar...Sobretudo aquela exaustiva exposição da boémia do Funchal daqueles tempos, do anónimo das 4 e 9 PM. Excepto naquela parte em que houve estrita violação do RDM!...
Afinal quem comeu quem?...
Tu eras um "lorde"!...E ainda bem. Eu voava mais rasteiro...e muito bem comportado...

Um grande abraço para toda a Tertúlia

Anónimo disse...

Bom dia Sr. Mendes Gomes!

Acho que os seus netos se vão encantar, como todos nós, nas lembranças tão bem descritas do seu avô.
É um prazer ler o que escreve.
É melhor que ver as fotos do lugar.
É muito mais abrangente!
Consigo ver as gentes, as casas, as encostas, a beleza luxuriante das flores e sentir o seu perfume.
Muito obrigada pela magnifica viagem que nos oferece, a esse lugar paradisíaco.

Encantada.

Felismina Costa

Joaquim Luís Monteiro Mendes Gomes disse...

Amiga D. Felismina

Obrigado pelas suas palavras. É sempre muito bom sentir e ouvir aplausos...

Escrever as crónicas foi um impulso vindo não sei de onde, para os meus netos e também para partilhar com outros os meus registos.

E deu certo. para já. Dos netos, que já são 4, maravilhosos..., só um está a aprender a ler...O João, com 7, o David com 5, a Sara, com 3 e o Tomás, com 1,2.
A propósito,
À nascença, tiveram honra...dum poema especial do avô Luís, como me chamam. Também estão à espera...

Obrigado. Seja muito feliz e apareça sempre por aqui.
Um abraço
Joaquim Mendes Gomes

Anónimo disse...

Amigo Joaquim Luis

Ler estes teus relatos da guerra da Guiné,é um prazer muito grande,para mim é o reviver da minha passagem por Angola entre 63/66,espero ter o prazer de continuar a ler o que escreves por mais alguns anos.

Um abraço (do outro)Joaquim Luis de Varziela.

Joaquim Luís Monteiro Mendes Gomes disse...

Os meus caros camaradas da tertúlia vão desculpar-me esta inflecção. Embora se trate também de um camarada da guerra de Angola...

Em Varziela, havia três Quim Luís. Um mais avançado na idade, aí uns, 9 a 10 anos. O Quim Luís "basbaio" de apelido. Era uma exemplar referência para nós, os mais pequenos. Jogava bem a bola, no adro da igreja de Pedra Maria.

Outro era o Quim Luís do "Manel Lavrador"...que maravilhoso e saudoso homem bom...como o resto da família...já partiu.

Este Quim Luís foi um bom e notável corredor da volta a Portugal. Pelos anos 50 e tais. Era o Joaquim Costa. Com muito bons lugares.

O 9º comentário, o do Anónimo só pode ser dele...
Que linda surpresa...me fizeste, grande amigo de infância que a vida desviou!?...
Obrigado pelas doces palavras. Têm um sabor muito especial.
Dá um carinhoso beijo à tua família toda. Oxalá por muitos anos.
Um grande abraço
Quim Luís