segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Guiné 63/74 - P7204: Recordações dos tempos de Bissau (Carlos Pinheiro) (1) : Dia de Todos os Santos de 1968

1. Mensagem de Carlos Manuel Rodrigues Pinheiro* (ex-1.º Cabo TRMS Op MSG, Centro de Mensagens do STM/QG/CTIG, 1968/70), com data de 26 de Outubro de 2010:

Caro companheiro, camarada e amigo Carlos Vinhal
Prosseguindo o que prometi há dias, aqui vai mais uma artigo se saudade e de recordação dos tempos de Bissau.
Era ainda o 3.º dia dos mais de 25 meses que por lá passei. Era dia 1 de Novembro, dia de todos os Santos. Estávamos em 1968. Mas a história sendo de certo modo trágica, não deixará de ter a sua utilidade nem que seja para que a memória não esqueça.

Para melhor lembrar aqueles que por lá passaram e informar os que ainda nada sabem da Guerra, vai também em anexo uma "paisagem" de GMCs daquele tempo já com mais de 40 anos andados naquela altura. Eram viaturas fora de série. Iam e voltavam sempre.
Uma vez vi uma que regressava do mato a rebocar outras 3 ou 4. Tinham força que nunca mais acabava. E não gastavam muito. Talvez uns 100 aos 50.

Por mera curiosidade, a foto tirada no Dia de Natal de 1968 na Companhia de Transportes, no QG em Bissau, com este tabanqueiro armado em cinéfilo.

Se e quando isto for publicado (seria interessante que fosse no próximo dia 1) agradeço-te que me informes.

Vou continuar esta tarefa de colaborar para avivar as memórias.

Um abraço
Carlos Pinheiro
Tabanqueiro 455


RECORDAÇÕES DOS TEMPOS DE BISSAU (1)

Dia de Todos os Santos de 1968 em Bissau

Era dia de Todos os Santos. Era dia 1 de Novembro de 1968. Estava no meu terceiro dia de Guiné. Tinha chegado no UÍGE em 28 de Outubro. Estava “adido” nos Adidos, em Brá, porque tinha ido em rendição individual e o meu Batalhão, o 1911, regressaria no mesmo barco onde eu tinha ido. Coisas da tropa. Só que, mesmo depois da comissão terminada e o barco ao largo à espera, mesmo assim, o 1911 estava numa operação especial no Sul. E o UÍGE lá esperou mais de uma semana.

Por tudo isto, estava “adido” nos Adidos, um quartel de passagem onde as condições, ou a falta delas, eram inimagináveis. Uma cama? O que era isso para os “periquitos” (1))? Comida? Tenham calma. Podem lá ir fora e andar “desenfiados” que ninguém dá pela vossa falta. Devem ainda trazer algum “patacão”(2)) da Metrópole no bolso. Desenrasquem-se, era a ordem e assim íamos fazendo, conforme podíamos.

Tudo ali estava de passagem, à espera de um destino. Para os que chegavam, era a espera da guia de marcha para o destino. Para os outros, os que já tinham terminado a comissão, era a espera do regresso desejado. Portanto, como não havia tanta coisa, camas era o que mais faltava. Não havia mesmo. A malta desenrascava-se a dormir em cima daquelas caixas da tropa que na Metrópole serviam para guardarmos, debaixo da cama, as nossas coisas e especialmente o farnel de casa e as botas de sair, as botas engraxadas. Ali, não. Ali serviam mesmo de cama. A primeira noite foi horrível. Os mosquitos, aos milhares, dada a falta de higiene e de qualquer tipo de limpeza mais que evidente, e ainda por cima com as “bolanhas”(3)) ali à volta, sabiam escolher o sangue novo acabado de chegar. No outro dia ainda não havia feridas, mas tínhamos o corpo todo picado. Parecia que tínhamos rubéola. Havia portanto que arranjar um sítio para dormir e eu, à boa maneira portuguesa, acabei por ter sorte.

Ainda no cais, no dia anterior quando desembarquei, encontrei um conterrâneo, já “velhote” naquelas coisas da guerra. Era condutor na Companhia de Transportes. Tinha sido ele, e os seus camaradas que nos transportaram, na véspera, naquelas velhas GMC da 2.ª Grande Guerra, para os nossos destinos. Foi ele que no dia seguinte me procurou para me dizer que, provisoriamente, me arranjava uma cama, com mosquiteiro, na sua Companhia, no Quartel-General, em Santa Luzia. Foi uma pequena felicidade, já que a maior parte dos companheiros de viagem só muito mais tarde é que tiveram a tal cama com mosquiteiro. Sim, esta coisa do mosquiteiro era um pormenor mais que importante, porque assim os mosquitos não nos chegavam ao pelo.
Talvez por isso, talvez porque não conhecia ainda mais ninguém naquelas paragens, mas também com sentimento de agradecimento, convidei o meu amigo para um petisco nesse dia de Todos os Santos.

Foi ele que escolheu o sítio. Aliás, eu ainda não conhecia nada. E assim, lá fomos até Safim, nos arredores de Bissau, onde se comiam umas ostras que eu ainda não sabia apreciar, mas também se comia um bocado de leitão e se bebiam umas “bazookas” da Metrópole ou até mesmo de Angola, a Cuca ou a Nocal, ou de Moçambique, a 2M, salvo erro.

A páginas tantas, como soe dizer-se, a meio do repasto, começa a passar por cima de nós uma série de helicópteros, movimentos esses a que eu não estava habituado e certamente por isso perguntei a que se devia tal bailado. E o meu amigo não se fez rogado:

- Havia “ronco”(4)). Mas o que era “ronco”?

E ele lá me explicou. Havia “porrada” de certeza.

Mas nós lá fomos cumprindo a obrigação que nos tinha levado aquele sítio. A temperatura era elevada, a humidade era ainda maior. Havia portanto que refrescar o corpo com as bebidas frescas sem que notássemos que a mente ficava cada vez mais nublada.

Depois, lá voltámos ao quartel, a Santa Luzia, à procura do local do descanso. Mas qual descanso? Quando lá chegámos, de certo modo “alegres”, mandaram-nos calar porque a caserna estava cheia de feridos.

Feridos? Mas como? Foi como um balde água fria. O “calor” passou-nos de imediato. Caímos de imediato em nós. O que é que se tinha passado? Tinha sido só mais um caso. Dramático como muitos outros. Um “periquito”, talvez duma Companhia que tinha ido comigo no barco, ao subir para uma GMC na zona de Bula, a caminho do seu destino, deixou cair a sua bazuca armada e aconteceu um mar de dor e de sangue.

Nunca cheguei a saber quantos morreram, mas alguns acabaram ali a comissão que estavam a iniciar. Muitos feridos estilhaçados em tudo que foi sitio. Nos braços, nas pernas, tronco, na cabeça, onde calhou. Daí aquele bailado dos helicópteros. No meio dos feridos, alguns eram condutores da Companhia de Transportes. Por isso, o Hospital, o HM 241, o Hospital Militar de Bissau onde se fizeram autênticos milagres durante toda a guerra, pediu aquela Unidade para recrutar pessoal para ir dar sangue. Voluntários apareceram de imediato, como era habitual. O Unimog arrancou carregado, mas antes de chegar ao Hospital, despistou-se junto ao Bairro da Ajuda, já muito perto do Hospital. Mais feridos. Mais dor. Mais sangue. Mais sofrimento. Daí a razão de tantos feridos na caserna aquela hora. Eram os que estavam menos-mal. O Hospital estava cheio e teve que dar alta aos que inspiravam menos cuidados. Era a guerra na verdadeira acepção da palavra.

Foi assim o meu primeiro dia de Todos os Santos que passei na Guiné. Há dias que não se esquecem e aquele foi um deles.

1) Militar recém-chegado à Guiné.
2) Dinheiro.
3) Terrenos pantanosos.
4) “Festa”, pancada, algo de anormal.

Carlos Pinheiro
26.04.08
__________

Nota de CV:

(*) Vd. poste de 25 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7173: Tabanca Grande (250): Carlos Manuel Rodrigues Pinheiro, ex-1.º Cabo TRMS Op MSG (STM/QG/CTIG, 1968/70)

5 comentários:

Luís Graça disse...

Parabéns, Carlos, pela tua primeira história... Há, de facto, muitas efemérides trágicas no nosso percurso.

Aproveito o ensejo pra dar os parabéns à malta da Arma das Transmissões: por formação ou deformação, estavam muito atentos ao que se passava à sua volta (para além das ondas hertzianas). Temos muitos camaradas de Trms entre nós, na Tabanca Grande, o que é de louvar e de registar com agrado. Luís

Anónimo disse...

Grande Luis
Uma pequena rectificação. Este é o primeiro trabalho se uma série, mas como sabes é o resultado do desafio, que eu aceitei, pelo trabalho já publicado em 23 de Outubro que descrevia a minha viagem para a Guiné, precisamente no dia em que completaram 42 anos desse embarque.
De facto nem imaginas o que por ali se passava e o que ali passava. Entrava tudo em claro, metiamos no buraco para os "cifras", recebiamos já cifrado e era só encaminhar para os destinos. E não podiamos ter enganos. Muitas vezes estavam muitas vidas em causa. E quando recebiamos msgs importantes do mato, era só pormos o unimog em marcha e entregar rápidamente no destinatário, fosse dia, fosse noite, chovesse ou fizesse sol.Parecia um serviço fácil e calmo, mas só quem por lá passou é que sabe.
De qualquer forma os meus agradecimentos pelas tuas palavras amigas e um abraço a todo o pessoal das TRMS.
Carlos Pinheiro
01.11.10

Anónimo disse...

Tens razão, Carlos. Em qualquer parte os quarteis de Adidos eram do piorio. Passei pelo de Luanda, pois fui em rendição individual. Nunca imaginei que fosse possível haver uma unidade militar portuguesa em que reinasse tamanha bagunça e indisciplina, É que, além dos que chegavam e partiam, também havia os em consulta psiquiátrica e não só, os que aguardavam julgamento e sei lá que mais. Imagina que, por ser mais antigo, ainda andei algum tempo por lá (mas dormia na messe de Sargentos, na Av. dos Combatentes) e calhou-me a vez de fazer de Sargento de Dia. Nunca pensei vir a passar tão maus bocados numa tarefa normalíssima e sem perigo efectivo à vista. Foi o cabo dos trabalhos.
Não posso ouvir falar em adidos. Nunca compraria ténis "adidas".
Puff, ainda me arrepio só de pensar no que passei, mesmo que não tenha memória de pormenores.
Um abraço,
Carlos Cordeiro

Hélder Valério disse...

Caro camarada Carlos Pinheiro

Aquando da tua apresentação não tive oportunidade de te saudar, o que aproveito para o fazer agora.

Não és o único Op. de Mensagens aqui representado, embora hajam já bastantes homens das transmissões, essencialmente das várias Unidades operacionais mas também do STM.

É bom que contes as tuas histórias até para dar a conhecer a outros como se 'vivia' a guerra longe do mato, embora sempre presente e quantas vezes com as marcas "urgente", "imediato", "relâmpago", "zulu", que deixavam angustiados quem as recebia, com a certeza que representavam problemas e que necessitavam de serem passadas antes de 'queimarem as mãos'.

Vai contando.

Uma abraço
Hélder S.

Anónimo disse...

Carlos Cordeiro
Obrigado pelas tuas palavras, Por4 azar meu estive dois dias nos Adidos em Lisboa e aquilo não era bom. Mas em Bissau aquilo era o pior que se possa imaginar. Por exemplo, ao lado das mesas do refeitório, os esgotos da cozinha a correrem a c+eu aberto ao nosso lado. Por causa de tanta porcaria, nem sequer se pode falar em falta de limoeza, porque lá não se sabia o que era isso, é que havia milhões de mosquitos a tratarem-nos da saúde. Ms pronto. Desenrasquei-me.


Para o Helder
De facto essas mensagens de que falas, especialmente quando se tratava de pedidos de apoio aéreo ou pedido de evacuações andava tudo "quente quente, chac, chac". Eram serviços de muita responsabilidade e nós sabiamos que estavam vidas em risco. Havia dias que nem nos apetecia comer. Havia malta que compreendia a nossa missão, mas outros nem se apercebiam.
Um abraço
Carlos Pinheiro