quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Guiné 63/74 - P7261: História de vida (32): Adilan, nha minino. Ou como se fica com um menino nos braços - 1ª Parte (Manuel Joaquim)


Sintra > Azenhas do Mar > Setembro de 1977 >  O Adilan, com as suas queridas “maninhas”, dez anos depois de vir da Guiné para Portugal... Fará 50 anos no dia 12 de Janeiro de 2011. E a nossa Tabanca Grande, nesse dia,  quer-lhe cantar os "Parabéns a Você!"...


1. O nosso Camarada Manuel Joaquim, ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67, enviou-nos, com data de 5 de Novembro de 2010, a seguinte mensagem:Camaradas,

Envio-vos um texto e fotos, sobre um menino balanta-mané, o JM, meu "familiar" desde 1967, quando o trouxe da Guiné e que hoje ronda os 50 anos de idade (estou mesmo velhote!).
Tentei que o relato não fosse tão extenso mas não consegui. Aliás, o tema tem bem por onde se pegar e se desenvolver.
Mas este relato limita-se a dar uma ideia do porquê da vinda do menino para Portugal e suas peripécias, do ambiente familiar que encontrou, do seu regresso à Guiné em 1978, do encontro com seus pais e do seu regresso a Portugal, onde reside atualmente.
As fotos são minhas. Não sei se acham interessante a formatização do texto do Apêndice com selos da Guiné-Bissau. Fi-lo porque este texto é quase todo composto por excertos de correspondência por mim recebida, vinda do meu JM. [ O texto que se publica segue o novo acordo ortográfico. EMR]
ADILAN, nha minino... Ou como se fica com um menino nos braços (1ª Parte)

Texto e fotos: © Manuel Joaquim (2010) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados
Introdução
Durante a chamada Guerra do Ultramar (1961/74) diversas crianças vieram para Portugal, trazidas por militares em fim de comissão. Eu fui um dos que o fez e sou dos que acham que algumas destas ações são parte da história da guerra. De certeza que a minha o é. Vejamos:
Guiné, Janeiro de 1966: Este meu menino foi capturado com cerca de quatro anos, passando a conviver, no ambiente militar de Bissorã, com a CCaç 1419/ Bcaç 1857. E acabou por entrar na minha casa em 1967. Ainda cá mora.
Para contar o que se passou com nha minino (o meu menino) fui, por ele, posto à vontade. Não desvendo a sua naturalidade e, do seu nome, ficam as iniciais JMSC. É óbvio que poderá ser reconhecido por quem de mais perto lidou com ele, em Portugal e na Guiné, mas não quero facilitar o acesso à sua identidade.
Irei centrar-me em períodos ou momentos da sua vida, para mim importantes. Não irei inventar e empolar mas recordar acontecimentos e emoções. Confio na minha memória que, neste caso, tem sido muitas vezes ativada, de há 43 anos para cá.


Nha minino > Maio/1967 > No dia seguinte à sua chegada a Portugal

Uma explicação: Adilan é o nome original (balanta-mané) de JMSC. Quando tratei do registo da criança nos serviços competentes de Bissau já todos tinham esquecido o seu nome, ela incluída. Só mais tarde, uns onze anos depois, se voltou a saber como se chamava em pequenino. Por fim, e vale o que vale: vou falar de alguém muito querido que me trata por padrinho e que é irmão das minhas filhas e tio dos meus netos (tratamento familiar mútuo).
1. A causa
Bissorã, 11/ 01/ 1966. Ordem operacional para a CCaç 1419: "limpeza” da tabanca de C., trazendo a sua população para Bissorã. Ao meu grupo de combate cabe-lhe ficar em casa, aguardando o dia seguinte com a missão de organizar a recolha de toda a gente na ponte (destruída) sobre o rio Blassar, limite transitável da estrada Bissorã/Barro.
Ao início da manhã estamos no local. Segurança montada, espera-se. Até que se percebe no horizonte um movimento ondulante, tipo cobra gigante de cor indefinida, que vai ganhando forma à medida que se aproxima: sobressaem mulheres e crianças, animais diversos, alguns deles trazidos à corda, esteiras, utensílios domésticos, tudo misturado com soldados e milícias. Eles aí vêm mas não se ouve qualquer ruído.
Passam-se uns minutos e já se ouve a cobra a rastejar pelo caminho de aproximação. O barulho aumenta progressivamente e, ao dar-se o encontro, o obstáculo gerado pela falta da ponte faz a cobra dissolver-se numa mancha ruidosa, alargada e desordenada, a dirigir-se para as viaturas estacionadas no outro lado do rio (seco). Na confusão da subida para as viaturas, a algazarra de soldados e milícias contrasta com a indiferença e a resignação (ou medo disfarçado?) dos deslocados. Lá se vai arrumando tudo, com alguma dificuldade, e a coluna põe-se em marcha.
Chegados a Bissorã, ala que se faz tarde! Esvaziam-se as viaturas, a tropa vai para o aquartelamento e o povo... fica no chão, embrulhado na tralha trazida e agarrado aos animais, sem controlo aparente. Nem a milícia, que por ali ronda, parece interessada naquela gente. Talvez esteja a controlar, deve estar a cumprir missão específica. Passeio mais uma vez o olhar pelo aglomerado humano e, de repente, dou comigo a pensar: “Não há homens aqui? Só vejo um!"... No meio das mulheres e crianças está um homem, já meio velhote, com ar de perdido ou de inseguro, todo encolhido, calado. “... não conseguiram trazer mais nenhum homem da tabanca? Que estranho!... que se lixe, quero lá saber! Vamos lá mas é arrumar isto!” (as viaturas).
2. A surpresa
Assunto arrumado, dirijo-me a casa. Sim, casa. Os furriéis e 2ºs sargentos da CCaç 1419 estão aboletados numa vivenda, situada fora do aquartelamento e em ótimo estado de conservação, onde também funciona a enfermaria e posto de socorros da Companhia, no que terá sido a área comercial do edifício. Ao entrar pelo pátio das traseiras vejo um grupo todo excitado, como que formado em meia-lua, virado para uma parede. – O que é isto? – Eh pá, o Sarrico trouxe este puto do mato!
Aproximo-me e vejo um pretinho franzino, três/quatro anitos, junto à parede. Reparo no 2º sarg Sarrico, veterano da guerra em Angola, à volta do menino a tentar fazê-lo falar, sem resultado. Chama um miúdo balanta que por ali anda, para servir de intérprete. Nada. Do menino nem um pio mas vê-se que está a tremer, com os olhos arregalados e inquietos. A sua cor é indefinida, talvez acinzentada, a pele está cheia de manchas esbranquiçadas.
Nisto aparece o furriel enfermeiro, repara no aspeto da criança e faz logo um diagnóstico rápido, sentenciando:
– Olhem, ponham-no debaixo da torneira! Ele precisa de uma boa barrela!
– Ponham-no “preto!” – grita alguém da meia-lua.
Há gargalhadas dispersas. Junta-se ao grupo o 1º sarg Lageira, olha, informa-se, sussurra um sincopado “coi... ta… di… nho!” e interpela o enfermeiro:
– Oh Santos, não tens nada para estas coisas da pele? Olha como o puto está!
O Santos deve ter dito que sim e o Sarrico põe a mão na torneira que está na parede da casa, a um metro do solo e por cima da cabeça do miúdo, preparando-se para o lavar. Ao abri-la, o pretinho começa a chorar, aos berros, quando vê a água a jorrar sobre si. E, sempre a chorar, é lavado da cabeça aos pés.
O miúdo está a acalmar, parece. O Sarrico tenta de novo usar o intérprete, com expressões do tipo «não tenhas medo», «ninguém te faz mal», e pergunta-lhe o nome. E não é que o garoto responde? Com uma voz encolhida, deve ter dito Adilan. Sarrico : “Dila?” Intérprete: “A.. .dí… lan!” Sarrico: “pois, Dila”. E quanto ao nome, não se passa daqui. Ficou a dúvida.
(Obs.: Hoje consigo lembrar esta cena, com o nome Adilan incluído, por razões que aparecerão adiante no texto. Mas, na altura, toda a gente esqueceu o seu nome original, inclusive ele próprio. Não admira, é o resultado de ter passado a ser reconhecido por 'Sarrico' e assim ficar a ser chamado.)

Voltemos ao banho de torneira. Está o garoto, lavado e mais calmo, a começar a responder ao intérprete quando aparece o Santos, todo pressuroso, com um grande frasco na mão, cheio do tal produto que faz bem à pele:
– Vamos lá a isto!





Bissorã > Janeiro/1966 > Eu, na varanda da habitação dos sargentos da CCaç 1419
O enfermeiro dirige-se ao miúdo e passa-lhe a tintura pelo corpo todo. A cena torna-se patética. Com o corpo a arder, o garoto grita que nem um desalmado tentando soltar-se; alguns dão gargalhadas, outros têm um sorriso amarelo, parecendo incomodados. Eis senão quando o menino solta-se mesmo e, aos saltos que nem um cabrito, investe contra a meia-lua humana, aos berros, assustado com o que está a sentir. Parece pedir socorro. Tem razão o 1º Lageira, com o "coitadinho" de há pouco. Mas o menino não consegue fugir e, qual passarinho entre as mãos do seu captor, vai acalmando a um ritmo lento parecendo estar a tomar conta, pela primeira vez, do ambiente que o rodeia.
As conversas cruzam-se. Discute-se o acontecimento. Até que se ouve o sarg Sarrico dizer que vai cuidar da criança. Não digo nada mas o caso incomoda-me: o menino foi retirado à força da sua comunidade e, ainda por cima, numa ação de reordenamento populacional. Por onde andarão seus pais ou outros familiares?
Com a decisão do Sarrico a criança fica a viver na nossa casa. Por incrível que pareça, passados poucos dias já parece outro, a sua pele brilha num castanho claro, ele e o Sarrico parecem já ser amigos, fazem lembrar o filme “O Garoto de Charlot“. Mas esta situação só durou pouco mais de um mês.
(Obs.: Hoje sei que seus pais fugiram, deixando o filho para trás porque estava afastado deles, em companhia de outro garoto mais velho, a “trabalhar”, assustando a passarada que está sempre cheia de fome ao alvorecer. Foi apanhado de surpresa por alguém que não mais o largou. O seu companheiro conseguiu fugir.)
3. O acidente
Bissorã, 20/ 02/ 1966. Meio da tarde. Uma mulher da tabanca, com problemas no parto, precisa de ser evacuada para Bissau. Vem um helicóptero. O piloto diz ter visto um grupo suspeito, na estrada Bissorã/Bula, que lhe pareceu estar em reunião. Tal informação gera uma ordem de saída para se verificar e atuar conforme. Foi dada ao grupo de combate do sarg Sarrico.
Está um calor sufocante. O Sarrico tem a mania de andar no mato com uma granada de fumos. Não sabemos porquê. Talvez tenha medo de se perder; ele adora fotografar e é frequente vê-lo de máquina fotográfica nas mãos durante as operações. Hoje, para cúmulo, tem a granada num bolso das calças, sem arejamento. Distração ou inconsciência?
Pois é. Ao aguardar a saída, ao sol direto, a granada rebenta-lhe no bolso : PÔFF!... Queimaduras muito graves nos dedos das mãos, no baixo ventre e noutros locais alcançados pelos espirros do material químico. Aparece-nos em casa, pelo seu próprio pé a caminho da enfermaria, e uma espécie de fiozinhos de vapor branco evolam-se saindo dos farrapos do camuflado, das zonas do corpo atingidas... até da G3! Socorro possível e imediato, evacuação para Bissau. Segue-se Lisboa (HMP) e... salvou-se! Mas a morte andava por perto, não esperou muito tempo para o levar.

Final da tarde. Naquela falsa calma dorida e angustiante, alguém pergunta:
– Eh pá, e o puto? Que é que se faz com ele?.

Bem, fala-se por falar, trocam-se olhares, encolhem-se ombros e ninguém assume nada. O puto está sem o seu protetor e é precisa uma solução, de e para o imediato. Que não demora muito. Alguns soldados levam-no para a caserna, batizam-no de Sarrico, e lá ficam com ele.
Os meses vão passando, a convivência corre bem mas o miúdo é livre de frequentar a rua e a tabanca. Parece que “é de todos e não é de ninguém”. Não é mascote. Vejo-o, uma vez por outra, nos pequenos bandos de crianças que, de lata na mão, esperam pelas sobras do rancho. Não precisa de comida, quer é brincar e participar nas movimentações da miudagem. Mais dia menos dia, penso, será recuperado totalmente por alguém da família. Chego a estranhar isto não ter ainda acontecido.
4. A “emboscada”
Bissorã, finais de Outubro/66. Oito meses são passados desde o acidente que vitimou o 2º sarg  Sarrico. É alterada a disposição no terreno das forças militares do BCaç 1857 e, assim, a CCaç 1419 sai de Bissorã e vai para Mansabá. Que bela prenda, para final de comissão!
Nas vésperas da mudança, a sociedade civil local organiza um convívio para agradecer o trabalho da Companhia durante os 12 meses que permaneceu em Bissorã. Foram convidados os oficiais, os sargentos e algumas praças. Bom ambiente, muitas bebidas, bons petiscos e, com coisas destas, pouco tempo é preciso para se esquecer a razão das despedidas. Às tantas, alguém me convoca:
– Meu furriel, há para ali pessoal que quer falar consigo. Pedem p´ra ir lá.
Estranhando o despropósito do momento e da hora, bem noturna , lá vou até à porta.
– Oh nosso furriel, um favor, veja se convence o nosso capitão a deixar levar o Sarrico c´a gente p´ra Mansabá! É que ele não autoriza, já fizemos tudo e... nada! Veja lá se o convence!
Tento dizer-lhes que o capitão lá terá as suas razões... assunto complicado... não deve ser possível levar o miúdo... Mas, perante tanta insistência, não resisti:
– Está bem, estejam descansados que eu vou tentar! Esperem aí!
Pego num uísque e por ali fico bebericando, conversando e aguardando a oportunidade de cumprir o prometido. Falo com alguns camaradas sobre o assunto mas ninguém está ali para pensar nisso! O ambiente está animado, barulhento e... ,para mim, há uma resposta a dar ao pessoal que espera lá fora. Vamos lá!
Qual mensageiro da plebe castrense, já envolto em vapores etílicos, um bocado leve no andar e de fala um pouco entaramelada, lá vou eu ao encontro do capitão. De chofre, sem rodeios, em voz bem alta:
– Meu capitão, por que não deixa ir o Sarrico c´os soldados p´ra Mansabá? Estão pr´ali quase a...
Nem me deixa acabar. Com a voz ainda mais alta que a minha, atira logo:
– Oh meu caro Manuel Joaquim, responsabiliza-se por ele?
Pimba!!!... que grande martelada na tola! Inesperadamente, em décimas de segundo, os meus neurónios excitados pelo álcool (anestesiados?) devem ter decidido eu dizer, de imediato:
– Responsabilizo, pois!
O capitão, talvez surpreendido com tal resposta, engasga, pigarreia e... :
– Então está bem! Se assim é, o rapaz fica ao seu encargo a partir de agora!
– Com certeza, meu capitão! Vou já avisar o pessoal!
E não houve mais conversa! Meia volta e lá vou eu para a porta da rua ter com a malta, um pouco zonzo com o que me está a acontecer:
– Podem levar o Sarrico! A partir de agora está por vossa conta... e minha!!!
– Eh!.. bestial !!! Obrigado!!!
Caem-me em cima festejando e voltam para a caserna, rua fora, festejando... eu volto à sala para festejar, digo a alguém “ já me f... ! ” e agarro mais um uísque para me ajudar a digerir o assunto.

Lembro-me bem da saída de Bissorã, bem cedo. Pouca gente na rua, uns acenos tímidos, quase indiferença. É exceção um pequeno núcleo a protestar quando passa por ele a viatura onde segue o Sarrico. Fico surpreendido pois não imaginava tal oposição. Afinal, o miúdo tem família ali em Bissorã! E, ainda por cima, a reinvindicá-lo!
Quem diria, estava sinalizado pela família e ninguém me disse nada?! ... “ merda p`ra isto!”...
Sinto um certo mal-estar. O ruído, ou melhor, a razão daquele protesto incomoda-me: “Olha no que eu me meti! ... F...-se! ”
Lá vou matutando, inseguro e aborrecido, até Mansoa. Aqui, e a caminho de Mansabá, começo a medir verdadeiramente o problema que arranjei e que tenho de resolver!...
Sem saber como, e de um momento para o outro, fico com um menino nos braços, literalmente!

Mansabá > 1967 > Contraluz
5. A decisão
Mansabá, Novembro / 1967. O Sarrico fica a viver com os soldados, a tempo inteiro. Não quero interferir, pois eles gostam dele e tratam-no muito bem. E há também um pequeno grupo responsável pelo seu bem-estar. Do meu lado sucedem-se algumas conversas com o capitão, à procura de uma possível saída para resolver o meu problema.
Passa-se o tempo e nada, nem sim nem sopas. Depois de tudo o que aconteceu, só vejo uma solução para resolver o caso, ética e moralmente aceitável para mim. É levar o garoto para Portugal.
Decisão tomada, vou informar o capitão e, para grande surpresa minha, ouvi-lhe um “não esperava outra coisa”! A seguir, dirijo-me à caserna e dou a notícia aos cuidadores:
– Está resolvido, vou levar o Sarrico comigo para a metrópole! Tratem-no bem, digam-lhe que irei tomar conta dele e que vai gostar muito de estar comigo. Quero que me veja como seu protetor, como a sua segurança quando vocês o deixarem.
Com esta minha decisão há, de novo, festa na caserna. E eu sinto-me confortado, pacificado.
Os dias passam. Não sei o que vai na cabeça do, agora, nha minino. É um menino muito bem tratado por todos. Para já quero que me veja como uma espécie de figura mágica que o pode proteger. Vê-me de longe, não me aproximo, de vez em quando calha trocarmos olhares, deve sentir o carinho do meu olhar, talvez.

Mansabá > 1967 > Vista, de dentro do quartel, de parte da tabanca (W). Em 1º plano nota- se a cobertura de um abrigo

Mansabá, Abril de 1967. Passaram-se cinco meses. É preciso regularizar a situação civil do Sarrico e preparar a sua viagem para Lisboa, prevista para o fim do mês. Vou a Bissau: (i) registá-lo com um nome cujas iniciais são JMSC (cada uma delas corresponde também à inicial de outros nomes: o meu, de meu pai, da sua tabanca natal, de quem o capturou); (ii) autenticar um Termo de Responsabilidade sobre a criança; (iii) obter autorização da PIDE para a viagem; (iiii) comprar a respetiva passagem marítima. Tudo resolvido, regresso a Mansabá. «O Sarrico vai c´a gente!», grita-se na caserna.

Mansabá > 1967 > Regresso das tarefas agrícolas, ao fim da tarde

Bissau, finais de Abril /1967. Adeus Mansabá, olá Bissau! Matam-se saudades das ostras e doutros petiscos (nos três primeiros meses de comissão a CCaç 1419 esteve colocada em Bissau). O dia do embarque aproxima-se. Vai-se à procura de roupa para o menino que fica todo boneco, uma beleza. O pessoal rejubila. E é nesta altura, nas compras, que tenho o que se pode chamar um verdadeiro primeiro contacto físico, afetivo, com o balantinha-mané mas durante pouco tempo, o tempo das compras. Só lhe volto a tocar em Abrantes.

6. Portugal
Lisboa, 9 de Maio de 1967. Cais da Rocha: o UIGE despeja a carga, a alegria anda estampada nos rostos dos militares, de seus familiares e amigos.
Menos efusivo do que antes imaginava, desço as escadas do navio e vou ao encontro da namorada. Um pouco depois nha minino passa junto de nós, todo apinocado e acompanhado por alguns soldados. A minha futura sogra exclama “Olha ali um pretinho tão giro!”.
Digo com alguma indiferença “irão vê-lo muitas vezes” e vejo que não me percebem. É que eu não disse nada a ninguém! A ninguém mesmo!
Segue-se a viagem de comboio para o RI 2, em Abrantes. Só aqui, na hora das despedidas, acontece a entrega do menino. Lágrimas e abraços a selar o momento. Assiste um amigo de Pombal que ali está de carro para nos recolher, a mim e a outro militar lá da terra. A surpresa é grande quando percebe que há mais um passageiro, e que passageiro!
A caminho de Pombal, a primeira paragem é na minha casa, numa aldeia chamada Casal Novo. Minha mãe está sozinha: meu pai está em França, meu irmão mais novo também e o outro irmão está em Moçambique, já recuperado de ferimentos em combate, a cumprir os meses finais de comissão na cidade da Beira. (Como a mãe deve ter sofrido com dois filhos na guerra, em simultâneo durante mais de um ano, e um outro fugido em França!)
Alegria a rodos, vamos todos casa adentro. Saltam um chouriço e uma garrafa de vinho, o menino é motivo de conversa mas não diz uma palavra. Está sentado numa cadeira, hirto, afastado da mesa, como que olhando para o vazio. Vêm as despedidas, sai-se para a rua mas ele ficou onde estava. Minha mãe, que ficou à porta, nota a falta da criança e exclama: “Então não levam o menino?!!!”.
Ficam como que assarapantados com a pergunta mas, de imediato, lhes digo: “Não lhe disse nada!” e para ela: “O menino fica comigo!”. Fica de boca aberta, não quer acreditar, e há mais uns minutos de conversa motivada pelas circunstâncias.
Ao reentrar, verifico que ele está sentado no mesmo sítio. Olha-me calmamente, agora sinto que me olha mesmo! Espantam-me a calma e a confiança que aparenta. Belo trabalho dos soldados, só pode ser. Tentamos conversar. O seu português é tosco mas lá nos entendemos.
Vamos comer mais alguma coisa enquanto minha mãe vai recuperando da surpresa e do espanto. Depois, o sono vem depressa ao seu encontro e já não acordou antes de ser levado para a cama. Minha mãe quer perceber o que aconteceu para ter, assim, um menino em casa. E que menino! A conversa prolonga-se.
Acordo, bem tarde, no dia seguinte. Estavam os dois, no quintal, a tratar das galinhas e doutra bicharada. “Maravilha!, sucedeu química entre eles!” – penso. E diz a minha mãe:
– Queres saber? Logo de manhãzinha fui chamar as vizinhas: “querem ver a prenda que o meu Manel me trouxe da Guiné?” Olha, vieram a correr e abri-lhes a porta do quarto, só se via uma bola preta, assim a cara, com duas coisas mais claras, assim os olhos, e elas não sabiam o que era! Abri um pouco as cortinas da janela para verem melhor e nem imaginas como ficaram! Ele estava acordado, muito quietinho de olhos arregalados, só com a cabeça fora dos lençóis!
Bela cena! Começo a sentir-me bem, verdadeiramente.

Pombal > Casal Novo > Maio/1967 > Os primeiros passos de corrida para o domínio do espaço da aldeia
7. A integração
Situada perto de Pombal, Casal Novo é aldeia pequena mas a notícia da chegada de um pretito da Guiné espalha-se facilmente para lá da aldeia. Será conveniente fazer algum tipo de apresentação social e, para o efeito, nada melhor que aproveitar a missa dominical.
Assim, a 14 de Maio e à saída da missa, lá estou no largo da igreja paroquial de Santiago de Litém com o meu pequenino JM. A apresentação é um sucesso, para mim e para ele. Muito seguro de si, pose empertigada, é alvo de grande curiosidade.
Aproveito a ocasião e vou apresentá-lo ao pároco, que fica encantado. Interessa-me motivá-lo para me ajudar na integração social da criança. Vem à baila a educação religiosa e, logo ali, fica decidido que o menino será batizado.
Resolvo comunicar ao padre a minha intenção de realizar, na igreja local, o meu casamento. Aponto para finais de Agosto. E surge a ideia, que até é do padre: por que não realizar o casamento e o batizado na mesma altura? Acho interessante, ótimo mesmo, mas preciso do acordo da noiva (que veio a concordar).
Para criar vínculos familiares combinou-se que meu pai seria o padrinho de batismo e a noiva seria a madrinha. E em 20 de Agosto de 1967, a seguir ao meu casamento, realiza-se o batizado do menino JMSC. E assim ficamos todos seus padrinhos, diretamente ou por afinidade.



Pombal > Santiago de Litém > Agosto/1967 > Um casamento e um batizado, três meses após a chegada da Guiné

Após o casamento vou morar para Rio de Mouro (Sintra) e deixo o menino com meus pais. Já está decidido, ficará com minha mãe (meu pai trabalha em França) e em Outubro irá frequentar a escola da aldeia.
É a melhor solução pois, sendo eu professor titular de um lugar de escola perto da Figueira da Foz (não consegui transferência atempada para a área de Lisboa, onde a esposa trabalha), será difícil tomar conta do miúdo.
Assim a maior parte dos nossos fins-de-semana, durante o ano letivo, irá passar-se na minha casa paterna. E, para ajudar, nota-se uma enorme empatia entre ele e a agora “madrinha”, a minha mãe.
Na escola a integração é rápida, torna-se um dos melhores alunos, desde a primeira classe. Assim, no ano seguinte, apesar de eu ficar colocado na Amadora, opta-se pela sua não mudança de escola.
Na aldeia é muito querido por toda a gente e, nos seus tempos livres, é vê-lo a participar em pequenas tarefas rurais, as mais diversas, tanto nas da sua casa como nas dos vizinhos. Esta situação dura quase quatro anos e termina pelo Natal/1970, quando meus pais resolvem viver juntos em Paris.

Agualva-Cacém, 1971. Em Janeiro, o JM vem viver comigo. O afastamento da aldeia não esfria as relações com seus habitantes pois grande parte das suas férias escolares futuras será lá que a passa, participando ativamente na vida social local.
A chegada dele coincide com o aumento da família. A uma menina com dois anos e meio está quase a juntar-se uma outra. Nasce um mês depois. Ele é o seu “irmão mais velho” , elas assim o vêem e ele assim o sente. Elas são as suas “manas”.
E temos agora um rapaz prestes a entrar na adolescência, num ambiente totalmente diferente, tanto familiar como social.
Segue o percurso escolar sem sobressaltos de qualquer espécie até ao 25 de Abril. Mais cedo do que eu pensava, e na sequência da Revolução de Abril que o apanha com 13 anos, ele começa a prestar muita atenção ao que se passa na Guiné.
É verdade que sempre tentei criar nele laços afetivos com o seu país natal, ajudando-o a criar e a manter um sentimento de pertença às suas gentes e a um espaço que é seu por nascimento, mas não lhe tinha notado nenhum interesse especial no assunto.


Agualva > Cacém > No carnaval de 1973 > Com a madrinha, passeando as “manas”

8. O regresso
A independência da Guiné-Bissau é para ele uma coisa normal, estava preparado para tal. Sente-se bem com o facto. Há muito tempo que lhe venho dizendo para não menosprezar os estudos pois poderiam ser importantes para vir a ajudar, um dia, o seu país, assim mesmo, o seu país.
Os anos vão passando e a Guiné-Bissau torna-se um chamariz irresistível. Devo ter contribuído para isso, não medindo as palavras para elogiar seu povo e suas belezas naturais, o aroma e o sabor dos frutos, o paladar de um bom chabéu; para recordar o faiscar furioso dos relâmpagos com o ribombar ensurdecedor dos trovões, os cheiros fortes, mesmo excessivos, da floresta húmida e os suaves aromas vindos da savana seca no cacimbo da madrugada; para referir a beleza de um batuque, os sorrisos das crianças e a dignidade dos velhos, a cultura da sua gente. Talvez eu tenha pecado por não o alertar para as coisas más e desagradáveis que também existiam, e que seriam muitas.
Também nunca lhe menti sobre seus pais. Podia ter dito que tinham morrido mas digo-lhe que tanto podem estar mortos como terem fugido no momento em que ele foi apanhado. A verdade é que ele acredita mais na morte deles do que eu. Tento deixar-lhe entreaberta a porta da esperança, sempre.
Ao acabar o nono ano, em 1977, o rapaz pensa em voltar à Guiné. Começo a procurar maneira de lhe fazer a vontade. E, em Setembro, consegue-se lugar num avião militar português.
Temos então o JM a despedir-se dos amigos, dos familiares e do pessoal da(s) aldeia(s) com quem conviveu nos primeiros anos portugueses e onde passava férias escolares nos últimos cinco anos. Prendas arrumadas, enxoval emalado, despedidas lacrimosas e , na data marcada, ida para o aeroporto. Na manhã seguinte, estava-me a bater à porta!
– Então? !!! - pergunto, muito admirado.
– Pifou tudo, padrinho! Ao preparar o embarque, e ao verem a minha idade, perguntaram-me quem é que estava em Bissau à minha espera. Como não sei o nome de ninguém, disse-lhes que era o PAIGC e eles responderam-me que PAIGC é muita gente, não serve.
Fico espantado. Estava tudo tratado, o cônsul da Guiné-Bissau até tinha ajudado a conseguir esta boleia e... afinal, cá temos o rapaz de novo em casa! Ele pode estar frustrado mas para a família cá de casa não há problema. As suas “maninhas” têm seis e nove anos, gostam muito dele e ficam todas contentes.


Sintra > Azenhas do Mar > Setembro/1977 > Na véspera da partida (falhada) para a Guiné, num passeio de despedida com as suas queridas “maninhas”

Retoma-se o processo, tentando não haver falhas. O Consulado guineense assume a orientação e eu apresento-lhes uma espécie de curriculum vitae do JM, com um relato das circunstâncias que me tinham levado a trazê-lo para Portugal. Não demorou a sua aprovação.
Agora só falta comprar a passagem e querem que seja eu a fazê-lo. Perante a minha recusa, o governo de Bissau paga-lhe a viagem na TAP e lá vai ele a caminho da Guiné, agora sim, recomendado a uma figura destacada do PAIGC. Estamos em Janeiro/1978, fez há pouco 17 anos e tem quase 11 de vida em Portugal.
Muito bem recebido em Bissau, a Organização do PAIGC toma conta dele, garante-lhe residência e alimentação até ter emprego. Retoma os estudos. E começa uma nova etapa da sua vida, sozinho, às vezes inseguro mas maravilhado com o novo mundo que lhe aparece, cheio de esperança e entusiasmo.
9. Os anos de Guiné
Razões várias me levam a não fazer grandes referências ao percurso do JM na Guiné-Bissau, quer por princípio quer por respeito pela sua privacidade, não só a pessoal mas também a cívica.
Continua a estudar, integra-se na vida política como militante da JAAC (Juventude Africana Amílcar Cabral), trabalha na administração pública. Sozinho, sem família nem “padrinhos”, vai marcando o seu lugar.
(Obs.: O regresso do JM à Guiné natal vai criar-lhe um natural desejo de saber da situação dos seus pais. Estariam vivos? Como irá ele reagir, que sentimentos vai ter de enfrentar? Que tipo de emoções vai sentir? É sobre tudo isto que, em Apêndice, ele vai ”falar” através da correspondência que me dirigiu.)

A certa altura é escolhido para frequentar o Instituto Superior Karl Marx, de Berlim, na então República Democrática Alemã, na área de formação administrativa e política ou coisa parecida. E assim, alguns anos depois, cá temos o rapaz outra vez na Europa mas, infelizmente, gora-se a espectativa de uma passagem por Portugal.

Alemanha ( RDA ) > 1986 > Convivendo

Acabado o curso, regressa a Bissau.
A Guiné que ele tinha deixado estava a começar a resvalar para o que, na altura, ninguém imaginaria. Mas os sinais já lá estavam. A propósito diz-nos, em Agosto de 1986:

Como é do vosso conhecimento as coisas por cá não vão lá muito “católicas”. (...) os vencimentos mal chegam para um indivíduo comer - a inflação é galopante e, quando assim é, o pessoal (...) e reclama, outros lembram-se dos bons velhos tempos do colonialismo em que havia de tudo (...), outros ainda só pensam em emigrar (...) situação não muito alarmante mas que precisa duma certa atenção por parte das entidades responsáveis (...).

A sua atividade laboral desenvolve-se na área política, tendo nos anos seguintes trabalhado em diversos gabinetes ministeriais.
Entretanto, surge-lhe a oportunidade, que não perdeu, de vir passar seis meses em Portugal. Ótimo para matar saudades, cada vez maiores, da sua família portuguesa. E ei-lo de volta a Lisboa, a Agualva-Cacém e ao seu Casal Novo. Estamos em 1990, treze anos depois do seu regresso à Guiné, e temos o nosso JM de novo em Portugal e nos ambientes da sua infância e adolescência.
10. A reviravolta
A sua visita é uma grande alegria, para ele e para todos os seus familiares portugueses. Chega radiante e anda cada vez mais radiante. Aproveita para renovar o seu Bilhete de Identidade português. Não quer regressar sem este documento pois a vida social e política na Guiné começa a dar sinais de instabilidade. Tem alguns pressentimentos desagradáveis, está bem colocado para se dar conta disso. Infelizmente virão a concretizar-se e a um nível difícil de imaginar, naquela altura. Apesar de tudo, JM faz planos para desenvolver atividade económica em Bissau. Mas o destino baralha-lhe os planos. Um problema surge na Conservatória, não lhe aceitam o processo de renovação do B.I.
É verdade, tudo tinha mudado para casos como o dele. O que tem de fazer, agora, é pedir a recuperação da nacionalidade portuguesa. Tem direito a esta se tiver residido em Portugal, em permanência, num determinado período imediatamente anterior a 25 de Abril de 1974 (cinco anos?).
Ora bem, não há problema nenhum, é fácil provar a sua residência pois tinha frequentado a escola pública durante todo aquele período, há registos oficiais disponíveis e credíveis. Pois é… é fácil, mas a entrega do B.I. só acontece passados dois anos. Dois anos!!! Por isso não voltou a Bissau na data prevista, tendo por cá ficado à espera do B.I.
Entretanto, a instabilidade política e a degradação económica da Guiné vão aumentando rapidamente e afastam, cada vez mais, a ideia de regresso. Surgem mais razões para diluir esta ideia: confirma que a sua ligação afetiva à família portuguesa é muito grande e envolve-se sentimentalmente com quem, mais tarde, contrairá casamento e será mãe dos seus filhos.
Apesar de adorar a sua Guiné, sempre interessado e preocupado com o que lá se passa, também se sente muito bem como cidadão português. Para além da família constituída há relações fortes com muita gente, com os locais portugueses onde cresceu e com a outra sua “família” que o acompanhou nesse crescimento. Sem esquecer os ex-militares da CCaç 1419 que tomaram conta dele, desde Bissorã até Abrantes, com quem se encontra anualmente, de há 18 anos para cá. Não mais regressou.
11. Epílogo
Está no fim esta narrativa, feita sem outro objetivo que não o de referenciar momentos e aspetos da vida de um homem que, desde os seus 4 anos de idade, se podem caraterizar como especiais e o de dar a conhecer um outro lado da guerra colonial que criou afetos que perduram, pelo menos enquanto forem vivos os seus intervenientes.
Há ainda um acontecimento importante a referir, o reencontro de JM com seus pais.
Este acontecimento poderia integrar um processo de análise das possibilidades de reintegração de alguém que tenha sido afastado da sua família natural, nomeadamente quando esse alguém é uma criança nos seus primeiros anos de vida. Poder-se-á pensar que o processo é simples. Tudo leva a crer que só excecionalmente o será.
Este caso de um menino de quatro anos retirado, à força, da sua família e do mato da Guiné e catapultado para uma sociedade europeia, mesmo que seja rural-portuguesa, pode dizer alguma coisa sobre o assunto. Não esquecer que este é um caso inserido numa guerra, o que também o torna especial.
A seguir, em apêndice, JMSC relata os momentos que (e como) viveu aquando (e a partir) do reencontro com seus pais, quase doze anos depois da sua separação. São relatos,  a quente,  de sentimentos e sensações que, na altura, muito mexeram com ele e connosco, seus familiares em Portugal. E, no meu caso, ainda hoje. A composição deste Apêndice mostrou-mo.
(continua)


Um abraço,
Manuel Joaquim
Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419

Fotos: © Manuel Joaquim (2010). Todos os direitos reservados.
__________
Nota de M.R.:

27 comentários:

Anónimo disse...

Caro Manuel Joaquim

Comoveu-me a história de vida do JMSC, que por coincidência são as iniciais do meu nome (José Manuel Silva Corceiro).

As tragédias causadas pela guerra… há muitos casos do género, mas poucos com final feliz como este!

Em Canjadude existia uma criança, o Mamaçal, era o nosso mascote, cujo início de vida foi muito igual à do JMSC, mas não tinha família nenhuma, pelo menos que se soubesse. Quando saí da Guiné ainda ficou no aquartelamento, mas já me disseram que posteriormente morreu durante uma flagelação do IN…

Parabéns pelo teu lindo gesto…

Um abraço e muita saúde para o JMSC.

Um abraço para todos

José Corceiro

Joaquim Luís Monteiro Mendes Gomes disse...

Que história mais linda!...Parabéns é pouco, Manuel...
Fiquei maravilhado e com mais amor à vida. Há homens bons.
Um abraço

antonio graça de abreu disse...

Fabulosa história, tudo verdade, o menino, a guerra e todos nós.
Ainda gostava de saber mais sobre a vida deste rapaz.
Pode ser?

Forte abraço,

António Graça de Abreu

Luís Graça disse...

1. Camaradas:

É uma história comovente, que eu li de rajada, emocionado, e pedi ao Eduardo para a "postar" imediatamente.

Quase meio século depois (em 2011, é bom lembrá-lo, faz 50 anos que começou a guerra colonial em Angola!), ainda há histórias, vivas, como esta, capazes de nos reconciliar com a humanidade! Os nossos filhos e netos, em Portugal e na Guiné-Bissau, têm que conhecer esta história que é um hino à compaixão, à solidariedade humana, ao amor, à fraternidade, à paz, à reconcialiação, ao futuro...

O Manuel Joaquim e, claro, o outro protagonista da história, o seu "mininu", o merecem honras de caixa alta, hoje, no nosso blogue... Merecem, no mínimo, uma salva de palmas quando a gente os encontrar, ao vivo, numa das nossos convívios da Tabanca Grande.

E tudo começou por um discreto email mandado pelo não menos discreto Manuel Joaquim, em 30 de Outubro passado:

Caro camarada Luís Graça:

Respondendo ao teu(?) pedido, digo que sou Manuel Joaquim, membro da
Tabanca Grande há um ano e tal, ex-fur mil CCaç 1419/BCaç 1857 (Guiné, 65/67, Bissorã/Mansabá), vice-presidente (suplente) da ONGD
AJUDA AMIGA, já com um trabalho publicado no blogue (Balanta Furtador) (*).

Tenho estado afastado da colaboração no blogue ( causa alheia ao blogue) mas tenho acompanhado sempre o que lá tem sido publicado.

Tenho pronto um trabalho que quero enviar-te (aliás a sugestão foi
tua, num comentário ao "Balanta ..." ) mas ainda não o fiz porque tem mais de 8000 palavras e ando a ver se reduzo este número. Acho que vou
desistir pois não sei onde reduzir.

Já tem título, "ADILAN, NHA
MININO ou Como se fica com um menino nos braços". É sobre uma criança que trouxe da Guiné (para ti digo o seu nome português, [...], não quero revelar o seu nome no texto).

É uma história linda (apesar de tudo), que acho poder figurar no blogue. Meninos trazidos (ou "rebocados") também fazem parte da história da guerra
colonial.

Este texto já foi lido pela sua "mana" mais velha, a minha
filha Alexandra que me disse ter ficado emocionada (pudera, gostam
tanto um do outro!).

E é tudo, Luis Graça. Um grande abraço, que bem mereces como cidadão e como protagonista
incansável da TABANCA GRANDE.

Manuel Joaquim


2. Eu respondi-lhe de imediato, com medo de se perder essa história (que, decididamente, irá figurar numa futura antologia do nosso blogue):

Manuel Joaquim: És sempre bem vindo!...Manda lá essa história... No blogue não há limites de palavras, só nos comentários é que não podes, em cada um, ultrapassar os 4 mil caracteres. Fico a aguardar o envio do teu texto. Um abraço com afecto e camaradagem. Luís


(*) Vd. poste de 27 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5358: Tabanca Grande (191): Balanta furtador (Manuel Joaquim, ex-Fur Mil Armas Pesadas da CCAÇ 1419)

http://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2009/11/guine-6374-p5358-tabanca-grande-191.html

Joaquim Mexia Alves disse...

Que bela maneira de começar o dia!

A ler uma história destas faz-nos acreditar na humanidade.

Comovi-me, digo-o sem vergonha, e fiquei cheio de uma paz inexplicável, que só o bem, a bondade e o amor podem trazer.

É realmente para mim, a GRANDE HISTÓRIA, desta Tabanca Grande.

Vale por muito mais do que mil das nossas descrições de guerra!

Só por esta história, já valeu a pena a Tabanca Grande.

Obrigado Manuel Joaquim, (eu sou Joaquim Manuel), pela lição que me deste.

Um grande, forte e camarigo abraço para ti e para todos

Curiosamente a "verificação de palavras" para este comentário é wings - asas, e esta história dá-nos asas para voarmos para um mundo melhor, o mundo em que há homens que tratam assim aqueles que deles precisam.

Luís Graça disse...

1. Sinto-me obrigado a transcrever aqui, em parte, a mensagem que o Manel me mandou, ontem (aproveito para referir que ele também era, como eu, atirador de armas pesadas de infantaria... a quem no TO da Guiné davam uma...G3):


Meu caro Luís Graça:

Fiquei muito sensibilizado pela tua apreciação do " Adilan ...".
e, pelo que vi, o Eduardo está "encarregado" da sua publicação.

(...) Obrigado pela referência ao Acordo Ortográfico. Não gosto de
batalhas perdidas e sei (sinto) que a " vida" da língua portuguesa no mundo está dependente do Brasil, com alguma ajuda de Portugal e, talvez, de Angola. Em conservadorismos linguísticos inconsequentes não alinho.

Ainda quanto ao texto, e emoções que podem surgir : uma filha
minha, a que o leu, também me disse ter ficado emocionada ; eu, há pouco, ao relê-lo também fiquei,eu que o escrevi! Mas para nós cá de casa será normal. O Sarrico irá ter conhecimento dele, mais desenvolvido nalguns pontos que achei conveniente não tornar públicos.

Será uma prenda nos seus 50 anos, no próximo dia 12 de Janeiro, anos
que festeja embora não saiba em que dia ou ano nasceu. Foi ao
alvorecer do dia 12/01/66 que ele foi capturado e foi este dia do mês
de Janeiro, cinco anos atrás (1961) que pus no seu registo de
nascimento. Parece-me que exagerei, para aí um ano. Se a mãe dele diz que tinha quatro anos quando lho tiraram ...

E pronto, por aqui me fico. Um grande abraço. Manuel Joaquim

2. Parte do mail que lhe mandei a seguir, ontem, antes da publicação da 1ª parte da história:

Manuel:

Acho que esta história de vida (e de guerra) merecia um livro, a quatro mãos, ou até mais, as da tua família "toda", com a especial participação dos dois heróis, que é o Adilan e o seu "padrinho"...

É uma história comovente, de grande humanidade, que noutro país qualquer daria um grande filme... É verdade que tu tens sido discreto, com a preocupação de proteger a intimidade e a privacidade do Abilan... Mas por outro, tens a "obrigação moral" (?) de contar esta história, de a divulgar, de a publicitar... Para todos nós e para todos os guineenses... Para o próprio Abilan e para os outros teus filhos biológicos (...).

Anónimo disse...

MANEL EU TIVE UMA HISTÓRIA PARECIDA COM A TUA, SÓ QUE O MENINO É O MEU AMIGO MULAI BALDÉ NA ALTURA NÃO TIVE A CORAGEM DE O TRAZER, ERA UM PUTO QUE NOS SERVIA NA MESSE DOS SARGENTOS
QUANDO REGRESSEI EM 9 DE SETEMBRO 74 NUNCA PERDI O CONTACTO COM ELE ESCREVIA-LHE TODOS OS MESES DUAS TRÊS CARTAS, ATÉ QUE PASSADOS OITO ANOS ELE CONSEGUIU VIR PARA CÁ, AJUDEI-O A FORMAR UMA EMPRESA DE CONSTRUÇÃO CIVIL, DEPOIS TROUXE A FAMÍLIA PARA CÁ, ESTEVE MUITO TEMPO COMIGO AQUI NO ALGARVE
MAS DEPOIS FOI PARA LISBOA E HÁ DOIS ANOS QUE ANDO HÁ PROCURA DELE DEIXOU-ME DE TELEFONAR, PERDI-LHE O RASTO, ATÉ JÁ CONTACTEI A EMBAIXADA E ATÉ AGORA NADA, TENHO ESTADO MUITO PREOCUPADO. UM GRANDE BEM HAJA PARA TI.

UM ABRAÇO DO TAMANHO DA GUINÉ PARA TI E TUA FAMÍLIA.

AMILCAR VENTURA EX-FURRIEL MILº MECÂNICO AUTO DA 1ªCCAV/BCAV 832PIRADA-BAJOCUNDA-COPÁ 73/74

CORREIA NUNES disse...

Camarada Manuel,que belo exemplo de SOLIDARIEDADE,afinal"nós ex-militares não fomos só matar pretos como nos apelidaram no pós 25 de Abril"como do nada se transforma a Vida,a tua e a dele,comovido e orgulhoso deste teu gesto,para ti teus Familiares um Grande Bem Hajam.
Paz Saúde Felicidade.
José Nunes
Beng 447
Brá-Bissau
68/70

Rui Silva disse...

Caro Manuel Joaquim:
Desde já recebe um grande abraço.
A tua Companhia era bem conhecida da 816 como deves lembrar-te muito bem.
Chegamos a fazer operações em conjunto.
Ao falares em Sarrico, estremeci, pois lembro-me perfeitamente dele já do RI 10 (Aveiro) e depois vê-lo no Olossato junto de nós para mais uma operação.
Era o homem da máquina fotográfica.Homem extraordinário de uma afabilidade extrema.
Soubemos mais tarde que ele tinha sido vítima de uma granada incendiária, que julgo depois terem sudo retiradas, pois bastava desenrolar-se uma fita (que era a segurança em descanso) para a despoletar.
Senti um grande choque que num dia que foi ao Hospital da Estrela, quando estava numa das Enfermarias ver um mlitar muito molestado que a mim passou- me despercebido (quem era) e uma enfermeira a dar-lhe leite na boca dizer-lhe: " Beba Sarrico". Fiquei petrificado. Era o meu amigo Sarrico.
Não tive coragem de lhe falar. Fiquei muito comovido.
Espero que ele esteja bem..., o melhor possível.
Recebe mais um abraço e passa bem, mesmo muito bem, meu amigo da 1419.
Rui Silva
(ex- Furriel da C.C. 816)

Luís Graça disse...

Meu caro Rui:

Tudo indica que o Sargento Sarrico viveu pouco tempo depois desse teu encontro no HMP:

"Pois é. Ao aguardar a saída, ao sol direto, a granada rebenta-lhe no bolso : PÔFF!... Queimaduras muito graves nos dedos das mãos, no baixo ventre e noutros locais alcançados pelos espirros do material químico. Aparece-nos em casa, pelo seu próprio pé a caminho da enfermaria, e uma espécie de fiozinhos de vapor branco evolam-se saindo dos farrapos do camuflado, das zonas do corpo atingidas... até da G3! Socorro possível e imediato, evacuação para Bissau".

"Segue-se Lisboa (HMP) e... salvou-se! Mas a morte andava por perto, não esperou muito tempo para o levar" (...)

Cherno Baldé disse...

Caro Manuel joaquim,

Li, com muita emoção, a história de vida do Adilan aliás JMSC, como se fosse a minha. Temos sensivelmente a mesma idade e o percurso das nossas vidas poderia, talvez, ser o mesmo se tivesse aceitado em Setembro de 1974 o convite do meu ultimo amigo Português, o Jorge, mecanico-auto (tenho descrita esta cena num dos postes do blogue com o titulo: A (mu)dança das bandeiras).

Ao contrário do JMSC, eu vivia com a familia e tinha uma avó que não arredava pé. Também, sentia medo, muito medo de viver sozinho no meio dos brancos, pois a imagem que tinhamos deles era aquela que os soldados mostravam no ambiente quente dos quarteis, pão e marmelada mas também pontapés a mistura quando calhava. Uma coisa é certa, entre os soldados, sempre onde havia um (mau) estava outro que era bom, por isso nunca tive medo de vaguear no recinto do quartel, muitas vezes, indo contra as directivas superiores e isto desde a idade de 6 ou 7 anos.


Ao Amilcar Ventura aproveito informar que o Mulai natural do Sector de Pirada (Bajocunda?) foi meu colega no Liceu de Bafatá, dormimos na mesma esteira e (degustamos) comemos juntos em Bafatá de 1975 a 1979 o pão que o diabo amassou. Actualmente vive e trabalha em Gabú, sua região natal, aparentemente, é um Empreiteiro (ou Empresário) de sucesso e um homem de peso na região. Quero aqui felicitar-te pelo empurrão que lhe deu e que, certamente, contribuiu para o seu sucesso hoje.

Um abraço para todos,

Cherno Baldé (Chico de Fajonquito)

Anónimo disse...

Sem desprimor para outros postes, de valor importantíssimo, este, a meu ver, é o mais significativo. Outros acontecimentos semelhantes, deviam aparecer ao blogue, para aqui serem divulgados!

Manuel Joaquim disse...

Oh Amílcar Ventura

Que grande "bomba",hem? O teu amigo Mulai Baldé apareceu!( embora só nas palavras do Cherno).
A minha "estória" já fez abrir uma garrafa!

E viva a Tabanca Grande!
Um abraço

Manuel Joaquim disse...

Meus caros camaradas

Estou felizmente "destroçado" com os vossos coments.Acreditem que fizeram com que um ténue fiozinho lacrimoso me chegasse à boca.Muito obrigado!

Leiam a 2ª parte do texto ( o Apêndice )onde o relator é o protagonista. Acho que irão gostar e que ficarão mais "ricos". Eu fiquei.

Depois falaremos,terei que dizer mais alguma coisa sobre o assunto.

Um grande abraço para todos ( comentaristas ou não)

José Marcelino Martins disse...

Manuel Joaquim

Não sei que dizer...
Deixo...





...o meu silêncio o um grande abraço para vocês (família) e para vocês (camaradas)!

Torcato Mendonca disse...

Manuel Joaquim

Nada digo.
Já nos conhecemos de "outro lado". Como dizer...fiquei sem palavras e espero a continuação.

Tenho orgulho de ser Português, muito.

Abraço a ti e a tua família e depois escrevo. Deixa-me ler até final.

Abraço forte e amigo T.

Anónimo disse...

Há corações que são de ouro...
Um abraço amigo,
José Câmara

Zé Teixeira disse...

Como se fica com um menino nos braços e como se faz dele um Homem !

Caro Manuel Joaquim
A história de vida do Sarrico/JMSC que tu ajudaste a construir, com que paciência, sabedoria e confiança no futuro, levou-me de novo até à Guiné, aos meus ajudantes de enfermeiro, sobretudo ao Mudé Embaló, uma criança que adorava ser enfermeiro.Infelizmente já faleceu. Tantos outros "djubis que nos rodeavam e miravam com aqueles olhos expectantes.
Para alguns de nós, eram companheiros de boas e más horas,companheiros de brincadeiras, que nos ajudavam a passar o tempo.
Sinto o teu orgulho a falar do teu minino.
Foste um jovem de coragem.Creio que tiveste o merecido prémio pelo teu acto.
Parabéns e obrigado.

Luís Graça disse...

Amigos:

Tantos e tantos "djubis" que não tiveram a "sorte grande" de encontrar um homem, de coração grande, como o nosso Manuel Joaquim!... Lembro-me, por exemplo, do Tchombé, a "mascote" da messe de sargentos de Bambadinca do meu tempo (BCAÇ 2852, BART 2917, CCAÇ 12, 1969/71)... O que será feito deste "minino", que não teria mais do que cinco anos quando o conheci, e que ninguém pôde ou quis trazer para a metrópole... Julgo que era "órfão de guerra" (ou talvez apenas mais um "rafeiro", como diz o Cherno Baldé, que vivia na órbita da tropa...).

Eh!, malta de Bambadinca, alguém de lembra do puto Tchombé ?

Rui Silva disse...

Caro Luís Graça:
Corpo di bó?
Bom, aliás óptimo, assim espero.
De facto, por lapso passou-me no texto do Manuel Joaquim a parte em que ele diz "mas a morte andava por ali perto, não esperou muito tempo para o levar".
Lembro-me que foi uma grande consternação para a malta da 816, mormente os furrieis, o saber do acidente do nosso muito considerado Sarrico.
Quando o vi no hospital da Estrela uma emoção muito forte percorreu-me de alto abaixo.
Fazendo um esforço de memória lembro-me de vir a saber que ele tinha morrido em consequência daquele terrível acidente.
Obrigado Luís pela tua correção e que o Sarrico descanse em paz.
um abração.
Rui Silva

Anónimo disse...

Camarigo Manuel Joaquim
Não encontro palavras para definir o que senti quando li sobre a história do teu "djubi".
Sei sim, que os olhos se embaciaram,e umas lágrimas rolaram.
É uma espectacular e comovente lição de Vida.
Bem Hajas.
Abraço Fraterno
Luís Borrega

Anónimo disse...

Amigo,
Linda história de vida e humanidade.
Não sei dizer nada, apenas um muito bem haja por esta história maravilhosa.
Comoveu? Claro que sim.
Obrigada
Filomena

Hélder Valério disse...

Caro amigo e camarada Manuel Joaquim

Muito obrigado por nos trazeres esta história, por partilhares connosco estas tuas memórias vivas.
Vou aguardar a 2ª parte com muito interesse e expectativa.

Um abraço
Hélder S.

Anónimo disse...

Comovente e uma licao de vida...so possivel...em Homens de um coracao que nao cabe na palma de uma mao.

Nelson Herbert
Washingtob DC
USA

Anónimo disse...

Caríssimo Manuel Joaquim

Impressionante e
COMOVENTE !!!
Só agora li e fico ansiosamente, à espera da 2ª. parte.
Alberto Branquinho

Carlos Silva disse...

Amigos & Camaradas

O Manel Jaquim tem um CORAÇÂO GRANDE maior do que o Cumbidjá.
Faço esta afirmação, porque tenho o privilégio de conviver com ele e por saber da história por si contada verbalmente e que ele agora dá a conhecer a um público mais vasto.
E o seu CORAÇÃO GRANDE não fica só com o seu gesto de Homem Grande para com o seu Zé Manel, pois ele continua a dedicar-se de alma e coração à causa da solidariedade para com o povo da Guiné, dando o corpo ao manifesto a trabalhar no âmbito da nossa Associação Ajuda Amiga.

http://ajudaamiga.com.sapo.pt/

Bravo Manel, não desistas, para a frente é que é o caminho.
Com um abraço amigo
Carlos Silva

Anónimo disse...

Caro Manuel Joaquim

Só hoje tenho contato com esta maravilhosa história de amor. E, deveras, só um coração generoso poderia abraçar o desafio de trazer um menino da Guiné.
Parabéns e obrigado.
Um braço fraterno do
Carlos da Gama