sábado, 30 de outubro de 2010

Guiné 63/74 - P7194: Notas de leitura (163): Guerra na Guiné, por Hélio Felgas (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Outubro de 2010:

Queridos amigos,
O relato de Hélio Felgas impõe-se na aridez no que foi a nossa desinformação na Guiné. Independentemente do registo ser apologético e em muitos casos descuidadamente contraditório (o autor diz que 1964 se saldou pelo enfraquecimento do PAIGC e acaba por escrever o contrário) ninguém mais trouxe a público este acervo informativo que os nossos comandos deviam ter prezado, pondo à nossa discussão.
O que não aconteceu.

Um abraço do
Mário


Guerra na Guiné, por Hélio Felgas (3)

Beja Santos

1964, as grandes mudanças operadas do teatro de operações

O livro “A Guerra na Guiné”, de Hélio Felgas, que comandara o BCaç 507, é um documento do maior interesse, como se procura demonstrar com os dois textos anteriores. É muito curioso como o autor considera que 1964 é um ano de viragem e fatal para o PAIGC. Curioso, na medida em que 1963 foi abertamente descrito como de supremacia relativa do PAIGC que se revelou cheio de iniciativa quer na região Sul quer no Oio, provocando rapidamente uma destabilização em toda a região. Ele considera mesmo, falando de 1964, que ao findar o ano a situação estava quase dominada pelas tropas portuguesas e que, sob o aspecto militar, a vitória do PAIGC nunca estivera tão afastada. O que se vai ser contraditado pelo relato que se segue.

Referindo-se ao primeiro semestre de 1964, diz que a actividade de guerrilha ao Norte do Geba foi intensa, houve a destruição de pontes, a região ficou a ferro e fogo, Bigene, Bissorã; Mansabá e Cuntima foram profundamente afectadas, seguindo-se outras regiões como Canjambari e Udasse. Era uma mentalidade agressiva que parecia não poder ser sustida. O troço Mansabá-Bafatá, de uma grande importância económica (para escoar a mancarra e as madeiras) ficou inoperante. Falando do mês de Abril, o autor refere-se a uma actividade frenética na área de Farim, com minas, flagelações e emboscadas. Como se veio a comprovar, a população local mostrou-se dividida, um elevado número da população apoiou as forças portuguesas, uma fracção menor passou-se para a guerrilha. Este espírito ofensivo alastrou para o Sul, para Enxalé e Xime. Como o assunto me diz directamente respeito, ali passei cerca de 15 meses, cito o que o autor diz; “Ao norte de Bambadinca, os bandoleiros atacaram em Abril a tabanca em autodefesa de Missirá, tendo sido asperamente repelidos pela população nativa. Tal como Cutia, Missirá passaria a ser uma das tabancas que melhor representam na Guiné a vontade dos nativos em se defender do terrorismo.

A sul do Geba, as coisas também não estavam famosas. Prosseguiram as flagelações a Bedanda, Buba e pela primeira vez o PAIGC apresentou-se com o morteiro 82. Nos ataques a Cabedu e Fulacunda também fez a aparição a metralhadora pesada Goryunov. A marinha de comércio e as embarcações militares passaram a ser flageladas: no canal do Geba, Fulacunda, Cumbijã. As tropas portuguesas desenvolveram um grande esforço para reabrir a estrada Guileje-Campeane (mais tarde abandonada). Hélio Felgas vai referindo graves desaires sofridos pelo PAIGC, pondo ênfase na ilha de Como. Ele escreve: “Quando a operação foi dada por finda, o PAIGC já não se revelava, apesar dos nossos soldados cruzarem as matas em todos os sentidos. Muitos bandoleiros haviam sido mortos e algum material lhes fora apreendido. Mas a maior parte conseguira fugir da ilha, apesar da vigilância dos nossos navios de guerra (será interessante depois compararmos este relato com o que escreve Luís Cabral em “Crónica da Libertação”. Ninguém podia ter a pretensão de ter limpo a ilha de terroristas nem de evitar que os fugidos regressassem novamente logo que as tropas saíssem. O resultado final foi francamente favorável para as forças portuguesas que, mais uma vez haviam mostrado ao PAIGC serem capazes de desalojar os seus grupos, fosse de que área fosse. Além disso, como prova da nossa soberania, construímos em Cachil um aquartelamento e aí deixámos uma guarnição com a missão de patrulhar a ilha.

Ao findar o semestre, diz o autor, a actividade das tropas portuguesas tinha sido notável. Em Bula e Binar houve forte oposição à expansão do inimigo. Mas nas entrelinhas o autor não deixa de revelar os avanços do PAIGC: ofensiva a leste, sobretudo na área Bambadinca-Xime-Xitole. A documentação apreendida dava conta de enxurradas de material canalisadas para o Oio, região do Xime, em todas as bases do Sul tinha melhorado substancialmente o armamento. O autor refere a nova orgânica militar do PAIGC e que se veio a revelar ser verdade após o congresso de Cassacá que se realizou ao tempo da batalha do Como.

Tínhamos chegado à era Arnaldo Schulz. No segundo semestre a actividade do PAIGC tinha diminuído, diz o autor, mas de modo algum desaparecera a guerrilha. Mas o relato desse apaziguamento é contraditado pela disseminação de acções, centradas no Oio e na região Sul. Hélio Felgas escreve: “Mantinham-se os boatos sobre a provável criação de novas bases inimigas no interior da Província. Uma delas seria entre Barro e Ingoré, para o grupo que actuava na área Bissorã-Bancolene e que era comandado por Mamadu Indjai, filho do famoso auxiliar do pacificador Teixeira Pinto, Adbul Indjai. Outra base seria a criação entre Có e Pelundo, na área de Bula e Teixeira Pinto e seria entregue ao “Gazela” que para isso deixaria Biambi sob o comando de Braima Darame. Em breve se verificaria serem verdadeiras estas notícias”. O espantoso deste relato que fala permanentemente de um enfraquecimento do PAIGC é de incluir sempre uma descrição dinâmica do inimigo: novos campos de treino na República da Guiné, as frequentes visitas de Amílcar Cabral a esses campos, a chegada de viaturas para facilitarem os transportes nas fronteiras da República da Guiné, o aparecimento de enfermarias. Por essa época um grupo tentou afundar a jangada de João Landim, reacenderam-se as acções na área Bula-Binar. Em Novembro, o PAIGC retomou a iniciativa e pelas descrições de Hélio Felgas foi somando revezes. Em Madina do Boé tudo se embrulhou para as posições portuguesas, aos poucos a iniciativa passou a ser a do PAIGC flagelando sem parar Madina e Béli. Para o autor, as forças portuguesas alargavam cada vez mais a sua rede de ocupação, criando crescentes dificuldades aos guerrilheiros. A fazer fé no que se veio a viver na era Spínola, este alastramento trouxe enfraquecimento e uma maior vulnerabilidade às posições portuguesas. O autor tece louvores ao estoicismo dos militares, à sua capacidade de adaptação, à melhoria das condições de vida das populações autóctones, ao papel desempenhado pelo Movimento Nacional Feminino e à criação das companhias de milícias, dizendo mesmo: “A manutenção dos soldados nativos nas fileiras e o recrutamento das milícias conduziram a uma situação curiosa e pouco conhecida. É que na Guiné há hoje mais militares nativos que metropolitanos. A imensa maioria dos nativos não nutre qualquer idealismo político que nos seja favorável. O que eles pretendem é um emprego. E foi a falta de emprego, aliada a promessas sedutoras ou ameaças terríveis que obrigou muitos nativos a deixarem-se aliciar. A inexistência de desertores, seja entre os soldados, entre os polícias ou entre as milícias, é prova segura do que afirmamos”.

Este relato está a chegar ao fim. Quanto mais se lê, mais se torna intolerável a impreparação e o desconhecimento do que andámos a fazer, foi insultuosa a falta de informação que nos acompanhou nas nossas comissões militares, do princípio ao fim. Ora pessoas como Hélio Felgas procuraram dar informação, mesmo que apologética e deformada. Informação que nos sonegada, sabe-se lá porquê.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 29 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7188: Operação Saudade 2010 (Mário Beja Santos) (1): Carta ao meu querido amigo Fodé Dahaba

Vd. último poste da série de 27 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7183: Notas de leitura (162): Guerra na Guiné, por Hélio Felgas (2) (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Hélder Valério disse...

Pois é Mário, pois é.

Sabe-se lá porquê!
No entanto é interessante saber que mesmo os escritos que 'têm que ser fiéis a uma verdade inquetionável' acabam por dar maior credibilidade ao contraditório já que se contradizem a si próprios e dados serem insuspeitos...

Um abraço
Hélder S.